São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+(s)ociedade

De volta para o real

Educadores e psicólogos britânicos atacam cultura "junk" e alertam que as crianças estão perdendo a capacidade de experimentar

ERNANE GUIMARÃES NETO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Uma carta aberta acendeu um debate no Reino Unido sobre educação, tendo como ponto de partida a saúde mental das crianças. Publicado na última terça-feira no "Daily Telegraph", o manifesto parte da constatação de que aumentou a incidência de depressão infantil no Reino Unido para criticar a "junk culture" (cultura do industrializado, do virtual).
O documento conta com a assinatura de 110 profissionais, entre psicólogos, professores, escritores e ativistas.
Segundo a carta, em contraste com o estilo de vida atual, as crianças necessitam de "comida real (em oposição ao "lixo" industrializado)" e "experiência do mundo em primeira mão". O texto nota que a sociedade cerca os jovens de proteção física, mas descuida de suas carências sociais e emocionais.
O psicanalista Andrew Samuels, da Universidade de Essex, é um dos signatários. Autor de "A Política no Divã" (Summus), Samuels, que virá a Salvador (BA) no final de outubro para um encontro com terapeutas, disse que os britânicos estão atrasados: outras sociedades já prestam atenção ao problema há mais tempo.

 

FOLHA - Por que a carta agora?
ANDREW SAMUELS
- Há um interesse crescente em saúde mental no Reino Unido. Todos se preocupam com ansiedade e depressão. A psicologia deixa de ser "não-britânica". A carta é sobre o real. Há o temor entre nós de que o real esteja sendo perdido. Relacionamentos reais, corpos reais, atividades reais, imagens reais estão sendo perdidos e não estão sendo substituídos pela imaginação. Estão sendo substituídos por um truque, uma alegação falsa de que se vê algo real.

FOLHA - É um fenômeno restrito ao Reino Unido?
SAMUELS
- Em outros países, parece que se pensa mais nisso, em especial nos EUA. Mas parece que chegou o momento no Reino Unido. Há o reconhecimento de que a educação decaiu terrivelmente, uma revolta contra a ênfase governamental em estatísticas. Isso significa que a "junk culture" invadiu as escolas, tornando-as sem sentido. Queremos a educação contra o "lixo" cultural e, em minha opinião, contra a americanização de nossa cultura.

FOLHA - Qual o problema dos EUA?
SAMUELS
- Os videogames, a internet são um estilo americano que chegou. As crianças não saem mais, mesmo na escola a internet é usada de uma maneira muito ruim. Os professores brasileiros falam sobre o problema da pornografia? Os países desenvolvidos têm uma pandemia de masturbação masculina. O homem se habitua a ficar no computador, e os casais não têm sexo suficiente. As mulheres reclamam disso.

FOLHA - Os números relacionados à saúde mental das crianças acompanham os números dos adultos?
SAMUELS
- Há um aumento enorme da depressão em nível mundial, mas o fenômeno de depressão infantil no mundo desenvolvido pode ser novo. Hoje, 10% dos britânicos abaixo de 18 anos têm algum problema psicológico sério.

FOLHA - Que políticas seriam boas?
SAMUELS
- Nas escolas, é preciso mais atenção individual, ênfase na criatividade juntamente com as metas acadêmicas e responsabilidade social. E não adianta só falar às crianças: não assista à TV, não coma "junk". É preciso dizer algo positivo: "Relações reais são melhores, não têm os limites da tela".

FOLHA - Desde o dia 1º, o Brasil tem nova auto-regulação em publicidade para crianças. Fará diferença?
SAMUELS
- Claro. Temos isso também. Mas tenho suspeitas. "Veja como nós publicitários não somos tão maus." É propaganda para a propaganda.

FOLHA - Que dizer ao menino que prefere o videogame à bola?
SAMUELS
- Pergunte se ele quer dar o controle de sua vida a uma máquina. Nesses jogos não há realmente futebol. Você tem medo da realidade?


Texto Anterior: +(a)utores: Memórias em confronto
Próximo Texto: +(L)ivros: O doce amanhã
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.