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Em "Terra dos Mortos", George Romero retoma suas metáforas da sociedade americana comparando
os mortos-vivos a iraquianos e afegãos, e diz sublimar, em seus filmes, a frustração da revolução que não veio
A nação zumbi
SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A LOS ANGELES
Sangue jorrando como esguicho de jardim, membros decepados e gritos. Esses serão
os principais motivos que levarão as pessoas a assistir à "Terra
dos Mortos", a retomada do mítico
diretor marginal norte-americano
George A. Romero, 65, à sua conhecida "trilogia dos zumbis", que estréia sexta-feira no Brasil. Mas há algo mais sob o chão tomado de carne
humana mastigada. Como fez com
os três filmes originais, que deram
origem a um gênero ("zombie movie") e influenciaram gerações de cineastas, de Brian De Palma a Quentin Tarantino, Romero empurra
uma mensagem altamente engajada
enquanto fatura o ingresso do espectador-pipoca.
Se "A Noite dos Mortos-Vivos"
(1968) fazia uma crítica semivelada à
tensão racial dos EUA dos anos 50 e
60, "Terra dos Mortos" é o primeiro
filme pós-11 de Setembro a colocar
fundo o dedo na ferida aberta na alma do país depois do ataque terrorista que derrubou o World Trade
Center, em Nova York, destruiu parte do Pentágono, em Washington, e
arranhou a até então inabalável certeza do norte-americano médio no
"american way of life". Há uma torre, há uma cidade protegida por rios
e cercas e afundada em medo, há um
exército de despossuídos (os zumbis) querendo destruir esta cidade e
há um comandante disposto a tudo
para impedi-los.
Eu iria fazer da revolta dos zumbis uma revolta frustrada, mas pensei: por que não deixar eles vencerem, ao menos nos meus filmes?
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A metáfora da torre é óbvia, a cidade são os Estados Unidos, o medo é a
"guerra ao terror" de George W.
Bush, e Kaufman, o comandante, foi
inspirado no falcão Donald Rumsfeld, o secretário de Defesa norte-americano, personagem que ganha
ainda mais ironia ao ser interpretado pelo republicano Dennis Hopper.
Quem faz todas as ligações e confirma todas as ilações é o próprio Romero, em entrevista à Folha em Los
Angeles. Eterno revolucionário, ainda se veste como se tivesse acabado
de sair de uma passeata contra qualquer coisa, de rabo-de-cavalo, barba
grisalha, o mesmo colete pespegado
de broches antigoverno -e óculos
de Mr. Magoo, sinal da idade.
"Os zumbis são os afegãos, são os
iraquianos!", empolga-se. "São a
classe operária na sociedade dos
monstros." Leia a entrevista abaixo.
Folha - Por que usar zumbis, mortos-vivos, como metáfora?
George A. Romero - Na verdade,
nos anos 60, comecei roubando a
idéia de Richard Matheson [um dos
roteiristas de "Jornada nas Estrelas"
e "Além da Imaginação"]. Era um
romance dele chamado "Eu Sou a
Lenda" [1954], que basicamente
conta a história do último sobrevivente da Terra, tomada por vampiros. Gostei da idéia, vi que havia algo
de revolucionário aí, mas eu gostaria
de começar do começo e contar como aquilo teria acontecido, então escrevi um conto. No texto, sempre
pensei em três partes: a primeira
noite, um mês depois e um ano depois. Esse último, aliás, não passava
de uma frase. Daí nasceram "A Noite dos Mortos-Vivos" (1968), "Despertar dos Mortos" (1978) e "Dia dos
Mortos" (1985).
Na minha cabeça, o enredo tratava
sempre de revolução, o eterno "nós"
contra "eles", variando os "nós" e os
"eles" conforme a época. Na origem,
eu nem os chamava de "zumbis".
Para mim "eles" eram fantasmas,
comedores de carne humana, tanto
que o título original do primeiro filme era "A Noite dos Comedores de
Carne Humana". Foram alguns jornalistas e críticos que começaram a
chamá-los de zumbis. Naquela época, zumbis eram pessoas que faziam
feitiçaria em algum lugar do Caribe.
Mas sempre achei que os zumbis são
a classe operária na sociedade dos
monstros (risos). Encaixou.
Folha - E o medo?
Romero - Sempre existe um "nós" e
uma força externa. Isso está acontecendo agora nos EUA. Se eu tivesse
de dar nome aos bois diria que nesse
meu último filme os zumbis são os
afegãos, os iraquianos! Quando o
tanque dos defensores da torre anda
pelas ruas esmagando carros, casas e
zumbis, é difícil não pensar nos
Abrams [tanques americanos, os
maiores do mundo hoje], fazer a
comparação e depois perguntar [como fez o apresentador de TV David
Letterman ao ex-âncora Dan Rather
em seu primeiro programa pós-11 de
Setembro]: "Por que eles não gostam de nós?". (Risos.)
Folha - A impressão de um estrangeiro nos EUA é que há uma grande
parte da população composta apenas
de seguidores, seja de que líder for.
Isso fica evidente no filme, não?
Romero - Exatamente. Isso está
acontecendo em ambos os lados da
trincheira, pelo menos no filme.
Kaufman tem o governo, o controle
sobre a vida dos que aceitam viver
com ele na torre, o dinheiro, a caneta
Montblanc, enquanto todo o pessoal
que realiza os serviços pesados está
relegado a outra parte da cidade,
protegida dos zumbis, também, mas
com muito pouco. Entre os zumbis
ocorre o mesmo.
Folha - O sr. nasceu no Bronx (NY),
mas morou a vida inteira em Pittsburgh, na Pensilvânia. O fato de ser
uma ex-cidade operária, que já foi conhecida como a "cidade do aço" dos
EUA e hoje estar mais voltada para a
informática, com um alto índice de
desemprego entre a classe operária, o
influenciou de alguma maneira?
Romero - Talvez haja uma influência aí, sim. Pittsburgh tem aquela integridade forte do operário. Mas
também é brutal. Mas não sei se a
inspiração para o primeiro filme
veio conscientemente daí. Acho que
foi mais da frustração da minha geração, de que íamos mudar o mundo, revolucionar tudo e não conseguimos. Inicialmente, eu iria fazer
da revolta dos zumbis uma revolta
frustrada, mas fui continuando.
Pensei: por que não deixar eles vencerem, ao menos nos meus filmes?
Folha - O sr. fala em revolução. Ainda há uma possível? Terroristas são
terroristas, e seu presidente já disse
"Nós não negociamos com eles", fala
aliás repetida por Kaufman no filme.
Romero - Terrorismo talvez seja o
"ismo" possível hoje, aos quais algumas pessoas se voltem quando querem se rebelar contra algo. Não estou dizendo com isso que os apoio,
mas é uma maneira de encarar o fenômeno. Quando você olha para um
ultrapatriota norte-americano, aliás,
é difícil apontar as diferenças entre
os dois. Há razões pelas quais as pessoas estão nos atacando, e não estamos pensando suficientemente nelas. Estamos, sim, nos protegendo
cada vez mais, mas a cerca que nos
guarda também nos prende.
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