São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2000

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Em "Além do Carnaval" o historiador americano James Green faz um painel rigoroso do homossexualismo no Brasil neste século
Da belle époque à militância

Ronaldo Vainfas
especial para a Folha

Desde pelo menos o meado da década de 70 e, sobretudo após a de 80, tem se desenvolvido na Europa e nos EUA o que poderíamos chamar de "gay and lesbian history", um ramo da história cultural dedicado ao estudo dos grupos homoeróticos em perspectiva histórica. São trabalhos de antropologia ou sociologia histórica preocupados em resgatar a história da repressão desses grupos, seus códigos culturais próprios e as sociabilidades travadas no seio das subculturas gays ao longo do tempo. Bastaria citar a obra dirigida por J. Salvatore Licata no início dos anos 1980, "Historical Perspectives on Homosexuality" (Ed. Haworth) ou o recentíssimo "Queer Sites - Gay Urban Histories since 1600" (Ed. Routledge, 1999), organizado pelo historiador canadense David Higgs.
No Brasil se trata de um área de estudos ainda muito incipiente, exceto entre antropólogos e sociólogos, com a exceção do etno-historiador Luiz Mott, há décadas dedicado ao tema, sobretudo no tocante aos tempos inquisitoriais. É muito bem-vindo, portanto, este "Além do Carnaval", livro do historiador norte-americano James Green, autor que há mais de 20 anos conhece e pesquisa no Brasil. É livro sobre o "mundo gay" em duas grandes cidades brasileiras, São Paulo e, sobretudo, Rio de Janeiro, desde as últimas décadas do século passado até cerca de 1980, e nele encontramos, num texto primoroso, uma análise vertical das comunidades de homossexuais num período relativamente longo de nossa história, considerando a velocidade da mudança de padrões socioculturais ocorrida neste século agonizante. James Green se revela, aliás, muito atento a essa variável na análise de seu objeto, procurando verificá-la quer no tocante aos padrões de estigma ou perseguição da homossexualidade, quer quanto aos modelos de comportamento, sociabilidade e identidade dos "homens que procuravam outros homens para aventuras sexuais", para usar uma expressão do autor. A linguagem do livro é mesmo um dos pontos altos da obra, cuja tradução é também excelente, e não apenas pela fluência da narrativa, como pela precisão do vocabulário analítico e descritivo, situado na fronteira entre o linguajar das épocas estudadas e o aparato conceitual do historiador. O resultado é excelente. Um livro muito documentado e cheio de originalidades, que procura examinar a representação e autoconstrução de um grupo específico: os praticantes do homoerotismo desde a belle époque até os anos 80, tempo em que começaram a se organizar os movimentos de luta pelos direitos dos homossexuais no Brasil. Nota-se, por sinal, a sistemática correlação entre o microtema e varáveis históricas globais: o processo de urbanização e modernização do Rio e de São Paulo na virada do século; a crise dos anos 20 e o mundo no entreguerras; o pós-45, os "revolucionários" anos 60 e as transformações das décadas mais recentes. É com estilo e conhecimento de causa que o autor passa da história geral para a análise microscópica de grupos ou indivíduos emblemáticos de seu objeto de estudo, dando mostra definitiva do grande historiador que é. O primeiro capítulo, "Os Prazeres nos Parques do Rio de Janeiro na Belle Époque Brasileira, 1898-1914", trata de um tempo em que nem por sonho os homossexuais ousavam assumir-se como tais, salvo raras exceções, sendo objeto de fortes estigmas e por vezes da perseguição policial. Utilizando, entre outras fontes, as crônicas de João do Rio, Green descortina as "esquinas do pecado", a exemplo do afamado "point" do largo do Rossio, onde ficava a praça da Constituição que o governo republicano rebatizou de praça Tiradentes. Analisa, por outro lado, a literatura estigmatizante, incluindo preciosas charges em que o homoerotismo era alvo de deboche. Examina, enfim, o que se poderia chamar de "protopornografia", como o "Rio Nu" e o audacioso conto "O Menino do Gouveia" (1914), de Adolfo Caminha. O capítulo seguinte, "Sexo e Vida Noturna, 1920-1945", mantém o assunto e o tom, porém alarga a temporalidade e as questões suscitadas por um mundo em transformação. No que toca ao mundo gay, desponta a análise do vocabulário usual para designar os homossexuais, assimilado aliás pelos próprios, desde os antigos termos "sodomitas" e "fanchonos", que caíram em desuso, até a adoção do "viado", com i, e "bicha", cuja origem localiza ali pelos anos 20-30. Desponta o item sobre Madame Satã, "a rainha negra da boemia brasileira". Desponta a análise da topografia do homoerotismo masculino nas duas cidades: pensões, cinemas, banheiros públicos, o que Green faz recorrendo a uma sociologia histórica do grupo pesquisado. "Controle e Cura", título do terceiro capítulo, versa sobre a literatura médica das primeiras décadas do século, inspirada por intelectuais do porte de Cesare Lombroso (1836-1909), "um dos pioneiros no campo da antropologia criminal". E nisso vale lembrar a pesquisa de um certo Leonídio Ribeiro, diretor de identificação da Polícia Civil do Distrito Federal nos anos 30, baseado na antropometria à moda lombrosiana, de 195 detidos pela polícia por "atentado ao pudor".

