São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2006

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Memórias em confronto

Revolução Húngara (1956) e Revolução Cultural (1966) recebem hoje tratamento quase oposto em seus países

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Entre os aniversários que o mundo comemora em 2006 estão os de duas revoluções do século 20. Duas revoluções muito diferentes, a Revolução Húngara de 1956 e a Revolução Cultural chinesa de 1966, que são lembradas de maneiras muito diferentes nos países envolvidos.
Na Hungria, ocorreu um levante em 15 de outubro de 1956 contra o regime comunista (ainda um regime novo), em nome da liberdade e da democracia. Ao contrário do que poderíamos esperar do regime soviético, o governo de Moscou, sob seu novo líder, Nikita Khruschov, decidiu não intervir. Os russos enviaram seus tanques para a Hungria somente uma semana depois, quando temeram que o levante se espalhasse para outros países sob seu domínio.
Igualmente, ao contrário do que poderíamos esperar hoje, os EUA decidiram não agir. Após algumas semanas e milhares de mortes de ambos os lados, a revolução (que os comunistas, é claro, chamaram de "contra-revolução") foi suprimida. As fronteiras continuaram abertas durante alguns dias, supostamente para permitir que os dissidentes escapassem, em vez de continuar perturbando o regime.
Cerca de 250 mil "combatentes da liberdade" húngaros, como foram chamados pela imprensa ocidental na época, aproveitaram a oportunidade para fugir do país, exilando-se no Reino Unido, Alemanha, Canadá, EUA, Argentina e outros países.
Esses eventos estão sendo comemorados neste ano em diversos lugares e, evidentemente, na própria Hungria. O governo húngaro organizou uma comemoração oficial, ou uma série de comemorações, enquanto vários eventos semelhantes em escala menor estão ocorrendo no Canadá, Estados Unidos e em outros lugares.
Essas comemorações assumem formas diversas, como conferências acadêmicas, publicações, coleta de depoimentos de ex-participantes e vários tipos de apresentações, desde concertos memoriais até filmes históricos. Neste ano, dois diretores húngaros lançaram filmes sobre a revolução, "56", de Ernö Nagy, e "Viagem para Casa - Um Filme sobre Meu Pai", de Réka Pigniczky.
Na verdade, as discussões sobre a revolução na Hungria nunca cessaram, desde os eventos. Essas discussões e debates ocorreram não apenas em particular mas também -e novamente ao contrário do que se poderia esperar- em público, como tema mais ou menos aberto de romances, poemas e filmes como "Antes da Meia-Noite", de György Révész (1957), "Filme de Amor", de István Szabó (de 1970, sobre um jovem casal separado pelos acontecimentos de 56), e "Daniel Pega um Trem", de Pál Sandor (1983).
O regime de János Kádár (que assumiu o poder imediatamente depois que a revolução foi suprimida e permaneceu por mais de 30 anos, até sua aposentadoria, em 1988) parece ter adotado a idéia de que era aconselhável permitir que as pessoas expressassem seus sentimentos em público.
Assim como as fronteiras húngaras em novembro de 1956, quando a revolução foi suprimida, as fronteiras da censura foram deixadas abertas ou, ao menos, semi-abertas.

Abafamento
Em contraste, o regime chinês optou por uma política de abafar as coisas, ao invés de deixá-las sair. A China ainda mantém silêncio publicamente sobre a Revolução Cultural que começou em 1966, quando Mao Tse-tung, presidente do Partido Comunista e governante do país, criou a Guarda Vermelha para reforçar sua posição contra seus rivais e críticos.
Encorajado por sua mulher, Jiang Qing, e os outros membros da chamada "Gangue dos Quatro", Mao usou esses guardas adolescentes, cada qual com um livrinho vermelho contendo os grandes pensamentos do líder, para sustentar sua campanha, uma espécie de cruzada contra a cultura chinesa tradicional.
Na primeira mobilização da Guarda Vermelha na praça Tiananmen, Mao disse aos guardas para destruir o que ele chamava de "quatro velhos" -velhas idéias, velha cultura, velhos costumes e velhos hábitos.
Durante essa campanha, livros foram queimados e estátuas destruídas, enquanto milhões de pessoas, sobretudo intelectuais, foram mortos, presos, humilhados em público ou mandados para o campo para fazer trabalhos manuais. A revolução só chegou ao fim com a morte do presidente Mao e a prisão da Gangue dos Quatro, em 1976.
Quando terminou, a revolução foi transformada em um não-evento, pelo menos aos olhos das autoridades.
Em uma visita à China em 1999, minha mulher e eu conhecemos um professor de história que nos contou que estava coletando material para uma história oral da Revolução Cultural. No entanto ele disse acreditar que teria de esperar 30 anos antes que pudesse publicar seu livro.
Um conhecido filme chinês, "Adeus Minha Concubina", de Chen Kaige (1993), baseado em um romance de um escritor de Hong Kong, inclui algumas cenas da Revolução Cultural como foi vivida e lembrada pelos dois atores que são os protagonistas do filme.

Conversas privadas
No entanto esse filme foi originalmente proibido na China. Assim como no passado, o governo chinês tentou neste ano evitar mais uma vez debates públicos sobre a revolução. Um seminário privado sobre o tema foi realizado em Pequim em março, mas os participantes evitaram comunicar-se por e-mail, esperando que o governo não soubesse de seus planos.
Por outro lado, em particular, os chineses falam bastante sobre os eventos, que foram traumáticos para muitos indivíduos e suas famílias.
Uma das primeiras pessoas que conhecemos quando chegamos à China foi nosso anfitrião, um professor que havia passado os anos da Revolução Cultural plantando arroz, enquanto sua filha entrou para a Guarda Vermelha.
Fomos levados a conhecer Pequim por um estudante que disse que sua mãe havia sido da Guarda Vermelha. Finalmente, em Nanquim, conhecemos um professor que nos contou que ele mesmo havia sido um guarda vermelho.
Quando visitei a Argentina, quase todo mundo que conheci contou histórias pessoais sobre os "desaparecidos".
De maneira semelhante, na China todos pareciam ansiosos para contar histórias sobre a Revolução Cultural, como se narrar esses fatos mais uma vez para novos ouvintes lhes concedesse um alívio de suas experiências traumáticas. O que é condenado e não pode ser discutido em público transborda nas conversas privadas.
O depoimento mais marcante sobre a memória e sobre as reações das pessoas comuns à Revolução Cultural que encontramos em nossa visita à China veio de outra estudante que foi nossa guia em Pequim e Nanquim. Perguntamos seu nome e ela respondeu: "Memória" (ou "Lembrar", já que os chineses não fazem distinção gramatical entre substantivos e verbos). "Por que seus pais lhe deram esse nome?" A resposta: "Eu nasci no dia em que prenderam a Gangue dos Quatro".


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Jorge Zahar). Ele escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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