São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2008

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Tulsa: O coração do televangelismo

Vi [no Rio] garotos abandonados nas ruas; eu chorei

DO ENVIADO ESPECIAL AOS EUA

Tulsa, Oklahoma, é o centro do televangelismo norte-americano, a fivela do "cinturão da Bíblia" -alcunha atribuída ao conjunto de Estados do sul onde é marcante a presença de evangélicos conservadores.
É aqui que Oral Roberts, um dos ícones religiosos do país, fundou a sua universidade, em 1963, e concebeu, a partir de visões de Jesus Cristo, um grandioso complexo hospitalar.
Batizado de Cidade da Fé, sua vocação era unir medicina e preces. O complexo médico carismático foi inaugurado em 1981 e, em menos de dez anos, em meio a uma profunda crise financeira (e a despeito dos US$ 9 milhões arrecadados entre os fiéis, graças a uma campanha televisiva), teve de converter suas torres em prédios de escritório.
Em 2007, Richard Roberts, filho mais moço de Oral e principal herdeiro da igreja do pai, se viu envolvido num escândalo de malversação de verbas e foi obrigado a se demitir da presidência da universidade.
Oral Roberts ficou conhecido, a partir dos anos 40, por suas cruzadas pelo país, primeiro em tendas itinerantes e depois no rádio e na televisão.
Pregava a cura pelo toque -paralíticos largavam as muletas e saíam andando, mudos falavam, cegos passavam a ver. Exortava os telespectadores a aproximarem as mãos da tela do televisor em casa.
Gerou controvérsia quando passou a dizer que também ressuscitava mortos.
Carlton Pearson, 55, veio para Tulsa estudar na Universidade Oral Roberts, o maior sonho de sua família de quatro gerações de pentecostais negros e pobres de San Diego, na Califórnia. E logo se tornou o preferido de Roberts, que precisava de cantores negros em sua igreja.
"Eu era o filho negro de Oral", diz Pearson, com uma ponta de orgulho, em seu escritório no centro de Tulsa.
Durante anos, ele e Richard, que se preparava para herdar o império evangélico do pai, trabalharam juntos para a igreja, como irmãos: "Cantávamos, pregávamos e tirávamos o diabo do corpo das pessoas".
O talento de Pearson para o negócio vinha de longa data, desde que, aos 16 anos, expulsou o diabo do corpo da namorada: "Tínhamos jejuado e rezado juntos. E ela foi possuída. Depois, achei que era uma traidora. Mas, se acredita no diabo, do modo como fomos ensinados a crer, ele se manifesta".

O pastor herege
Pearson acabou alcançando projeção nacional como líder da maior igreja neopentecostal de Tulsa, a Higher Dimensions (Dimensões Superiores) -com 5.000 membros-, e organizador de uma concorrida conferência anual de 40 mil pastores evangélicos, antes de cair em desgraça e passar a ser chamado de herege por seus pares.
Sua heresia não foi de ordem financeira ou sexual, pecados que têm acometido evangélicos ilustres nos EUA, levando-os a perder não só a moral mas suas congregações.
É o caso célebre de Ted Haggard, que comandava a Associação Nacional de Evangélicos, com 30 milhões de membros, e que foi à televisão condenar Pearson, antes de cair ele mesmo em desgraça, em 2006.
Haggard, que também estudou na Universidade Oral Roberts antes de fundar a New Life Church (Igreja Vida Nova), em Colorado Springs, era um homem casado e pregava os valores da família contra o aborto e o casamento homossexual, até ser desmascarado como consumidor de metanfetaminas e cliente regular de um "acompanhante profissional".

O inferno não existe
"Acho que agora ele está tentando conseguir um diploma em psicologia", diz Pearson, cuja descida aos infernos teve início quando passou a dizer, para indignação e horror de seus colegas evangélicos, que o inferno não existe.
A iluminação veio em 1995, enquanto assistia a um programa sobre o genocídio em Ruanda, na TV:
"Somos nós que criamos o inferno. Vi tudo aquilo com meu filho pequeno sentada no colo. Ouvi a voz que eu achava ser de Deus, falando à minha alma, perguntando sobre meu filho, que engatinhava entre as minhas pernas: "O que esse menino pode fazer para você mandá-lo para o inferno, para ser torturado para sempre?". Nada, pensei. "E o que o leva a pensar que nós faríamos isso com ele?", disse a voz. Está na Bíblia, respondi. Comecei pelo inferno e acabei denunciando a Bíblia. Muito do que está na Bíblia é superstição, mito. Passei a pregar isso toda semana. Não dizia literalmente, preto no branco, mas já não idolatrava as Escrituras. Foi o que me pôs em apuros com os evangélicos."
Pearson se converteu ao que hoje ele chama de "evangelho da inclusão": o amor aos marginalizados, aos drogados, aos homossexuais, aos soropositivos etc. Mas foi só depois da eleição de Bush, em 2000, que ele próprio e seus pares começaram a entender as conseqüências do que estava dizendo. Afinal, se o inferno não existe e ninguém precisa ser salvo, para que servem as igrejas?
Os fiéis debandaram. No final, restavam 200 num auditório de 2.200 lugares. Em dezembro de 2005, Pearson foi obrigado a vender a igreja.
"A propriedade valia cerca de US$ 6 milhões. Ainda devíamos US$ 2,8 milhões de hipoteca. Renunciei ao nome. Perdi meu programa de TV, meus direitos intelectuais, meu seguro. Fiquei só com as calças."

