São Paulo, domingo, 17 de julho de 2005

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Criadores e criaturas

"Lições dos Mestres", de George Steiner, relata as relações entre professores e discípulos, de Plotino à infâmia de Heidegger com Husserl

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Carpinteiros, militares, mercadores, políticos, prostitutas; não há profissão, observa George Steiner, sobre a qual as peças de Shakespeare não tenham falado com milagroso conhecimento de causa. Mas há uma exceção: a de professor. O tema das relações entre mestre e discípulo, observa Steiner, "deixou Shakespeare indiferente". É com certo alívio que lemos isso no segundo capítulo deste belo "Lições dos Mestres": o tema é tão amplo e conhece tantos exemplos históricos e literários que a grande erudição de Steiner -professor em Cambridge e na Universidade de Genebra- se acomoda mal em 200 e poucas páginas de texto.
De Jesus a Saul Bellow, de Empédocles a Fernando Pessoa, do mestre zen-budista Keizan Jokin no século 14 a Baal Shem Tov, "mestre dos mestres" do judaísmo hassídico na Polônia do século 18, "Lições dos Mestres" dá conta de uma impressionante quantidade de grandes nomes que ensinaram, aprenderam ou pensaram a respeito do ensino e do aprendizado.
Verdade que nada nesse livro se assemelha a uma história prática da pedagogia. Uma relação mais íntima e criativa -a do discípulo com seu mestre, e não a do professor com seu aluno- é o que mobiliza os comentários, por vezes comovidos e iluminadores, outras mais secos e relatoriais, do livro todo.
"Lições dos Mestres" se divide, com efeito, entre uma parte que é tributária do espírito do "dever de casa" -o comentário erudito, preciso, incansável, de uma lista infindável de autores- e outra que deriva de uma "fala magistral", capaz de inspirar o seu público -o texto origina-se de uma série de conferências na Cátedra Charles Eliot Norton, de Harvard, em 2001.
Têm algo de obrigação, da qual Steiner se desincumbe em páginas breves e nada convictas, os seus comentários sobre o "De Magistro" de Santo Agostinho ou sobre o relato, "de valor inestimável", que Porfírio escreveu a respeito de seu mestre Plotino. Sobre o legado de Plotino, Steiner observa que "viria a ser pródigo", uma vez que "Boécio prepara a autoridade de Plotino em Giordano Bruno, no neoplatonismo florentino de Marsílio Ficino". A seqüência de nomes prossegue: o "monismo" de Plotino "inspira Berkeley, Schelling e Hegel. Bergson, com seus ensinamentos vitalistas, é um discípulo remoto. A tradução rapsódica de Stephen Mackenna e o pensamento sobrenatural de Plotino reaparecem em Yeats".

Populismo
Para compensar esta fanhosa declamação erudita, Steiner inclui entre os "mestres" a figura de um técnico de futebol americano, Knute Rockne, o "mago" do time de Notre Dame nas grandes temporadas de 1922-1924. Tal concessão ao populismo e ao espírito dos "estudos culturais", num crítico tão acerbo da vulgaridade intelectual em curso na academia norte-americana, explica-se de forma algo tortuosa. "Para Píndaro e Platão, a questão teria sido óbvia. Se a filosofia, a literatura e a música têm seus mestres e discípulos, o esporte também os tem." O futebol americano tornou-se paixão nacional, diz, "graças à genialidade de um mestre. Que outra "paideia" teve tal grau de excelência?".
O hábito das perguntas irrespondíveis é, aliás, típico de um autor que se coloca tanto na posição do mestre quanto na do primeiro da classe e assume tons um bocado irritantes ao longo do livro:
"Seria possível que Henry Adams não tivesse conhecimento de Julius Langbehn e de sua tese de grande influência identificando a eminência artística e o destino nacional em "Rembrandt als Erzieher" (Rembrandt como educador), que trata também do papel "teutônico e titânico" de Beethoven?".
Inquietações mais substanciais podem, entretanto, ser encontradas à medida que avançamos na leitura. As coisas começam a esquentar, que passe o trocadilho, quando Steiner analisa o "Inferno" de Dante Alighieri e o papel de Virgílio nas experiências do narrador. A dolorosa fidelidade de Dante a seus mestres é tratada por Steiner em páginas memoráveis.
Ainda mais quando se pensa nos exemplos do capítulo seguinte, onde histórias de mestres superados por seus alunos, ou vilmente traídos por eles, adquirem tons que vão do edificante (o astrônomo Tycho Brahe dizendo a Kepler, no leito de morte: "Não deixe que minha vida tenha sido em vão") ao absolutamente infame (o protonazista Heidegger escarnecendo secretamente de seu professor judeu Husserl, enquanto este imaginava ter encontrado no aluno um substituto para o próprio filho, morto havia anos).

Erotismo
Mais do que nesses relatos, o fulcro emocional do livro de Steiner se encontra em algum aspecto invisível, misterioso, da relação entre mestre e discípulo. O erotismo, espiritualizado ou não, da docência e do aprendizado, no que exige de presença física dos seus participantes, e no que pressupõe de "fertilização espiritual" entre seres humanos, merece discretas mas notáveis considerações por parte do autor. Vale finalizar com uma dentre as várias e belíssimas citações que Steiner invoca para ilustrar esse aspecto do tema. Mestre e discípulo, diz Nietzsche, "são filhos de uma mesma esperança". Há muito o que aprender com este livro.


Lições dos Mestres
240 págs., R$ 30,90 de George Steiner. Tradução de Maria Alice Máximo. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/ xx/21/ 2585-2000).



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