São Paulo, domingo, 17 de julho de 2005

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Em novo livro, Robert Darnton aponta o elitismo dos autores do Iluminismo, mas faz sua defesa contra os críticos contemporâneos

O advogado das Luzes

RONALDO VAINFAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Robert Darnton figura entre os mais importantes historiadores das últimas décadas. É bem conhecido do leitor brasileiro desde seu "O Grande Massacre dos Gatos" (Graal), passando pelo "Beijo de Lamourrete" e por "Boemia Literária e Revolução" (ambos pela Cia. das Letras), este último voltado para o período histórico de sua predileção: o século das Luzes, o Iluminismo francês.
Seu novo livro retoma o tema do Iluminismo, apesar do título pouco esclarecedor de "Os Dentes Falsos de George Washington". O subtítulo ajuda um pouco, enunciando o livro como "Um Guia Nada Convencional para o Século 18". Mas o título propriamente dito só se alcança após a leitura das dez páginas de introdução, em que o autor define com nitidez as coordenadas do livro, ou seja, a discussão do conceito de Iluminismo, a investigação de certos percursos particulares das idéias e autores iluministas e o enfrentamento de mitos relacionados ao Iluminismo.
A explicitação do objeto teima, contudo, em mesclar-se com a discussão absolutamente bizantina sobre se Washington era banguela ou se a maioria de seus dentes eram de madeira -um mito, entre outros, que pesou sobre o grande personagem da Revolução Americana [1775-1783]. Mas isso faz parte do estilo Darnton de escrever história: uma certa paixão pelo inusitado, um gosto talvez demasiado por metáforas herméticas, uma busca excessiva da originalidade total.
Isso posto, vale admitir que o livro oferece uma reflexão bastante substantiva sobre o Iluminismo, escrito com a limpidez que caracteriza as obras do autor. Darnton expõe, em oito capítulos, não apenas importantes discussões conceituais como revela faces pouco conhecidas ou mesmo desconhecidas de Voltaire, Jefferson, Condorcet, Brissot, Rousseau, efetuando comparações instigantes. Extrapola, pois, o universo intelectual francês e incorpora os Estados Unidos. Extrapola também o século 18 e discute a projeção do Iluminismo nos séculos seguintes.
Apresenta, ainda, no capítulo dedicado a Jacques-Pierre Brissot, grande líder girondino na Revolução Francesa [1789], os desafios com que se defronta o historiador e as sutilezas da interpretação de fontes documentais novas e ardilosas. Pena que o capítulo tenha por título "Os Esqueletos no Armário".
A contribuição mais geral do livro reside, porém, na rediscussão do conceito de Iluminismo, após delimitar, com muita didática, seus contornos históricos: o foco parisiense, seu aspecto eminentemente letrado, seu engajamento político, seu elitismo. A propósito, Voltaire chegou a dizer, sem rodeios, que era "melhor não ensinar os camponeses a ler; alguém tem que arar a terra". Os iluministas desdenhavam o povo.

Acusações e mitos enfrentados
Ponto alto deste ensaio é o enfrentamento, uma a uma, das acusações que muitos lançaram e ainda lançam ao Iluminismo. A acusação de que sua pretensão à universalidade serviu de máscara para a hegemonia ocidental; de que foi uma espécie de imperialismo cultural disfarçado de apego à racionalidade; de que sua busca fanática do conhecimento solapava a ética; de que sua fé na razão era excessiva; de que o Iluminismo esteve nas raízes do totalitarismo, a julgar pela fase do "Terror", na Revolução Francesa, e os exemplos nazista ou stalinista supostamente nele inspirados; enfim, a acusação de que o Iluminismo é obsoleto para lidar com o mundo contemporâneo.
Darnton examina as matrizes intelectuais e históricas de cada uma dessas acusações e as refuta com vigor, assumindo, explicitamente, "o papel de advogado de defesa" do Iluminismo e "abandonando o de historiador". E, para chocar o leitor, pergunta: "Por que não mandar o profissionalismo às favas e deslizar de vez para a pregação?".
Pura retórica de Darnton -ainda bem!-, pois ele jamais abandona o "soi disant" profissionalismo nesta discussão e, com erudição refinada e argumentos brilhantes, expõe um quadro bastante completo do Iluminismo, sem deixar de lado a particularidade de muitos desvios dos filósofos nem omitir opiniões pessoais muito cativantes.
Sua estratégia de tratar de um conceito abstrato e denso como o Iluminismo por meio de um "guia não convencional" acaba por funcionar muito bem. Os títulos ocultam o assunto, mas o texto esclarece, como poucos, o passado do Iluminismo e sua atualidade em pleno século 21.


Ronaldo Vainfas é professor de história na Universidade Federal Fluminense.

Os Dentes Falsos de George Washington
248 págs., R$ 39 de Robert Darnton. Tradução de José Geraldo Couto. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).



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