Bispo de brinco
"Perdi meus cartões de crédito. Minha renda vinha de pregações e palestras. Ninguém me convidava para mais nada. Ted Haggard foi à TV dizer que, se me abandonaram, era o mercado, como um show do qual as pessoas não gostam. Há 1.600 denominações religiosas nos EUA. Se você não gosta do que é dito numa igreja, atravessa a rua e vai assistir ao serviço em outra. As pessoas são devotas do inferno. Têm um compromisso com o inferno. Então, quando tirei o diabo delas, ficaram indignadas e o queriam de volta", diz.
Pearson fundou imediatamente uma nova igreja (a New Dimensions, Novas Dimensões) para pregar seu "evangelho da inclusão".
Reinventou sua vocação pentecostal em meio ao universo das igrejas liberais americanas: "Ainda sou bispo, mas onde é que já se viu um bispo de brinco?", diz, às gargalhadas, apontando para a argola na orelha.
Hoje, já olha para trás com ironia. Mantém um escritório no 29º andar do segundo prédio mais alto do centro de Tulsa, com fotos dos filhos e da mulher sobre a mesa, de onde avista não apenas um punhado de igrejas de diferentes denominações, aos seus pés, mas também as torres da Cidade da Fé, ao longe: "Queria poder ver as coisas de cima", diz, rindo.
A comunidade judaica e os gays o acolheram na queda. E, desde então, passou a freqüentar os que antes condenava. "Eu costumava passar pela frente desta igreja dizendo "o diabo mora aí". E agora o diabo sou eu aqui", diz para uma platéia de 30 pessoas, durante o serviço de quarta-feira à noite, na Igreja Unitária Todas as Almas.
A igreja fica num dos bairros residenciais mais afluentes de Tulsa, construído com o dinheiro do petróleo, e é a maior congregação de uma das denominações religiosas mais heterodoxas do país, a ponto de não pregar a Bíblia.
"Eles já não eram racistas quando não era permitida a entrada de negros neste bairro depois das seis da tarde. Era esta igreja que o filho mais velho de Oral Roberts freqüentava quando se suicidou. Foi a única que o recebeu, porque ele era gay. Há muita hipocrisia na religião. Os fundamentalistas estão cheios de adúlteros, alcoólatras, fornicadores, drogados. Sabem disso e estão cansados de si mesmos. Os militantes antiaborto não fraquejam enquanto suas filhas não forem estupradas por um negro. Aí eles ficam a favor do aborto. Todo mundo é contra o aborto enquanto for conveniente", diz.
Pearson é republicano registrado desde a eleição de Ronald Reagan, em 1980. Fez campanha por Bush, em 2000, e foi recebido na Casa Branca.
Mas fica indignado quando lhe perguntam se faria o mesmo por McCain: "A América é muito orgulhosa para pôr na Casa Branca um homem que não consegue levantar o braço. Também não vai pôr ali um homem com sotaque. Nem um homem com aparência desagradável. Tampouco gosta de homens de óculos. É uma coisa psicológica. McCain não consegue apertar a mão das pessoas com o vigor de Obama".

Galinha morta
Falando em inferno, Pearson se lembra de uma visita ao Rio: "Vi garotos que formavam pequenas quadrilhas para roubar, abandonados nas ruas como cachorros. Eu chorei. E aí me levaram para visitar o Cristo [Redentor]. Me senti paralisado. O que nos leva a fazer isso uns aos outros? Lá de cima, via uma igreja a cada esquina".
"Uma catedral católica, uma igreja pentecostal e o fetichismo de uma galinha morta na qual eu tropecei ao entrar num banco. O que é que está acontecendo? Não há diferença entre a galinha morta e a catedral. É alimento para uma mentalidade fetichista de um Deus bravo que o matará se você não beijar os pés dele. Quero ver você publicar isso."


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