São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2000

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Ponto de fuga

Perna-de-pau

Jorge Coli
especial para a Folha

Quando Miriam Muniz recita "I-Juca-Pirama", no filme "Amélia", seu personagem altera-se. Até este momento, ela compunha um trio de caipiras mineiras. Vinha de um mundo caboclo, descrito com verossimilhança, embora carregado em traços cômicos. As três, projetadas na sofisticação de um grande hotel carioca, repetiam as circunstâncias engraçadas da família Buscapé, "hillbillies" em Beverly Hills.
Podia-se, até ali, imaginar, por parte da cineasta Ana Carolina, as simpatias por um "Brasil profundo" e a recusa de seduções européias. Alguma coisa assim como o mito da "Tocaia Grande", de Jorge Amado, em que um paraíso primitivo brasileiro, rude mas "autêntico", se viu desbancado por uma Europa odiada, por uma ridícula influência francesa. Nessas últimas décadas, a França, outrora venerada, é sentida no Brasil -pelo menos em certos meios intelectuais- com um desprezo indulgente e, às vezes, com uma certa raiva ideológica, como se ela estivesse na origem de um exílio de nós mesmos.
Porém, com o Gonçalves Dias (1823-1864), essa inflexão do filme é desviada. Os personagens passam a adquirir uma carga simbólica muito forte. Mas qual? A de uma "identidade cultural" que se autoglorifica, atitude ainda tão presente entre nós? O final, inesperado, não permite pensar assim.
Uma crítica, então, a essa mesma famigerada "identidade cultural", que se desmascara no confronto com o estrangeiro? Ou o retrato de uma antropofagia mútua, uma devoração de parte a parte? Não fica claro. Mas é essa ausência de nitidez que torna as questões inda mais estimulantes.

Vissi d'arte - Em "Amélia", tudo gira em torno do acidente ocorrido com Sarah Bernhardt no Rio de Janeiro. Ao saltar de um praticável, no último ato da "Tosca", de Victorien Sardou, ela quebrou uma perna: haviam esquecido de dispor as almofadas necessárias para amortecer-lhe a queda. Essa perna lhe seria posteriormente amputada.
A Sarah Bernhardt do filme não segue uma veracidade histórica. Nem sequer o texto que recita é de Sardou: trata-se de uma tradução francesa do libreto posto em música por Puccini. Mas não importa. Ela é muito mais que uma caricatura: nesse filme, em que o riso brota tão espontaneamente, a grande atriz encarna contradições dolorosas, que se tornam inda mais verdadeiras e complexas pelo desempenho esplêndido de Béatrice Agenin. Os outros personagens, mesmo secundários, possuem também espessura e convicção. Se as intenções de "Amélia", referentes ao choque de culturas, podem mostrar-se enigmáticas, a sua verdade humana, essa, é indiscutível.

Bolacha - Nossas relações com os filmes mudam graças aos DVD. Não são um substituto muito empobrecido do cinema, como os antigos vídeos. Eles levam a uma percepção específica, enriquecedora, dos filmes e diversa da que se tem numa sala de projeção. Possuem uma qualidade luminosa muito alta e o som cristalino das gravações digitais; permitem uma grande agilidade na localização de cenas; respeitam nas boas edições o formato original da tela.
Talvez, com o DVD, o prazer seja mais sutilmente degustado. A compreensão de cenas e sequências torna-se muito aguda, e ele demonstra ser um extraordinário instrumento para o estudo das obras. Nossos vínculos com os filmes assemelham-se, então, àqueles mantidos com os livros amados.

Safadeza - Os DVDs estão ressuscitando, em belas condições, a história do cinema. Três títulos, três perversas obras-primas recentemente editadas, todas de 1960, centram-se numa curiosa obsessão: "Psicose", de Hitchcock, "Peeping Tom", de Michael Powell, "Os Mil Olhos do Dr. Mabuse", de Fritz Lang. São experiências perturbadoras de voyeurs.
Nos dois últimos casos, agem por câmera interposta. Exibem uma forma de sexualidade repressiva, gozo e crítica sobre códigos de moralidade que, naqueles tempos, entravam em crise.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:jorgecoli@uol.com.br


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