São Paulo, domingo, 17 de junho de 2001 |
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Pequena história da melancolia brasileira
por Moacyr Scliar
O livro de Thomas More serviu como modelo para outras obras no gênero, tais como "A Cidade do Sol", de Tommaso Campanella (1602), "A Nova Atlântida", de Francis Bacon (1627), "Os Estados e o Império da Lua", de Cyrano de Bergerac (1657), entre outras. A isso se juntam as lendas então popularizadas, como aquela referente ao país da Cocanha, mítico lugar de comida abundante e vida fácil. Tal lenda aparece já no século 12, mas se difundiu sobretudo nos séculos 16 e 17, quando teve mais de cem versões diferentes -na França, Alemanha, Itália, em Flandres. O otimismo desses relatos seguramente servia como antídoto para o pensamento melancólico. Aliás esse era um propósito expresso dos autores utópicos: a alimentação e o modo de vestir na Cidade do Sol têm como objetivo alegrar os habitantes e assim neutralizar a tristeza e a melancolia. Não faltava, contudo, à obra dos utopistas um elemento de realidade: o aparecimento de seus textos coincidia com os descobrimentos marítimos, lugares nos quais se concentrou boa parte da fantasia européia de então, como mostra Shakespeare em "A Tempestade". Promessa do Eldorado Em "Visão do Paraíso", Sérgio Buarque de Holanda estuda, como diz o subtítulo da obra, "os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil". Interpretando as fantasias do Renascimento, comenta: "A idéia de que do outro lado do Mar Oceano se acharia, se não o verdadeiro Paraíso Terreal, sem dúvida um símile em tudo digno dele perseguia, com pequenas diferenças, a todos os espíritos. A imagem daquele jardim fixada através dos tempos em formas rígidas, quase invariáveis, compêndio de concepções bíblicas e de idealizações pagãs, não se podia separar da suspeita de que essa miragem devesse ganhar corpo num hemisfério ainda inexplorado". Não por outra razão fala Edmundo O'Gorman da "invenção da América". A viagem de Colombo foi condicionada, diz O'Gorman, pela conjuntura histórica e cultural da época . E nessa conjuntura a utopia e os motivos edênicos desempenham papel importante. É claro que as viagens marítimas tinham objetivos mais concretos do que a descoberta de supostos paraísos perdidos. Iam em busca de riqueza. Numa época, essa riqueza foi representada pelas especiarias: pimenta, cravo, canela... Por que essa "fome" por especiarias? A explicação clássica é de que serviam para preservar alimentos ou pelo menos para disfarçar o mau gosto, quando estragados. Mas esse raciocínio não é muito convincente: as especiarias eram caras demais para tal finalidade. O sal seria um preservativo mais barato e mais acessível. A razão deve ser outra, diz Schivelbusch: as especiarias, que vinham do Oriente, traziam o sabor de um novo mundo, a evocação do Paraíso; ou seja, eram mais um antídoto contra a melancolia da modernidade, no caso um antídoto que titilava o gosto e que depois teria continuidade com o café, o chocolate, a coca, todos produtos vindos do Novo Mundo. No final da Idade Média a demanda por especiarias aumentou muito, ao mesmo tempo em que cresciam as taxas alfandegárias impostas pelas cidades-Estado, como Veneza, e em que as tradicionais rotas de transporte eram bloqueadas pelos turcos. Um poderoso estímulo para as navegações marítimas. Mas não o único: havia também a promessa do Eldorado e de fabulosas minas de ouro. Os portugueses foram dos primeiros europeus a empreender a aventura marítima. Afinal tratava-se de um povo em busca de sua afirmação, vivendo num país pequeno e à sombra de um vizinho poderoso. A isso se acrescentavam as expectativas messiânicas, expressas nas trovas de Bandarra e no sebastianismo. Em Portugal, a melancolia toma uma forma diferente: saudade. E o Burton português, um Burton avant la lettre, foi nada menos que um rei, d. Duarte. No início do século 15, esse rei-filósofo, como o chama Eduardo Lourenço, abordou o tema da saudade, uma palavra, segundo ele, insólita, sem equivalente no latim ou em qualquer outro idioma. Pode ser exagero, mas chama a atenção o número de autores lusos que se debruçaram sobre o tema. Expressa como passividade