São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2006

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+(L)ivros

O doce amanhã

Estudo crucial sobre o processo de democratização de Portugal, "O Império Derrotado", de Kenneth Maxwell, sai no Brasil

EVALDO CABRAL DE MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Império Derrotado" é uma narrativa estruturada da transição portuguesa da ditadura à democracia, que vai do incidente prosaico que vitimou Salazar à Presidência de Mário Soares.
Para reconstituir a trajetória do que chamou aptamente de "uma revolução domada", Kenneth Maxwell optou pela singularidade da experiência lusitana, ao invés de descambar para um comparatismo sociológico que lhe poderia ter rendido análises eruditas, mas que perderia o essencial.
Como acentuou, "nenhuma revolução deixa de sugerir paralelos. Mas atentar demais para a teoria e de menos para circunstâncias específicas pode atrapalhar a compreensão".
O que, aliás, ocorreu também em Portugal em nível da ação dos protagonistas, indivíduos, partidos, instituições, grupos de pressão, setores sociais, cujas "interpretações altamente teóricas e ideológicas [...] se revelaram muito desvinculadas das realidades portuguesas".
Donde a "grande ironia" consistente em que "aqueles que supostamente baseavam suas análises políticas na interpretação de condições sociais e econômicas se equivocaram por inteiro a respeito da dinâmica social de Portugal".

Saudável empirismo
Em resumo: nada como um saudável empirismo anglo-saxônico para acercar-nos da realidade histórica.
Outra opção importante na redação de "O Império Derrotado" residiu em focalizar a narrativa na avaliação dos atores a respeito das situações em que agiam, em especial as relações de força no interior das tendências políticas e também nos âmbitos nacional e internacional. Assim, o autor logrou escapar ao perigo que, em nossos dias, ronda permanentemente o historiador, de lhe escapulir a dimensão dramática da ação política.
O que, aliás, não importa em ignorar as "restrições estruturais -socioeconômicas e psicológicas, além das geradas pelo contexto internacional- que invariavelmente estabelecem poderosos limites"; mas tão-somente em imbricar sua operação e o desempenho dos protagonistas, em vez de fazê-la funcionar num vácuo analítico.
Dito de outra maneira, deixar que as estruturas operem dialeticamente com a atividade individual ou corporativa.
Inclusive a estrutura de natureza ideológica; qual seja, a obstinada resistência do regime salazarista a aceitar quaisquer modificações no estatuto das possessões africanas de Portugal. "A mitologia do Império, tanto quanto sua realidade, enredava os portugueses", pois "a incômoda verdade era que, até os últimos momentos do antigo regime, o sistema derrubado pelo golpe [de 1974] contara com a aprovação ou aquiescência da maioria dos portugueses". Nessa intransigência que levava a um beco sem saída, o autor acentua o que ela comportava de patológico do ponto de vista da escala histórica do raciocínio político, como percebeu George Ball ao visitar Lisboa.
Segundo o subsecretário de Estado do governo Kennedy, "Salazar estava absorto em uma dimensão temporal muito diferente da nossa", vivendo "em mais de um século, como se o príncipe Henrique, o Navegador, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães ainda fossem ativos na formulação da política portuguesa".
Na realidade, tanto o príncipe Henrique quanto Vasco da Gama ainda formulavam a política portuguesa; e só o pragmatismo ianque poderia empregar o "como se". Não o teria feito decerto um positivista, lembrado do aforisma de Comte de que os mortos governam os vivos. Mas, finalmente, contra a lógica de Quixote, acabou prevalecendo a de Sancho Pança, a se exprimir na frase do general Spínola, para quem "as nações preferem viver prosaicamente do que desaparecer em glória".
Maxwell distingue as duas fases da Revolução dos Cravos: radicalização esquerdizante até março de 1975, simultaneamente à tentativa frustrada de contragolpe spinolista, a qual, a princípio, favoreceu a esquerda radical. "As circunstâncias reverteram-se dramaticamente." "Entre março e novembro de 1975, o destino da revolução foi selado e, apesar das formidáveis vantagens da esquerda em março de 1975 -controle da administração, dos sindicatos, da mídia e da iniciativa política-, no final de novembro a esquerda estava desunida, enfraquecida, na defensiva, com seu poder esvaziado."

Fragilidade da esquerda
Ironicamente, malgrado as ingênuas certezas de que "a dinâmica revolucionária" se imporia fatalmente ao "processo eleitoral", as eleições de abril daquele ano para a Assembléia Constituinte -ao revelarem, como que fotograficamente, a verdadeira relação de forças no país- expuseram impiedosamente a fragilidade da esquerda disfarçada sob a empolgação revolucionária e em breve vítima do seu desprezo genético pelo regime representativo.
"Pela primeira vez desde o golpe de abril, existia uma fonte de legitimidade alternativa" ao Movimento das Forças Armadas. Graças à Constituinte, o "processo eleitoral" se impôs à "dinâmica revolucionária". O tradicionalismo dos pequenos proprietários minhotos, trasmontanos e beirões levaram a melhor sobre o esquerdismo do proletariado dos centros urbanos e do rural da grande propriedade alentejana.
O radicalismo revolucionário conhecia bem melhor os clássicos do marxismo do que a história do país no século 19; e sucumbiu ao voluntarismo político. Os chamados "operacionais" do Exército, grupos de oficiais sem compromisso nem com o passado salazarista nem com os delírios ideológicos do presente, prevaleceu sobre as facções que haviam balcanizado as Forças Armadas.
O Partido Socialista, que rompera a aliança inicial com o resto da esquerda, colheu os frutos políticos do meio-termo.
E a Europa e os Estados Unidos tiveram finalmente a ocasião que lhes faltara até então de influenciar decisivamente o que se passava em Portugal.

EVALDO CABRAL DE MELLO é historiador, autor de, entre outros, "Um Imenso Portugal" (ed. 34) e "O Negócio do Brasil" (ed. Topbooks).


O IMPÉRIO DERROTADO Autor: Kenneth Maxwell
Tradução: Laura Teixeira Motta
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 49,50 (336 págs.)




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