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+(c)omportamento
A morte vem de bicicleta
Novo livro de Ian Buruma debate por que uma sociedade tão aberta como a Holanda falhou na integração cultural
WILLIAM GRIMES
Acontecem dois assassinatos em
"Murder in Amsterdam" [Assassinato em Amsterdã,
Penguin Press, 288 págs., US$
24,95, R$ 54]. O primeiro ocorreu em 6 de maio de 2002,
quando um defensor dos direitos dos animais, por motivos
obscuros, abateu a tiros Pim
Fortuyn, um carismático político populista cujo programa
combinava conservadorismo,
combate ao crime, oposição à
imigração e liberação gay.
Um ano e meio mais tarde,
um jovem muçulmano holandês de origem marroquina, irritado por um filme que criticava
o islamismo, matou a tiros o cineasta e agitador Theo van
Gogh, à luz do dia.
Como despedida, afixou um
manifesto com uma faca ao
corpo moribundo. Nas palavras
do primeiro-ministro dos Países Baixos, foi tudo muito
"não-holandês".
Bem, talvez um pouco mais
holandês do que imaginávamos, propõe Ian Buruma em
seu percuciente, sutil e bem argumentado estudo sobre as
tensões e ressentimentos que
embasam dois dos mais chocantes eventos da história holandesa recente.
Para começar, ambos os assassinos chegaram aos locais
de seus crimes de bicicleta. Em
termos mais sérios, ambos os
crimes representam um tipo de
confronto moral exacerbado
que pode ser considerado uma
especialidade holandesa. Para
Buruma, "o calvinismo tem por
característica defender princípios morais com rigidez excessiva, e isso pode ser considerado tanto um vício quanto uma
virtude dos holandeses".
Buruma cresceu em Haia,
mas o país ao qual retorna em
seu livro se tornou virtualmente irreconhecível para ele,
transformado pelo influxo de
grande número de imigrantes
muçulmanos da Turquia e do
Marrocos. A experiência multicultural, a despeito das políticas de imigração liberais e dos
serviços sociais de primeira ordem, não teve bons resultados.
Buruma também estuda a
história pessoal das vítimas e
de seus assassinos, tentando
localizar as linhas de clivagem
social que conduziram aos homicídios. O tema que conecta
todas as histórias é a imigração
e as insatisfações que ela gera,
da parte de anfitriões e imigrantes igualmente.
Fortuyn construiu uma carreira improvável, explorando a
profunda ansiedade do público
holandês quanto à imigração,
globalização e mudanças no caráter nacional do país. Costumava lançar invectivas contra
o liso rosto do liberalismo holandês, ridicularizando a tolerância que este promovia com
relação a práticas sociais islâmicas, que estão em confronto
com a liberdade social.
Alcorão e mulheres nuas
Theo van Gogh fazia questão
de ofender o islamismo da mesma maneira que fazia questão
de ofender as elites políticas e
quase tudo mais que estivesse
ao seu alcance: certa vez, ele
classificou Jesus como "o peixe
podre de Nazaré".
Mas foi longe demais ao filmar "Submission", trabalho em
parceria com a imigrante somali Ayaan Hirsi Ali no qual
versos do Alcorão sobre o papel
das mulheres eram projetados
sobre corpos femininos nus.
Buruma sustenta que o debate sobre a imigração não pode
ser compreendido sem que se
leve em conta a longa sombra
da Segunda Guerra Mundial.
Questões de identidade nacional, raça e tolerância exercem
pesada influência.
E a minoria não está satisfeita. Os filhos dos berberes pobres e muitas vezes analfabetos
do Marrocos se saem especialmente mal na Holanda, e Buruma, com grande finesse, explora esse senso de deslocamento
e alienação cultural.
Para pessoas oriundas de sociedades tribais rígidas, a liberdade da Holanda muitas vezes
se provou opressiva, e Buruma
sugere que talvez o islamismo
não seja o fator dominante.
"O mais importante é a questão da autoridade, do respeito,
em um domicílio em que o pai
não podia oferecer muita
orientação e em uma sociedade
em que os jovens marroquinos
talvez recebessem subsídios
mais facilmente que respeito."
Apelo à razão
Buruma não tem uma solução infalível. Tendo definido as
linhas de conflito, ele expressa
sincera esperança de que a razão e a moderação prevaleçam,
de ambas as partes.
O sentimento encontra simpatia imediata das pessoas sintonizadas nessa freqüência específica, mas a questão é como
transmiti-lo aos fanáticos em
suas bicicletas.
Este texto saiu no "The New York Times".
Tradução de Paulo Migliacci.
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