São Paulo, domingo, 17 de julho de 2005

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Em "Terra dos Mortos", George Romero retoma suas metáforas da sociedade americana comparando os mortos-vivos a iraquianos e afegãos, e diz sublimar, em seus filmes, a frustração da revolução que não veio

A nação zumbi

SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A LOS ANGELES

Sangue jorrando como esguicho de jardim, membros decepados e gritos. Esses serão os principais motivos que levarão as pessoas a assistir à "Terra dos Mortos", a retomada do mítico diretor marginal norte-americano George A. Romero, 65, à sua conhecida "trilogia dos zumbis", que estréia sexta-feira no Brasil. Mas há algo mais sob o chão tomado de carne humana mastigada. Como fez com os três filmes originais, que deram origem a um gênero ("zombie movie") e influenciaram gerações de cineastas, de Brian De Palma a Quentin Tarantino, Romero empurra uma mensagem altamente engajada enquanto fatura o ingresso do espectador-pipoca.
Se "A Noite dos Mortos-Vivos" (1968) fazia uma crítica semivelada à tensão racial dos EUA dos anos 50 e 60, "Terra dos Mortos" é o primeiro filme pós-11 de Setembro a colocar fundo o dedo na ferida aberta na alma do país depois do ataque terrorista que derrubou o World Trade Center, em Nova York, destruiu parte do Pentágono, em Washington, e arranhou a até então inabalável certeza do norte-americano médio no "american way of life". Há uma torre, há uma cidade protegida por rios e cercas e afundada em medo, há um exército de despossuídos (os zumbis) querendo destruir esta cidade e há um comandante disposto a tudo para impedi-los.


Eu iria fazer da revolta dos zumbis uma revolta frustrada, mas pensei: por que não deixar eles vencerem, ao menos nos meus filmes?


A metáfora da torre é óbvia, a cidade são os Estados Unidos, o medo é a "guerra ao terror" de George W. Bush, e Kaufman, o comandante, foi inspirado no falcão Donald Rumsfeld, o secretário de Defesa norte-americano, personagem que ganha ainda mais ironia ao ser interpretado pelo republicano Dennis Hopper. Quem faz todas as ligações e confirma todas as ilações é o próprio Romero, em entrevista à Folha em Los Angeles. Eterno revolucionário, ainda se veste como se tivesse acabado de sair de uma passeata contra qualquer coisa, de rabo-de-cavalo, barba grisalha, o mesmo colete pespegado de broches antigoverno -e óculos de Mr. Magoo, sinal da idade.
"Os zumbis são os afegãos, são os iraquianos!", empolga-se. "São a classe operária na sociedade dos monstros." Leia a entrevista abaixo.
 

Folha - Por que usar zumbis, mortos-vivos, como metáfora?
George A. Romero -
Na verdade, nos anos 60, comecei roubando a idéia de Richard Matheson [um dos roteiristas de "Jornada nas Estrelas" e "Além da Imaginação"]. Era um romance dele chamado "Eu Sou a Lenda" [1954], que basicamente conta a história do último sobrevivente da Terra, tomada por vampiros. Gostei da idéia, vi que havia algo de revolucionário aí, mas eu gostaria de começar do começo e contar como aquilo teria acontecido, então escrevi um conto. No texto, sempre pensei em três partes: a primeira noite, um mês depois e um ano depois. Esse último, aliás, não passava de uma frase. Daí nasceram "A Noite dos Mortos-Vivos" (1968), "Despertar dos Mortos" (1978) e "Dia dos Mortos" (1985).
Na minha cabeça, o enredo tratava sempre de revolução, o eterno "nós" contra "eles", variando os "nós" e os "eles" conforme a época. Na origem, eu nem os chamava de "zumbis". Para mim "eles" eram fantasmas, comedores de carne humana, tanto que o título original do primeiro filme era "A Noite dos Comedores de Carne Humana". Foram alguns jornalistas e críticos que começaram a chamá-los de zumbis. Naquela época, zumbis eram pessoas que faziam feitiçaria em algum lugar do Caribe. Mas sempre achei que os zumbis são a classe operária na sociedade dos monstros (risos). Encaixou.

Folha - E o medo?
Romero -
Sempre existe um "nós" e uma força externa. Isso está acontecendo agora nos EUA. Se eu tivesse de dar nome aos bois diria que nesse meu último filme os zumbis são os afegãos, os iraquianos! Quando o tanque dos defensores da torre anda pelas ruas esmagando carros, casas e zumbis, é difícil não pensar nos Abrams [tanques americanos, os maiores do mundo hoje], fazer a comparação e depois perguntar [como fez o apresentador de TV David Letterman ao ex-âncora Dan Rather em seu primeiro programa pós-11 de Setembro]: "Por que eles não gostam de nós?". (Risos.)

Folha - A impressão de um estrangeiro nos EUA é que há uma grande parte da população composta apenas de seguidores, seja de que líder for. Isso fica evidente no filme, não?
Romero -
Exatamente. Isso está acontecendo em ambos os lados da trincheira, pelo menos no filme. Kaufman tem o governo, o controle sobre a vida dos que aceitam viver com ele na torre, o dinheiro, a caneta Montblanc, enquanto todo o pessoal que realiza os serviços pesados está relegado a outra parte da cidade, protegida dos zumbis, também, mas com muito pouco. Entre os zumbis ocorre o mesmo.

Folha - O sr. nasceu no Bronx (NY), mas morou a vida inteira em Pittsburgh, na Pensilvânia. O fato de ser uma ex-cidade operária, que já foi conhecida como a "cidade do aço" dos EUA e hoje estar mais voltada para a informática, com um alto índice de desemprego entre a classe operária, o influenciou de alguma maneira?
Romero -
Talvez haja uma influência aí, sim. Pittsburgh tem aquela integridade forte do operário. Mas também é brutal. Mas não sei se a inspiração para o primeiro filme veio conscientemente daí. Acho que foi mais da frustração da minha geração, de que íamos mudar o mundo, revolucionar tudo e não conseguimos. Inicialmente, eu iria fazer da revolta dos zumbis uma revolta frustrada, mas fui continuando. Pensei: por que não deixar eles vencerem, ao menos nos meus filmes?

Folha - O sr. fala em revolução. Ainda há uma possível? Terroristas são terroristas, e seu presidente já disse "Nós não negociamos com eles", fala aliás repetida por Kaufman no filme.
Romero -
Terrorismo talvez seja o "ismo" possível hoje, aos quais algumas pessoas se voltem quando querem se rebelar contra algo. Não estou dizendo com isso que os apoio, mas é uma maneira de encarar o fenômeno. Quando você olha para um ultrapatriota norte-americano, aliás, é difícil apontar as diferenças entre os dois. Há razões pelas quais as pessoas estão nos atacando, e não estamos pensando suficientemente nelas. Estamos, sim, nos protegendo cada vez mais, mas a cerca que nos guarda também nos prende.


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