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Criadores e criaturas
"Lições dos Mestres", de George Steiner, relata as relações entre
professores e discípulos, de Plotino à infâmia de Heidegger com Husserl
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Carpinteiros, militares, mercadores, políticos, prostitutas; não há profissão, observa George Steiner, sobre a
qual as peças de Shakespeare não tenham falado com milagroso conhecimento de causa. Mas há uma exceção: a de professor. O tema das relações entre mestre e discípulo, observa Steiner, "deixou Shakespeare indiferente". É com certo alívio que lemos isso no segundo capítulo deste
belo "Lições dos Mestres": o tema é
tão amplo e conhece tantos exemplos históricos e literários que a
grande erudição de Steiner -professor em Cambridge e na Universidade de Genebra- se acomoda mal
em 200 e poucas páginas de texto.
De Jesus a Saul Bellow, de Empédocles a Fernando Pessoa, do mestre
zen-budista Keizan Jokin no século
14 a Baal Shem Tov, "mestre dos
mestres" do judaísmo hassídico na
Polônia do século 18, "Lições dos
Mestres" dá conta de uma impressionante quantidade de grandes nomes que ensinaram, aprenderam ou
pensaram a respeito do ensino e do
aprendizado.
Verdade que nada nesse livro se
assemelha a uma história prática da
pedagogia. Uma relação mais íntima
e criativa -a do discípulo com seu
mestre, e não a do professor com seu
aluno- é o que mobiliza os comentários, por vezes comovidos e iluminadores, outras mais secos e relatoriais, do livro todo.
"Lições dos Mestres" se divide,
com efeito, entre uma parte que é tributária do espírito do "dever de casa" -o comentário erudito, preciso,
incansável, de uma lista infindável
de autores- e outra que deriva de
uma "fala magistral", capaz de inspirar o seu público -o texto origina-se de uma série de conferências na
Cátedra Charles Eliot Norton, de
Harvard, em 2001.
Têm algo de obrigação, da qual
Steiner se desincumbe em páginas
breves e nada convictas, os seus comentários sobre o "De Magistro" de
Santo Agostinho ou sobre o relato,
"de valor inestimável", que Porfírio
escreveu a respeito de seu mestre
Plotino. Sobre o legado de Plotino,
Steiner observa que "viria a ser pródigo", uma vez que "Boécio prepara
a autoridade de Plotino em Giordano Bruno, no neoplatonismo florentino de Marsílio Ficino". A seqüência de nomes prossegue: o "monismo" de Plotino "inspira Berkeley,
Schelling e Hegel. Bergson, com seus
ensinamentos vitalistas, é um discípulo remoto. A tradução rapsódica
de Stephen Mackenna e o pensamento sobrenatural de Plotino reaparecem em Yeats".
Populismo
Para compensar esta fanhosa declamação erudita, Steiner inclui entre os "mestres" a figura de um técnico de futebol americano, Knute
Rockne, o "mago" do time de Notre
Dame nas grandes temporadas de
1922-1924. Tal concessão ao populismo e ao espírito dos "estudos culturais", num crítico tão acerbo da vulgaridade intelectual em curso na
academia norte-americana, explica-se de forma algo tortuosa. "Para Píndaro e Platão, a questão teria sido
óbvia. Se a filosofia, a literatura e a
música têm seus mestres e discípulos, o esporte também os tem." O futebol americano tornou-se paixão
nacional, diz, "graças à genialidade
de um mestre. Que outra "paideia"
teve tal grau de excelência?".
O hábito das perguntas irrespondíveis é, aliás, típico de um autor que
se coloca tanto na posição do mestre
quanto na do primeiro da classe e assume tons um bocado irritantes ao
longo do livro:
"Seria possível que Henry Adams
não tivesse conhecimento de Julius
Langbehn e de sua tese de grande influência identificando a eminência
artística e o destino nacional em
"Rembrandt als Erzieher" (Rembrandt como educador), que trata
também do papel "teutônico e titânico" de Beethoven?".
Inquietações mais substanciais
podem, entretanto, ser encontradas
à medida que avançamos na leitura.
As coisas começam a esquentar, que
passe o trocadilho, quando Steiner
analisa o "Inferno" de Dante Alighieri e o papel de Virgílio nas experiências do narrador. A dolorosa fidelidade de Dante a seus mestres é
tratada por Steiner em páginas memoráveis.
Ainda mais quando se pensa nos
exemplos do capítulo seguinte, onde
histórias de mestres superados por
seus alunos, ou vilmente traídos por
eles, adquirem tons que vão do edificante (o astrônomo Tycho Brahe dizendo a Kepler, no leito de morte:
"Não deixe que minha vida tenha sido em vão") ao absolutamente infame (o protonazista Heidegger escarnecendo secretamente de seu professor judeu Husserl, enquanto este
imaginava ter encontrado no aluno
um substituto para o próprio filho,
morto havia anos).
Erotismo
Mais do que nesses relatos, o fulcro
emocional do livro de Steiner se encontra em algum aspecto invisível,
misterioso, da relação entre mestre e
discípulo. O erotismo, espiritualizado ou não, da docência e do aprendizado, no que exige de presença física
dos seus participantes, e no que
pressupõe de "fertilização espiritual" entre seres humanos, merece
discretas mas notáveis considerações por parte do autor. Vale finalizar com uma dentre as várias e belíssimas citações que Steiner invoca
para ilustrar esse aspecto do tema.
Mestre e discípulo, diz Nietzsche,
"são filhos de uma mesma esperança". Há muito o que aprender com
este livro.
Lições dos Mestres
240 págs., R$ 30,90
de George Steiner. Tradução de Maria Alice
Máximo. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP
20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/ xx/21/
2585-2000).
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