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Ponto de fuga
Perna-de-pau
Jorge Coli
especial para a Folha
Quando Miriam Muniz recita "I-Juca-Pirama", no filme "Amélia", seu
personagem altera-se. Até este momento, ela compunha um trio de caipiras mineiras. Vinha de um mundo caboclo, descrito com verossimilhança,
embora carregado em traços cômicos.
As três, projetadas na sofisticação de
um grande hotel carioca, repetiam as
circunstâncias engraçadas da família
Buscapé, "hillbillies" em Beverly Hills.
Podia-se, até ali, imaginar, por parte
da cineasta Ana Carolina, as simpatias
por um "Brasil profundo" e a recusa de
seduções européias. Alguma coisa assim como o mito da "Tocaia Grande",
de Jorge Amado, em que um paraíso
primitivo brasileiro, rude mas "autêntico", se viu desbancado por uma Europa
odiada, por uma ridícula influência
francesa. Nessas últimas décadas, a
França, outrora venerada, é sentida no
Brasil -pelo menos em certos meios
intelectuais- com um desprezo indulgente e, às vezes, com uma certa raiva
ideológica, como se ela estivesse na origem de um exílio de nós mesmos.
Porém, com o Gonçalves Dias (1823-1864), essa inflexão do filme é desviada.
Os personagens passam a adquirir uma
carga simbólica muito forte. Mas qual?
A de uma "identidade cultural" que se
autoglorifica, atitude ainda tão presente entre nós? O final, inesperado, não
permite pensar assim.
Uma crítica, então, a essa mesma famigerada "identidade cultural", que se
desmascara no confronto com o estrangeiro? Ou o retrato de uma antropofagia mútua, uma devoração de parte a parte? Não fica claro. Mas é essa ausência de nitidez que torna as questões
inda mais estimulantes.
Vissi d'arte - Em "Amélia", tudo gira
em torno do acidente ocorrido com Sarah Bernhardt no Rio de Janeiro. Ao
saltar de um praticável, no último ato
da "Tosca", de Victorien Sardou, ela
quebrou uma perna: haviam esquecido
de dispor as almofadas necessárias para
amortecer-lhe a queda. Essa perna lhe
seria posteriormente amputada.
A Sarah Bernhardt do filme não segue
uma veracidade histórica. Nem sequer
o texto que recita é de Sardou: trata-se
de uma tradução francesa do libreto
posto em música por Puccini. Mas não
importa. Ela é muito mais que uma caricatura: nesse filme, em que o riso brota tão espontaneamente, a grande atriz
encarna contradições dolorosas, que se
tornam inda mais verdadeiras e complexas pelo desempenho esplêndido de
Béatrice Agenin. Os outros personagens, mesmo secundários, possuem
também espessura e convicção. Se as
intenções de "Amélia", referentes ao
choque de culturas, podem mostrar-se
enigmáticas, a sua verdade humana,
essa, é indiscutível.
Bolacha - Nossas relações com os filmes mudam graças aos DVD. Não são
um substituto muito empobrecido do
cinema, como os antigos vídeos. Eles
levam a uma percepção específica,
enriquecedora, dos filmes e diversa da
que se tem numa sala de projeção. Possuem uma qualidade luminosa muito
alta e o som cristalino das gravações digitais; permitem uma grande agilidade
na localização de cenas; respeitam nas
boas edições o formato original da tela.
Talvez, com o DVD, o prazer seja
mais sutilmente degustado. A compreensão de cenas e sequências torna-se muito aguda, e ele demonstra ser um
extraordinário instrumento para o estudo das obras. Nossos vínculos com
os filmes assemelham-se, então, àqueles mantidos com os livros amados.
Safadeza - Os DVDs estão ressuscitando, em belas condições, a história
do cinema. Três títulos, três perversas
obras-primas recentemente editadas,
todas de 1960, centram-se numa curiosa obsessão: "Psicose", de Hitchcock,
"Peeping Tom", de Michael Powell,
"Os Mil Olhos do Dr. Mabuse", de Fritz
Lang. São experiências perturbadoras
de voyeurs.
Nos dois últimos casos, agem por câmera interposta. Exibem uma forma de
sexualidade repressiva, gozo e crítica
sobre códigos de moralidade que, naqueles tempos, entravam em crise.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:jorgecoli@uol.com.br
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