ou renúncia, a saudade associa-se à tristeza, à melancolia. Mas, por se acompanhar de uma imagem idealizada, pode também se transformar em uma causa, em um objetivo. Disso dá testemunho o entusiasmo dos navegadores, traduzido nas palavras arrebatadas da carta de Pero Vaz de Caminha. Não é por acaso, aliás, que More faz de seu Rafael Hitlodeu um português. Pólo depressivo Se a aventura do descobrimento -ou do "achamento"- representa o pólo entusiasta, maníaco mesmo, desse momento histórico, onde fica o pólo melancólico, depressivo? Em "Retrato do Brasil", Paulo Prado tem uma resposta: "Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram". E o que movia os descobridores? Dois impulsos, diz Paulo Prado: "A ambição do ouro e a sensualidade livre e infrene que, como culto, a Renascença fizera ressuscitar". Faz um relato espantado da promiscuidade sexual no novo país, uma espécie de contrapartida à exuberante natureza. Em compensação, a família brasileira tem um perfil sombrio: "Pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados", segundo Paulo Prado. A tristeza resulta do esgotamento que se segue ao "erotismo exagerado", afirma o autor, citando o velho adágio latino (entre parênteses, atribuído a Galeno): "Post coitum animal triste est", depois do coito, o animal fica triste. Tais generalizações são possíveis para um autor que acredita existirem "povos alegres e povos tristes", dando exemplos: "Chins do norte, sérios e refletidos, chins do sul, alegres como crianças". A idéia das "três raças tristes", índios, brancos e negros, teve vários adeptos. Diz Gilberto Freyre em "Casa-Grande & Senzala": "O português, já de si melancólico, deu no Brasil para sorumbático, tristonho; e do caboclo nem se fala: calado, desconfiado, quase um doente em sua tristeza". Quanto aos negros, acometia-os o banzo, a saudade da África, não raro levando-os ao suicídio. Para Vianna Moog a tristeza brasileira estaria ligada, em primeiro lugar, ao mazombismo, à consciência das raízes européias e da dolorosa separação destas. O termo mazombo, aliás, tem um duplo significado: designa (de forma depreciativa) o indivíduo nascido no Brasil, de pais portugueses, e quer dizer também sorumbático, macambúzio, mal-humorado. Mas Vianna Moog vai mais adiante e aponta o que é para ele a mais eloquente contradição da vida brasileira: essa gente triste, cuja energia parecia nenhuma, transforma-se por completo no campo de futebol; trata-se de um esporte "que eles aprenderam a amar desde a infância e desde a escola, se é que a tiveram, ao passo que o trabalho orgânico foi sempre diminuído a seus olhos". Vianna Moog está aqui falando em uma polaridade: a alegria e a energia do futebol contrapostas à tristeza, à melancolia do cotidiano. Da mesma forma, Roberto DaMatta vê no Carnaval uma inversão social e psicológica: o dia dá lugar à noite, a realidade à fantasia; e Sérgio Buarque de Holanda contrapõe a cordialidade (que deve ser vista como emoção, não necessariamente amável) ao ritualismo social . Ocasionalmente essa reação à melancolia toma forma explosiva, como é o caso dos movimentos messiânicos (Canudos) que revivem, de forma violenta, expectativas milenaristas semelhantes à do sebastianismo e às das profecias de Bandarra. Curiosamente, em seu importante trabalho, "Luto e Melancolia" (1916), Freud lembra que a melancolia é o luto patológico decorrente da perda de um objeto que, em última análise, é o próprio eu. Emil Kraepelin, expoente da "psiquiatria classificatória" do século 19, introduziu a expressão "psicose maníaco-depressiva". A partir de então, o termo "depressão" substitui "melancolia". Mas não é uma simples questão de nomenclatura. A depressão é a melancolia sem aura, sem o componente intelectual, filosófico, que a caracterizava na Renascença. Cada vez mais são explorados os seus fundamentos biológicos, o que também se reflete na ampliação da terapia medicamentosa, da qual o Prozac é, ao menos neste momento, o expoente maior, mais famoso. Uma fama explicável, em parte, pelo temor que causa a depressão numa sociedade competitiva; ela representa, quase que literalmente, uma "diminutio capitis", uma limitação severa na luta pela existência.
