|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
Em novo livro, Robert Darnton aponta o elitismo dos autores do
Iluminismo, mas faz sua defesa contra os críticos contemporâneos
O advogado das Luzes
RONALDO VAINFAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Robert Darnton figura entre
os mais importantes historiadores das últimas décadas. É
bem conhecido do leitor brasileiro desde seu "O Grande Massacre dos Gatos" (Graal), passando pelo "Beijo de Lamourrete" e por
"Boemia Literária e Revolução"
(ambos pela Cia. das Letras), este último voltado para o período histórico de sua predileção: o século das
Luzes, o Iluminismo francês.
Seu novo livro retoma o tema do
Iluminismo, apesar do título pouco
esclarecedor de "Os Dentes Falsos
de George Washington". O subtítulo
ajuda um pouco, enunciando o livro
como "Um Guia Nada Convencional para o Século 18". Mas o título
propriamente dito só se alcança
após a leitura das dez páginas de introdução, em que o autor define
com nitidez as coordenadas do livro,
ou seja, a discussão do conceito de
Iluminismo, a investigação de certos
percursos particulares das idéias e
autores iluministas e o enfrentamento de mitos relacionados ao Iluminismo.
A explicitação do objeto teima,
contudo, em mesclar-se com a discussão absolutamente bizantina sobre se Washington era banguela ou
se a maioria de seus dentes eram de
madeira -um mito, entre outros,
que pesou sobre o grande personagem da Revolução Americana
[1775-1783]. Mas isso faz parte do estilo Darnton de escrever história:
uma certa paixão pelo inusitado, um
gosto talvez demasiado por metáforas herméticas, uma busca excessiva
da originalidade total.
Isso posto, vale admitir que o livro
oferece uma reflexão bastante substantiva sobre o Iluminismo, escrito
com a limpidez que caracteriza as
obras do autor. Darnton expõe, em
oito capítulos, não apenas importantes discussões conceituais como
revela faces pouco conhecidas ou
mesmo desconhecidas de Voltaire,
Jefferson, Condorcet, Brissot, Rousseau, efetuando comparações instigantes. Extrapola, pois, o universo
intelectual francês e incorpora os Estados Unidos. Extrapola também o
século 18 e discute a projeção do Iluminismo nos séculos seguintes.
Apresenta, ainda, no capítulo dedicado a Jacques-Pierre Brissot,
grande líder girondino na Revolução Francesa [1789], os desafios com
que se defronta o historiador e as sutilezas da interpretação de fontes documentais novas e ardilosas. Pena
que o capítulo tenha por título "Os
Esqueletos no Armário".
A contribuição mais geral do livro
reside, porém, na rediscussão do
conceito de Iluminismo, após delimitar, com muita didática, seus contornos históricos: o foco parisiense,
seu aspecto eminentemente letrado,
seu engajamento político, seu elitismo. A propósito, Voltaire chegou a
dizer, sem rodeios, que era "melhor
não ensinar os camponeses a ler; alguém tem que arar a terra". Os iluministas desdenhavam o povo.
Acusações e mitos enfrentados
Ponto alto deste ensaio é o enfrentamento, uma a uma, das acusações
que muitos lançaram e ainda lançam ao Iluminismo. A acusação de
que sua pretensão à universalidade
serviu de máscara para a hegemonia
ocidental; de que foi uma espécie de
imperialismo cultural disfarçado de
apego à racionalidade; de que sua
busca fanática do conhecimento solapava a ética; de que sua fé na razão
era excessiva; de que o Iluminismo
esteve nas raízes do totalitarismo, a
julgar pela fase do "Terror", na Revolução Francesa, e os exemplos nazista ou stalinista supostamente nele
inspirados; enfim, a acusação de que
o Iluminismo é obsoleto para lidar
com o mundo contemporâneo.
Darnton examina as matrizes intelectuais e históricas de cada uma
dessas acusações e as refuta com vigor, assumindo, explicitamente, "o
papel de advogado de defesa" do Iluminismo e "abandonando o de historiador". E, para chocar o leitor,
pergunta: "Por que não mandar o
profissionalismo às favas e deslizar
de vez para a pregação?".
Pura retórica de Darnton -ainda
bem!-, pois ele jamais abandona o
"soi disant" profissionalismo nesta
discussão e, com erudição refinada e
argumentos brilhantes, expõe um
quadro bastante completo do Iluminismo, sem deixar de lado a particularidade de muitos desvios dos filósofos nem omitir opiniões pessoais
muito cativantes.
Sua estratégia de tratar de um conceito abstrato e denso como o Iluminismo por meio de um "guia não
convencional" acaba por funcionar
muito bem. Os títulos ocultam o assunto, mas o texto esclarece, como
poucos, o passado do Iluminismo e
sua atualidade em pleno século 21.
Ronaldo Vainfas é professor de história na
Universidade Federal Fluminense.
Os Dentes Falsos de
George Washington
248 págs., R$ 39
de Robert Darnton. Tradução de José Geraldo Couto. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).
Texto Anterior: Uma lição de música Próximo Texto: Criadores e criaturas Índice
|