São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997.



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LIVROS
O requinte de José Paulo Paes

Erudição é a marca de 'Os Perigos da Poesia', a nova coletânea de ensaios do autor



A OBRA
Os Perigos da Poesia e Outros Ensaios - José Paulo Paes. Ed. Topbooks (r. Visconde de Inhaúma, 58, sala 413, CEP 20091-000, RJ, tel. 021/233-8718). 207 págs. R$ 24,00.



JOSÉ LINO GRÜNEWALD
especial para a Folha

"Perigos amigos
Inimigos perigos;
Sigo e digo: abrigos."

Um livro de instigações e que, em certas esquinas, corteja alguns perigos. Enquanto o autor destina-o à "minoria heróica" (os poetamantes), na orelha Ivan Junqueira relembra dois respeitáveis e quase esquecidos críticos e ensaístas -Augusto Meyer e Othon Moacyr Garcia-, que evidentemente não precisariam ter tomado conhecimento das Éditions du Seuil e das decorrentes nomeações e maneirismos estruturalistas (ah! os intertextos...).
José Paulo Paes tem senso de humor. Afinal, entre outras coisas, é o autor de uma das melhores minipeças do gênero: o poema-pílula, paraconcreto, espacializado, "O Suicida ou Descartes às Avessas" ("cogito/ ergo/ pum") -publicado no número três da revista "Invenção". Agora, neste "Os Perigos da Poesia", o humor está menos frontal, substituído pelo refinamento e, não raramente, por algo que invoca uma palavra perigosa: erudição.
Estão presentes muitos temas e pessoas: Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Glauco Mattoso, Alberto da Costa e Silva, Carlos Ávila, Felipe Fortuna, Coleridge ou o grego Zakythinós. Mas gostaríamos de nos deter nuns determinados tópicos.
De saída, o ensaio de abertura, "Para uma Pedagogia da Metáfora". No desenvolvimento de sua tese, são utilizadas várias recorrências teóricas ou pragmáticas. Logo no início Pascal e, depois, Aristóteles, com suas artes retórica e poética, valendo lembrar que a idéia grega de arte como imitação não possui nenhuma relação com o conceito e o distanciamento no mundo cristão moderno, pois, para os gregos, como lembrava Otto Maria Carpeaux ("História da Literatura Ocidental"), vida e arte eram a mesma coisa.
Há uma exemplificação do poeta surrealista grego Nikos Eggonópoulos, a seguir de Sosígenes Costa, e a "impessoalidade do olhar do poeta", em William Carlos Williams, no poema "A Duração", em que, apesar de tudo, o subjetivo contamina o objetivo. A seguir, a rosa de Manuel Bandeira ilustraria o "inscape" de Hopkins. Temos a "matemática superior da poesia", de Hugo Friedrich (um belo analista dos simbolistas), o pensamento selvagem de Lévi-Strauss e nos detemos numa citação de Croce: "Acima da estreiteza do finito, a extensão do infinito". Ela nos remete à idéia básica de Alfred North Whitehead de que o processo é a permanência do infinito nas coisas finitas. E, encerrando, Heidegger, o maior pensador do século. O jogo da poesia: "Parece, mas não é".
Esse ensaio sobre a metáfora traduz uma excelente contribuição para o assunto e o rosto na brincadeira do esconde-esconde é um grande Leitmotiv. Do mesmo modo, a criação do termo "complexo de Anfion", no artigo sobre Carlos Ávila, é muito bem sacada.
Des Esseintes: uma viagem de ida e volta. Uma outra etapa sensível do livro. José Paulo Paes já havia traduzido o romance "Às Avessas", de Huysmans, em 1987. Agora, o personagem que gerou o hermetismo (santo) de Mallarmé, em "Prose pour Des Essseintes".
E José Paulo Paes concretiza um tour de force, pois se trata de um poema de difícil tradução em seus octossílabos. Como qualquer profissional do ramo, ele faz pequenas "traições" funcionais ("fer" por chumbo, por exemplo). Mas se mantém coerente com a estrutura significante/significado do original. Só não entendemos por que rompeu com a métrica (passando para nove sílabas) em versos não necessários. Por exemplo: "Glória em seu longo sentir, Idéias" -bastaria tirar o possessivo "seu", completamente supérfluo e que nem sequer está no original; e, aqui, uma ligeira traição inútil: "désir" poderia ser traduzido por "querer". Outro: "Esse nome -Pulquéria- tão pulcro". Que tal trocar "esse" por "tal"? De qualquer forma, diminutas observações para um resultado de porte.
Em "Salvação e Danação" vêm traduzidos dois sonetos de Paul Verlaine, acompanhados de um texto correspondente. No primeiro deles, o poeta, intencionalmente, cometeu a transgressão e começou pelos dois tercetos. O segundo é dedicado ao companheiro, amante satânico, Arthur Rimbaud, o genial. O ensaio fala de Baudelaire, Huysmans e os pontos de vista de André Rousseaux. É outra das partes mais interessantes dos "perigos".
Algumas opiniões e/ou observações finais. Na "Revisitação de Jorge Lima", José Paulo procura evidenciar a desigualdade na trajetória do lançador de "Essa Nega Fulô". Com razão. O injustamente quase esquecido Jorge de Lima realizou passagens sensacionais na língua num caudal-cabedal de trechos anódinos. Sua obra mais ambiciosa, "Invenção de Orfeu", é uma sensacional colcha de retalhos com versos e sonetos fabulosos. E vem-me à memória a sua grande figura humana de médico (meu), ali na Cinelândia, no "consultório mítico e lunar" de que falava Drummond. Quanto ao termo "enumeração caótica", trata-se de uma invenção do linguista Leo Spitzer.
Enfim, discordo da expressão de Ungaretti ao dizer que a poesia é um "ato de purificação moral". A palavra "moral" é gasta, deturpa e refere-se a costumes. Por exemplo: o mito da virgindade feminina vai por água abaixo com a pílula e o acesso ao mercado de trabalho. Ninguém vai perguntar do "passado" de uma mulher que ganhe R$ 10 mil por mês. Deveria ser substituída pela palavra "ética" -esta sim, referindo-se a padrões de relacionamento humano desde o começo da civilização. É isso aí.


José Lino Grünewald é poeta e jornalista, autor de "Um e Dois" e "Carlos Gardel, Lunfardo e Tango". Traduziu os "Cantos", de Ezra Pound.



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