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A luz não é para todos
Todos os setores da inteligência do país falharam
pela incapacidade de repercutir o desastre anunciado
por Sergio Miceli
A sociedade paga com a moeda do sonho que ela
mesma elabora. A iminência do apagão serviu
para nos sacudir da mesmice do cotidiano em
que vamos tentando conciliar, contra as evidências, as dificuldades prosaicas com certa ficção da
utopia de um futuro coletivo. As guerras, as secas, as
epidemias e calamidades parecem, num repente, exercer um efeito nivelador, na medida em que engolfam,
em seus desdobramentos deletérios, o conjunto da sociedade. Por outro lado, costumam desarrumar a vida
corriqueira, dando a ver quanta crença injustificada e
esperança vã alimentava a imagem enfeitada dessa comunidade nacional.
Essa nova experiência de sociabilidade, sujeita a constrições que já nos pareciam superadas, suscita emoções
e sentimentos desencontrados. O apagão, risco imediato de uma brusca alteração do presente, nos obriga a reconsiderar feições do passado que parecia longínquo.
O choque é tanto maior pelo contraste intratável entre
esses paraísos de modernidade com que o credo neoliberal acenava e o cerceamento das atividades mais comezinhas impostas pelo racionamento. O léxico messiânico desse mundo aperfeiçoado que viria por obra e
graça da globalização, da abertura ao investimento externo, da privatização, das reformas saneadoras do setor público, se revela, por encanto, mera cantilena de
enganação.
As duas últimas eleições para presidente da República
lograram conquistar a maioria da população para metas e valores que, vemos hoje com nitidez, embutiam
um perverso componente ficcional. Embora a protelação eleitoreira da reforma cambial e o consequente
aborto de um projeto consistente de investimento a
longo prazo tivessem adiado o embuste desse salvacionismo das 1.001 noites, é forçoso reconhecer que uma
parcela significativa da população embarcou nessa canoa, tornando sua a ficção de acesso instantâneo a esse
oásis de modernidade.
Apesar de persistentes alertas e diagnósticos, formulados por especialistas e técnicos, dentro e fora da universidade, todos os setores da inteligência do país falharam pela incapacidade de fazer repercutir a gravidade
do desastre anunciado ou, pelo menos, de lhes conferir
credibilidade política. Os chamados formadores de opinião, entre os quais me incluo, abdicaram de se meter
numa seara que lhes pareceu demasiado impenetrável,
deixando outra vez a escribas e áulicos a tarefa de enfrentar o debate e a busca de soluções.
Nosso anseio coletivo pela ficção de uma próspera comunidade nacional redundou nessa sinistra situação,
com ameaças de desemprego e baixa da atividade econômica, de recuo nos investimentos e retomada da inflação, da maré de expectativas pessimistas, deixando
entrever os primeiros lances de uma guerra aberta entre
os grupos mais expostos ao prejuízo, cada qual querendo livrar a cara, numa espécie de salve-se quem puder.
Tirada do álbum de figuras, uma certa imagem do
passado de noites sem televisão, de luz de lampiões e velas, de piloto aceso no aquecedor a gás volta a se insinuar na realidade prosaica e a impor o preço de sua presença no desmonte dessa ficção ingênua em que muitos
de nós passamos a acreditar.
Antes de comentar as reações da população diante
dessa conjuntura calamitosa, talvez se devesse conceder
atenção detida à conduta de grande parte da mídia impressa e eletrônica. Tendo sido igualmente co-responsável por certa tibieza de opinião diante das perspectivas sombrias em matéria de fornecimento de energia, a
maioria dos jornais e redes de rádio e televisão passou a
difundir uma cobertura hipócrita que consiste em
aplaudir e reforçar o que identificam como colaboração
solidária de todos os segmentos da população.
"Caráter nacional"
Mesmo na ausência de dados
confiáveis de pesquisa, os fazedores de notícia se empenham em converter declarações de entrevistados em
evidências inequívocas de comprometimento e adesão
às metas e princípios do racionamento. Ou então preferem entoar louvores à prontidão e ao desprendimento
do "povo brasileiro", por vezes enganchando tais encômios em estereótipos do "caráter nacional". Ainda que
se queira dissociar as posturas dos consumidores das
suas tomadas de posição diante do governo, a costura
discursiva mal consegue disfarçar seus desígnios de instrumentalização política. Essa orquestração falseadora
dos comportamentos e opiniões não encontra nenhuma justificativa diante da urgência de divulgação de
medidas ligadas ao racionamento.
Ora, qualquer leitor ou espectador poderá perceber
que toda matéria sobre o apagão exibe de imediato a face cruel da desigualdade social. A começar pelo consumo diferenciado de quilowatts, as reportagens comparativas sobre famílias de baixa, de média e de alta renda
exibem, com minúcias de taxidermista, as entranhas
dos brutais desníveis de conforto, contrastando os contingentes que sobrevivem abaixo da linha de pobreza às
camadas médias atarantadas pela coleção inimaginável
de eletrodomésticos, agora inertes, e às famílias afluentes pesarosas de refrear o controle desbragado de energia nas caldeiras de água quente, nos aparelhos de ar-condicionado e fornos de microondas, nos freezers e
frigobares, nas banheiras de hidromassagem, nos "home theaters", nas esteiras de ginástica e outras comodidades de dar inveja.
Esses fetiches de modernidade autêntica acabaram
rebaixados à condição de tralha. A bem da verdade, tal
como costuma ocorrer em situações de guerra, os setores abastados sempre acham meios e recursos de contornar a escassez, passando a adquirir bens e combustíveis alternativos (geradores, óleo diesel etc.) a qualquer
preço e, se necessário, inclusive no mercado negro.
Gênios da lâmpada
Não custa pensar um bocado
sobre as prováveis consequências funestas da penúria
energética sobre as pretensões políticas, tanto da atual
equipe no poder como de qualquer outra eventual coalizão. Fernando Henrique Cardoso corre o risco de ter
um destino político simbolicamente equivalente ao do
famoso capitão inglês James Cook ao cabo de suas
aventuras na Polinésia.
Como se sabe, Cook foi recebido com entusiasmo pelos nativos havaianos, que, de início, o identificaram a
Lono, seu deus do crescimento, da reprodução e da felicidade. Semanas depois, Cook foi misteriosamente apagado, num ritual de destituição que os nativos havaianos justificaram por razões cosmológicas. Ainda que o
atual presidente tencione fazer a história a seu modo,
pode acabar à "maneira polinésia" se suas propostas forem reavaliadas na prática como inadequadas à nova
ficção do país no futuro. É o justo paradeiro a que estão
fadados os gênios da lâmpada.
Sergio Miceli é professor titular de sociologia na Universidade de São
Paulo e autor, entre outros, de "Intelectuais à Brasileira" (Companhia
das Letras).
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