São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2006

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+(c)omportamento

A morte vem de bicicleta

Novo livro de Ian Buruma debate por que uma sociedade tão aberta como a Holanda falhou na integração cultural

WILLIAM GRIMES
Acontecem dois assassinatos em "Murder in Amsterdam" [Assassinato em Amsterdã, Penguin Press, 288 págs., US$ 24,95, R$ 54]. O primeiro ocorreu em 6 de maio de 2002, quando um defensor dos direitos dos animais, por motivos obscuros, abateu a tiros Pim Fortuyn, um carismático político populista cujo programa combinava conservadorismo, combate ao crime, oposição à imigração e liberação gay.
Um ano e meio mais tarde, um jovem muçulmano holandês de origem marroquina, irritado por um filme que criticava o islamismo, matou a tiros o cineasta e agitador Theo van Gogh, à luz do dia.
Como despedida, afixou um manifesto com uma faca ao corpo moribundo. Nas palavras do primeiro-ministro dos Países Baixos, foi tudo muito "não-holandês".
Bem, talvez um pouco mais holandês do que imaginávamos, propõe Ian Buruma em seu percuciente, sutil e bem argumentado estudo sobre as tensões e ressentimentos que embasam dois dos mais chocantes eventos da história holandesa recente.
Para começar, ambos os assassinos chegaram aos locais de seus crimes de bicicleta. Em termos mais sérios, ambos os crimes representam um tipo de confronto moral exacerbado que pode ser considerado uma especialidade holandesa. Para Buruma, "o calvinismo tem por característica defender princípios morais com rigidez excessiva, e isso pode ser considerado tanto um vício quanto uma virtude dos holandeses".
Buruma cresceu em Haia, mas o país ao qual retorna em seu livro se tornou virtualmente irreconhecível para ele, transformado pelo influxo de grande número de imigrantes muçulmanos da Turquia e do Marrocos. A experiência multicultural, a despeito das políticas de imigração liberais e dos serviços sociais de primeira ordem, não teve bons resultados.
Buruma também estuda a história pessoal das vítimas e de seus assassinos, tentando localizar as linhas de clivagem social que conduziram aos homicídios. O tema que conecta todas as histórias é a imigração e as insatisfações que ela gera, da parte de anfitriões e imigrantes igualmente.
Fortuyn construiu uma carreira improvável, explorando a profunda ansiedade do público holandês quanto à imigração, globalização e mudanças no caráter nacional do país. Costumava lançar invectivas contra o liso rosto do liberalismo holandês, ridicularizando a tolerância que este promovia com relação a práticas sociais islâmicas, que estão em confronto com a liberdade social.

Alcorão e mulheres nuas
Theo van Gogh fazia questão de ofender o islamismo da mesma maneira que fazia questão de ofender as elites políticas e quase tudo mais que estivesse ao seu alcance: certa vez, ele classificou Jesus como "o peixe podre de Nazaré".
Mas foi longe demais ao filmar "Submission", trabalho em parceria com a imigrante somali Ayaan Hirsi Ali no qual versos do Alcorão sobre o papel das mulheres eram projetados sobre corpos femininos nus.
Buruma sustenta que o debate sobre a imigração não pode ser compreendido sem que se leve em conta a longa sombra da Segunda Guerra Mundial. Questões de identidade nacional, raça e tolerância exercem pesada influência.
E a minoria não está satisfeita. Os filhos dos berberes pobres e muitas vezes analfabetos do Marrocos se saem especialmente mal na Holanda, e Buruma, com grande finesse, explora esse senso de deslocamento e alienação cultural.
Para pessoas oriundas de sociedades tribais rígidas, a liberdade da Holanda muitas vezes se provou opressiva, e Buruma sugere que talvez o islamismo não seja o fator dominante.
"O mais importante é a questão da autoridade, do respeito, em um domicílio em que o pai não podia oferecer muita orientação e em uma sociedade em que os jovens marroquinos talvez recebessem subsídios mais facilmente que respeito."

Apelo à razão
Buruma não tem uma solução infalível. Tendo definido as linhas de conflito, ele expressa sincera esperança de que a razão e a moderação prevaleçam, de ambas as partes.
O sentimento encontra simpatia imediata das pessoas sintonizadas nessa freqüência específica, mas a questão é como transmiti-lo aos fanáticos em suas bicicletas.
Este texto saiu no "The New York Times".
Tradução de Paulo Migliacci.



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