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"Função Fraterna" reúne ensaios que discutem as transformações por que passou a psicanálise
O alcance político da psique
Renato Janine Ribeiro
especial para a Folha
Já no prefácio, Jurandir Freire Costa
explica o que esse livro pretende: indagar em que medida o modelo freudiano
ainda explica uma vida psíquica que mudou muito, e não só nos sintomas, de um
século para cá. Mas é claro que das mudanças psíquicas eu pouco poderia falar,
não sendo psicanalista. Por isso discutirei aqui a política implicada na proposta
de reduzir o alcance do pai, ou da relação
"vertical", em favor de uma relação mais
"horizontal", entre irmãos.
Horror e bondade
Em linhas gerais,
podemos dizer que a modernidade rompe com a Idade Média de duas maneiras
contrastantes. A primeira é uma ruptura
com a ética medieval: a moral cristã passa a ser vista como equivocada, levando,
a despeito de sua aparente bondade, os
homens ao erro e mesmo à infelicidade.
Maquiavel afirma-o e, depois dele, Hobbes e também Freud. Em que pesem suas
diferenças, os três pensadores entendem
que na experiência humana há um certo
horror, algo que não pode ser moral ou
moralizado: sempre que se ignora esse
quase-inominável, os resultados são piores que a encomenda.
A segunda maneira rompe não tanto
com a idéia de que exista uma bondade
humana, mas com seu conteúdo cristão.
Não considera que no cerne da experiência humana esteja o horror (este, ao contrário, seria fruto de condições sociais),
mas algo positivo ou possivelmente positivo. As propostas de um mundo melhor, em Rousseau, Marx e na esquerda
freudiana, vão por aí.
Assim se recusa tanto a idéia de um
cerne assustador, irredutível, da humanidade quanto o conteúdo casto, porque
castrado, da moral cristã. Wilhelm Reich
o formulou claramente em nosso século,
ao dizer que por baixo do id (que seria
uma construção histórica) haveria uma
camada ainda mais profunda da psique,
na qual o ser humano é amoroso e só
agride se for ameaçado.
Ora, conforme a linha que escolhamos
dessas duas, as consequências para a democracia são diferentes. Os méritos da primeira linha estão na lucidez, na recusa
de ilusões. Mas disso resulta que ela não abre lugar para uma experiência propriamente
democrática, assim entendendo a que
acredita no seguinte:
1) a democracia é um valor positivo e
não apenas um regime útil para socializar a resolução dos conflitos; 2) a democracia vai além da organização do Estado, pois diz respeito ao modo como a
própria sociedade se relaciona e convive;
3) a democracia, por isso mesmo, deve
expandir-se para o mundo dos afetos,
saindo da esfera sobretudo racional para
também ser nosso modo afetivo de vida.
Uma democracia nesses
termos não cabe em
Freud -e não só porque
o divã não pode ser universalizado, isto é, não há
modo de analisar um a
um todos os cidadãos, mas porque a convicção de que o horror
esteja no cerne do humano restringe a
esperança de relações transparentes e
passíveis de gerar felicidade. O que procuram fazer os colaboradores deste volume, então, se para eles a democracia é
um valor, e a psicanálise, seu modo de
trabalhar?
Peso absoluto
Cada um tem seu
matiz, mas percebe-se uma convergência. Jurandir, por exemplo, usa Winnicott para diminuir o peso absoluto do
Édipo, ou seja, o papel do pai autoritário,
abrindo lugar para a fratria, a irmandade, com suas possibilidades de um relacionamento entre pares, como mostra
Maria Rita Kehl ao analisar os rappers da
periferia paulistana.
Como esclarece Luís Cláudio Figueiredo, não se suprime o software vertical,
mas se abre lugar, a par dele, para uma
experiência horizontal, fraterna e fraternal, da qual poderá nascer o democrático. Nenhum desses eixos dispensa o outro, mas o importante, um século depois
da Viena imperial e da rainha Vitória, é
pluralizar os referentes, é, pelo "downsizing" (mas não a eliminação) do pai
freudiano, negar que os dramas psicológicos de nosso tempo tenham por determinante um déficit de pai. Em suma:
sem entrar na discussão técnica, à qual
não poderia contribuir, tudo isso parece
muito interessante a quem discuta as repercussões políticas do psíquico, e em
especial seu alcance democrático.
Função Fraterna
248 págs., R$ 26,00
Maria Rita Kehl (org.). Ed. Relume-Dumará (travessa Juraci,
37, RJ, CEP 21020-220, tel.0/
xx/21/564-6869)
Renato Janine Ribeiro é professor de ética e filosofia política na USP, autor de, entre outros, "A Sociedade Contra o Social" (Companhia das Letras) e
"Ao Leitor sem Medo" (Ed. da UFMG).
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