Ciência melancólica A mania tem uma imagem menor, resultante da dúvida que causa: o homem que está organizando uma excursão a Marte é um maluco ou descobriu um novo ramo de negócios? O maníaco goza do benefício da dúvida, que em nenhum momento é concedido ao deprimido. O próprio termo "depressão", observa William Styron, que pode ser usado tanto para designar uma queda de ciclo econômico ou um buraco no chão, perdeu as características mais evocativas -e num certo sentido mais caridosas- da "melancolia". O temor que inspira seguramente está conectado a seu sentido mais amplo: depressão lembra fábricas fechadas, desemprego, fome. A inflação, que corresponde a uma fase maníaca, com as pessoas consumindo febrilmente, é menos assustadora, ainda que mais anárquica. Para os economistas clássicos talvez a depressão seja preferível pela imagem de "situação controlada" -mas não é essa economia, segundo Carlyle, uma "dismal science", uma ciência melancólica? A mania tem representantes em personagens da literatura brasileira. Dois deles são famosos e foram criados por grandes escritores: o doutor Simão Bacamarte, de Machado de Assis, e o Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Estamos falando, aliás, de escritores que têm muito em comum entre si. Ambos nasceram no Rio de Janeiro. Ambos eram mulatos. Ambos tiveram vida difícil, da qual só escaparam (no caso de Lima Barreto, precária e provisoriamente) por meio do emprego público. Ambos eram doentes: Machado sofria de epilepsia, Lima Barreto era alcoolista e chegou a ser internado em um hospício. É verdade que Machado conseguiu superar suas adversidades e Lima Barreto, não; mas o certo é que ambos conheceram o fenômeno da marginalização. E ambos viveram numa época tumultuada da história brasileira, uma época marcada pelo fim da escravatura, pela proclamação da República e por uma febre de modernização visível sobretudo no Rio de Janeiro, onde a reforma urbana -o "bota-abaixo" do prefeito Pereira Passos- mudou por completo a fisionomia e a vida da então capital do Brasil. Ambas as obras refletem bem esse clima. "O Alienista" tem como cenário a modorrenta cidadezinha de Itaguaí, em "tempos remotos" (Machado decerto não queria confusões com seus contemporâneos). Ali chega um dia o dr. Simão Bacamarte, que vinha de estudos em Coimbra e Pádua. Decidido a dedicar-se à "saúde da alma", Simão Bacamarte torna-se um alienista, isto é, um médico de hospício, instituição que teve no século 19 a sua época áurea. Na Casa Verde -nome dado ao asilo por ele criado- chegam loucos de "todas vilas e arraiais vizinhos". Aos poucos o alienista começa a descobrir que o problema da loucura é muito maior do que pensava: um continente, não uma ilha. E aí o menor desvio é pretexto para uma internação. Fica claro que o alienista detém agora o poder em Itaguaí, o que gera uma revolta. Que ele enfrenta sem temor: afinal, é o representante da ciência no local. Após o episódio seu poder chega ao máximo: interna dezenas de pessoas, inclusive a própria esposa. E então algo ocorre ao alienista: se a loucura era tão disseminada, o hospício deveria ser reservado não para os enfermos, mas para os sãos -no caso, ele próprio. Tranca-se na Casa Verde, agora vazia, entregando-se ao "estudo e à cura de si mesmo", vindo enfim a morrer. A trajetória maníaca de Policarpo Quaresma é mais diversificada. Ele começa querendo restaurar o tupi-guarani como idioma brasileiro; a causa fracassando, retira-se para o campo, pensando em formas de aumentar a produtividade agrícola do país, mas tem de enfrentar as saúvas. Volta para o Rio, envolve-se (patrioticamente) num movimento militar -está ao lado do presidente Floriano Peixoto contra revoltosos, mas desilude-se com o brutal tratamento dado a estes pelas tropas governistas. E termina, ele próprio, preso. Jejuns e orações Há afinidades entre esses personagens. Os dois apresentam comportamento maníaco: Simão Bacamarte em busca da "saúde da alma" para Itaguaí, Policarpo Quaresma perseguindo várias causas. Os nomes, aliás, são significativos: Bacamarte evoca uma antiga arma, de grande potência. Policarpo, por sua vez, quer dizer: muitos frutos, uma abundância convenientemente neutralizada pela Quaresma, os 40 dias que vão do Carnaval até a Páscoa, um período dedicado a jejuns e orações. A conduta maníaca de ambos se constitui, como de hábito, em defesa contra a depressão. Bacamarte não parece ter outro interesse senão o de internar e classificar doentes, principalmente os maníacos. Casa, mas não por amor, e sim para ter alguém que lhe dê descendência, o que, aliás, não acontece. A esposa cai "em profunda melancolia", ou seja, assume a depressão do marido. Já Policarpo "não recebia ninguém, vivia num isolamento monacal", rodeado de livros, como Bacamarte (aos livros será atribuída mais tarde a sua loucura, como aconteceu com Dom Quixote). Seus projetos caem por terra; derrota-o a "atonia de nossa população, essa espécie de desânimo doentio, de indiferença nirvanesca por tudo e todas as coisas (...), o aspecto cataléptico de nosso interior. Tudo aí dorme, cochila, parece morto". Na melancolia do país Policarpo Quaresma vê a sua própria melancolia, que não conseguirá derrotar com seus empreendimentos, por mais entusiastas (ou maníacos) que sejam. Moacyr Scliar é escritor e colunista da Folha, autor de, entre outros, "A Paixão Transformada - História da Medicina na Literatura" (Cia. das Letras). 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