São Paulo, domingo, 17 de julho de 2005

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Ponto de fuga

Profecias do passado

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O estilo telegráfico e seco de H. G. Wells vai além da descrição. Instaura, para os olhos, para o tato, para todos os sentidos, seres vivos, coisas e, mais que tudo, monstros imaginários. Wells enfrentou diretamente os paradoxos da visibilidade escrevendo "O Homem Invisível" [1897]. De modo tangível, dispôs os horrores das mutações corpóreas entre homens e animais na infernal "Ilha do Doutor Moreau" [1896]. Criou, com detalhes, os marcianos e suas máquinas letais em "A Guerra dos Mundos".
O romance data de 1898. Em 1902, Henrique Alvim Corrêa, desenhista brasileiro de formação européia, impressionado pela força alucinatória do livro, traça alguns esboços inspirados nele. Mostra esses ensaios ao autor, que se entusiasma e o convida para ilustrar a tradução francesa numa edição de luxo, feita na Bélgica. Publicada em 1906 por L. Vandamme, teve apenas 500 exemplares, que se tornaram desesperados objetos de desejo para bibliófilos.
Wells disse que Alvim Corrêa fez mais para o romance com seu pincel do que ele próprio com sua pena. É fato que as concepções gráficas são fortes, estranhas, inquietantes e ampliam o imaginário do texto. Fixaram, de maneira definitiva, o aspecto desengonçado e aterrador das máquinas marcianas, com seus três pés, seus numerosos tentáculos, humanizadas por olhos esquisitos. Elas renascem no atual filme de Steven Spielberg, guardando uma aparência arcaica, "steampunk", vagamente atualizada. O filme retira ainda dos desenhos algo difícil de ser descrito com as palavras de um romance: não a massa humana, sem rosto, mas as multidões perdidas, perseguidas, caóticas no lusco-fusco, reunindo indivíduos minúsculos diante dos enormes monstros metálicos.

Íncubo
Ninguém domina tanto o cinema enquanto espetáculo como Spielberg. Essa palavra, espetáculo, não significa aqui elemento exterior acrescentado a uma narrativa. A beleza das imagens é extraordinária: um trem incendiado, uma paisagem recoberta de vermelho cor-de-sangue. Mas nada disso é apêndice. Os efeitos visuais, prodigiosos, são tomados "de dentro", recusando o exibicionismo para tornarem-se instrumentos da convicção.
"A Guerra dos Mundos", o filme, não se preocupa muito em contar uma história. É um périplo, dentro do qual se encadeiam situações que ligam indivíduos e forças coletivas, mas ainda personagens entre si. As relações íntimas não desaparecem no grande caos. Assim, no extraordinário episódio da casa em escombros, o pai, a filha e um Tim Robbins endoidecido criam laços assustadores, para além dos perigos externos. Na multidão, a fúria coletiva se personaliza. Cada presença humana é marcada, consistente, a tal ponto que é difícil falar de figurantes, ou papéis secundários. Todos trazem uma individualidade humanizada para além das convenções. Neste quadro, o protagonista do filme não é tanto um ator ou um personagem: é o próprio filme. Tom Cruise, o herói (ou antes, o anti-herói prudente que tem na fuga sua melhor defesa), privilegiado na história, parece, de fato, apenas mais um em meio aos acontecimentos. A força do filme é a mesma dos pesadelos terríveis: aquele que sonha encarna todos e tudo.

Jaws
Há pelo menos duas obsessões apavorantes no universo de Spielberg. Uma, é a perda do lugar ao qual se pertence, o lar, a casa. Outra, são perigos que ultrapassam as forças dos indivíduos, ameaças incontroláveis e cruéis. De um lado, "Tubarão". De outro, "E.T. - O Extraterrestre". Em "A Guerra dos Mundos", E.T. é o tubarão.

The End
Wells militou por um mundo sem países, composto de uma grande e única sociedade. Seu "A Guerra dos Mundos" é uma parábola no sentido de criar um inimigo exterior à humanidade, e não a um país. É também um conto "biológico", darwinista, em que os marcianos morrem por não terem defesas contra os micróbios terrestres. Da parábola, resta pouco filme: os pavores de Spielberg fabricam fantasmas e monstros interiores. Quanto conto, vem reduzido ao mínimo, concentrado num breve prólogo e num final repentino, que se assemelha a um brusco acordar.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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