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Memórias em confronto
Revolução Húngara (1956) e Revolução Cultural (1966) recebem hoje tratamento quase oposto em seus países
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
Entre os aniversários
que o mundo comemora em 2006 estão
os de duas revoluções
do século 20. Duas revoluções muito diferentes, a
Revolução Húngara de 1956 e a
Revolução Cultural chinesa de
1966, que são lembradas de
maneiras muito diferentes nos
países envolvidos.
Na Hungria, ocorreu um levante em 15 de outubro de 1956
contra o regime comunista
(ainda um regime novo), em
nome da liberdade e da democracia. Ao contrário do que poderíamos esperar do regime soviético, o governo de Moscou,
sob seu novo líder, Nikita
Khruschov, decidiu não intervir. Os russos enviaram seus
tanques para a Hungria somente uma semana depois,
quando temeram que o levante
se espalhasse para outros países sob seu domínio.
Igualmente, ao contrário do
que poderíamos esperar hoje,
os EUA decidiram não agir.
Após algumas semanas e milhares de mortes de ambos os
lados, a revolução (que os comunistas, é claro, chamaram
de "contra-revolução") foi suprimida. As fronteiras continuaram abertas durante alguns
dias, supostamente para permitir que os dissidentes escapassem, em vez de continuar
perturbando o regime.
Cerca de 250 mil "combatentes da liberdade" húngaros, como foram chamados pela imprensa ocidental na época,
aproveitaram a oportunidade
para fugir do país, exilando-se
no Reino Unido, Alemanha,
Canadá, EUA, Argentina e outros países.
Esses eventos estão sendo
comemorados neste ano em diversos lugares e, evidentemente, na própria Hungria. O governo húngaro organizou uma
comemoração oficial, ou uma
série de comemorações, enquanto vários eventos semelhantes em escala menor estão
ocorrendo no Canadá, Estados
Unidos e em outros lugares.
Essas comemorações assumem formas diversas, como
conferências acadêmicas, publicações, coleta de depoimentos de ex-participantes e vários
tipos de apresentações, desde
concertos memoriais até filmes históricos. Neste ano, dois
diretores húngaros lançaram
filmes sobre a revolução, "56",
de Ernö Nagy, e "Viagem para
Casa - Um Filme sobre Meu
Pai", de Réka Pigniczky.
Na verdade, as discussões sobre a revolução na Hungria
nunca cessaram, desde os
eventos. Essas discussões e debates ocorreram não apenas
em particular mas também -e
novamente ao contrário do que
se poderia esperar- em público, como tema mais ou menos
aberto de romances, poemas e
filmes como "Antes da Meia-Noite", de György Révész
(1957), "Filme de Amor", de
István Szabó (de 1970, sobre
um jovem casal separado pelos
acontecimentos de 56), e "Daniel Pega um Trem", de Pál
Sandor (1983).
O regime de János Kádár
(que assumiu o poder imediatamente depois que a revolução foi suprimida e permaneceu por mais de 30 anos, até
sua aposentadoria, em 1988)
parece ter adotado a idéia de
que era aconselhável permitir
que as pessoas expressassem
seus sentimentos em público.
Assim como as fronteiras
húngaras em novembro de
1956, quando a revolução foi
suprimida, as fronteiras da
censura foram deixadas abertas ou, ao menos, semi-abertas.
Abafamento
Em contraste, o regime chinês optou por uma política de
abafar as coisas, ao invés de deixá-las sair. A China ainda mantém silêncio publicamente sobre a Revolução Cultural que
começou em 1966, quando Mao
Tse-tung, presidente do Partido Comunista e governante do
país, criou a Guarda Vermelha
para reforçar sua posição contra seus rivais e críticos.
Encorajado por sua mulher,
Jiang Qing, e os outros membros da chamada "Gangue dos
Quatro", Mao usou esses guardas adolescentes, cada qual
com um livrinho vermelho
contendo os grandes pensamentos do líder, para sustentar
sua campanha, uma espécie de
cruzada contra a cultura chinesa tradicional.
Na primeira mobilização da
Guarda Vermelha na praça Tiananmen, Mao disse aos guardas
para destruir o que ele chamava
de "quatro velhos" -velhas
idéias, velha cultura, velhos
costumes e velhos hábitos.
Durante essa campanha, livros foram queimados e estátuas destruídas, enquanto milhões de pessoas, sobretudo intelectuais, foram mortos, presos, humilhados em público ou
mandados para o campo para
fazer trabalhos manuais. A revolução só chegou ao fim com a
morte do presidente Mao e a
prisão da Gangue dos Quatro,
em 1976.
Quando terminou, a revolução foi transformada em um
não-evento, pelo menos aos
olhos das autoridades.
Em uma visita à China em
1999, minha mulher e eu conhecemos um professor de história que nos contou que estava
coletando material para uma
história oral da Revolução Cultural. No entanto ele disse acreditar que teria de esperar 30
anos antes que pudesse publicar seu livro.
Um conhecido filme chinês,
"Adeus Minha Concubina", de
Chen Kaige (1993), baseado em
um romance de um escritor de
Hong Kong, inclui algumas cenas da Revolução Cultural como foi vivida e lembrada pelos
dois atores que são os protagonistas do filme.
Conversas privadas
No entanto esse filme foi originalmente proibido na China.
Assim como no passado, o governo chinês tentou neste ano
evitar mais uma vez debates
públicos sobre a revolução. Um
seminário privado sobre o tema
foi realizado em Pequim em
março, mas os participantes
evitaram comunicar-se por e-mail, esperando que o governo
não soubesse de seus planos.
Por outro lado, em particular, os chineses falam bastante
sobre os eventos, que foram
traumáticos para muitos indivíduos e suas famílias.
Uma das primeiras pessoas
que conhecemos quando chegamos à China foi nosso anfitrião, um professor que havia
passado os anos da Revolução
Cultural plantando arroz, enquanto sua filha entrou para a
Guarda Vermelha.
Fomos levados a conhecer
Pequim por um estudante que
disse que sua mãe havia sido da
Guarda Vermelha. Finalmente,
em Nanquim, conhecemos um
professor que nos contou que
ele mesmo havia sido um guarda vermelho.
Quando visitei a Argentina,
quase todo mundo que conheci
contou histórias pessoais sobre
os "desaparecidos".
De maneira semelhante, na
China todos pareciam ansiosos
para contar histórias sobre a
Revolução Cultural, como se
narrar esses fatos mais uma vez
para novos ouvintes lhes concedesse um alívio de suas experiências traumáticas. O que é
condenado e não pode ser discutido em público transborda
nas conversas privadas.
O depoimento mais marcante sobre a memória e sobre as
reações das pessoas comuns à
Revolução Cultural que encontramos em nossa visita à China
veio de outra estudante que foi
nossa guia em Pequim e Nanquim. Perguntamos seu nome e
ela respondeu: "Memória" (ou
"Lembrar", já que os chineses
não fazem distinção gramatical
entre substantivos e verbos).
"Por que seus pais lhe deram
esse nome?" A resposta: "Eu
nasci no dia em que prenderam
a Gangue dos Quatro".
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (ed. Jorge Zahar). Ele
escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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