Protótipo do "bicha"
Sua conclusão foi a de que o protótipo do "bicha" era a de "um homem jovem, de peso abaixo da média, altura mediana e braços e pernas mais compridos do que o normal, com um tórax pequeno". Supunha, sem explicar o porquê, que o desenvolvimento dos ossos estava relacionado com o sistema hormonal, daí com a sexualidade, provável razão de ter intitulado seu estudo "Homossexualismo e Endocrinologia", texto ilustrado com fotos. O quarto capítulo, "Novas Palavras, Novos Espaços, Novas Identidades, 1945-1968", mantém a preocupação com os espaços urbanos do homoerotismo, mas verticaliza o tema da construção de uma identidade "homossexual". Novos espaços vêm à cena, como a Cinelândia ou Copacabana, no Rio, sendo que na última, o "point" na praia ficava em frente ao Copacabana Palace e era chamado pelos "entendidos" de "Bolsa de Valores" -"pela qualidade dos encontros e flertes", esclarece Green, "que ocorriam lá". Mas o ponto alto do capítulo é a discussão da identidade, a lenta, mas determinada, superação do modelo "bicha/bofe", o surgimento de uma literatura "doméstica" própria dos homossexuais, como "Snob", que durou até 1969, e "Gente Gay". É, talvez, o capítulo central do livro. "A Apropriação Homossexual do Carnaval Carioca" é quase um parêntesis nesta narrativa linear-cronológica adotada pelo autor, texto no qual o autor recua ao início do século e avança até 70, tendo como eixo central a idéia de que o carnaval, seus espaços, ritos e festas, foi sendo lentamente construído como um lugar defensivo e afirmativo, embora multifacetado, da identidade homoerótica. O capítulo final, assume como título o lema "Abaixo a Repressão - Mais Amor e Mais Tesão, 1969-1980", elegendo como objeto a construção de uma identidade afirmativa, o surgimento de movimentos e imprensa militantes.

Grande política
É especialmente interessante a análise que faz o autor da politização do movimento gay em seus primórdios, inclusive no tocante à "grande política", apesar do pouco engajamento dos homossexuais assumidos na resistência ao regime militar e do ocultamento da opção "homo" por parte daqueles que se engajaram nessas militâncias. Tudo isso, vale dizer, sem prejuízo da reconstituição dos espaços gays no cotidiano das cidades e de uma análise sociohistórica rigorosa, que extrapola a dimensão mais visível e deslumbrante do mundo gay assumido.
Tem razão, pois, Robert Levine, renomado brasilianista, ao comentar que o livro de Green "traz uma contribuição inestimável a uma área negligenciada da história brasileira".



Além do Carnaval
541 págs., R$ 40,00 de James Green. Ed. Unesp (praça da Sé, 108, CEP 01001-900, SP, tel. 0/xx/11/ 232-7171).



Ronaldo Vainfas é professor titular do departamento de história da Universidade Federal Fluminense e autor de "Trópico dos Pecados" (Nova Fronteira).


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