São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2006

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Em busca do nirvana

O egípcio Albert Cossery e o tcheco Ivan Klíma questionam a liberdade do indivíduo diante da busca do bem-estar material

PAULO SCHILLER
ESPECIAL PARA A FOLHA

À primeira vista, Albert Cossery -que se diz um autor egípcio que escreve em francês- e Ivan Klíma -ao lado de Milan Kundera, o romancista tcheco mais traduzido fora de seu país-, donos de trajetórias pessoais e de estilos muito diferentes, têm muito pouco em comum.
Entretanto esses dois representantes do que há de melhor na literatura contemporânea se dedicaram a explorar a problemática da liberdade do indivíduo diante dos caprichos da política e da servidão imposta pela perseguição do bem-estar material.
Um bordel precário numa região decrépita do Cairo serve de cenário para o assassinato aparentemente sem razão de uma prostituta.
Para emprestar algum colorido a uma vida insípida, em que a homossexualidade secreta o obriga a se submeter a relações humilhantes, Nour El Dine, o policial encarregado de investigar o caso, espera se deparar com um criminoso de inteligência superior.

Espectros livres
Yéghen, quase um indigente, que divide a vida entre hotéis fétidos e a cadeia, é o fiel escudeiro que fornece haxixe para Gohar, o professor de filosofia que decidiu ser mendigo para deixar de pregar as teorias que não passam de instrumentos de controle social, recursos para perpetuar a opressão e a miséria.
As crises de ciúmes de uma mulher em relação ao marido sem braços e sem pernas, que ela imagina ser um sedutor inveterado, subvertem o culto às aparências, traço que marca os bairros "europeus" da cidade, onde o dinheiro dita as regras.
Em "Mendigos e Altivos", os espectros que assombram as ruas imundas e degradadas do Cairo, personagens recorrentes na obra ficcional de Cossery, são verdadeiramente livres porque não têm nada a perder. Vivem inteiramente desprendidos das ambições mesquinhas que aprisionam os "bem-nascidos", escravizados pelo trabalho.
Praga, renascida depois da queda do império soviético, é o cenário de "Nem Santos Nem Anjos", em que Klíma, na voz de três narradores, dois deles femininos, representantes de três gerações diferentes, conta a história de uma família desagregada numa sociedade que saboreia os primeiros anos de democracia e "modernidade".
Kristyna, que reparte seus dias entre o consultório de dentista e a solidão acompanhada de copos de vinho, se angustia por Jana, a filha rebelde de 15 anos, entregue ao sexo e às drogas -símbolos da "liberdade" capitalista-, cuida da mãe idosa e se debate ante a paixão por Jan, um rapaz 15 anos mais jovem que ela, antigo aluno do ex-marido -que agoniza vitimado por um câncer incurável.
Kristyna desvenda seu passado ao explorar os escritos guardados pelo pai em uma caixa que sua mãe lhe oferece como um legado misterioso. Esse pai, marxista incorrigível, escolheu o luto à alegria por ocasião do nascimento da filha, acontecido no dia da morte de Stálin. Klíma, que descobriu a origem judaica quando Hitler subiu ao poder, decidiu que seria escritor aos dez anos de idade, em Terezin, misto de gueto e campo de concentração estabelecido pelos nazistas próximo de Praga.
Livre do pesadelo da guerra, Klíma submergiu sob o regime comunista que oprimiu o Leste Europeu durante mais de quatro décadas. Quando os tanques desfilaram pelas ruas em 1968 para acabar com as esperanças despertadas pela Primavera de Praga, Klíma, ao contrário de outros intelectuais, voltou para o seu país de uma visita que fazia a Londres, onde os "nomes das ruas não lhe diziam nada".

Best-seller local
Contrabandista de livros, editor dedicado à circulação subterrânea de textos censurados, anfitrião de reuniões da intelectualidade, Klíma teve, junto de Vaclav Havel, um papel fundamental no movimento que resultou na queda do governo submetido a Moscou durante a "revolução de veludo".
No período que se seguiu à democratização da então Tchecoslováquia, os leitores faziam fila para comprar seus livros lançados em tiragens que chegaram a 150 mil exemplares.
Com o tempo, seu prestígio declinou, como aconteceu a tantos autores que encontraram a fonte de inspiração maior no combate às ditaduras. Filho de um proprietário de terras que pregava a inutilidade do trabalho, Cossery, influenciado pela paixão dos irmãos pela literatura, também sabia que seria escritor desde os dez anos de idade. Na adolescência, enquanto descobria Dostoiévski e Stendhal, lia no cinema as legendas dos filmes para a mãe analfabeta. Instalado em um quarto de hotel em Paris em 1945, onde vive até hoje, aos 93 anos de idade, Cossery, companheiro de noitadas de Camus, escreveu apenas oito livros, entre eles o belíssimo "As Cores da Infâmia" (ed. Conrad), publicado no Brasil em 2004.
Klíma mantém uma rotina de trabalho regular diante de um computador rodeado de dicionários. Cossery não escreve mais que umas poucas frases por dia com uma caneta esferográfica barata.
Em português, a prosa límpida e direta, de contador de histórias, de Klíma, e o artesanato mágico de Cossery nos são passados por Aleksandar Jovanovic e Dorothée de Bruchard em duas traduções primorosas.
Durante a ditadura, Klíma descobriu que a intimidade era o único espaço em que alguma liberdade podia subsistir. Para Cossery, a liberdade também só pode ser interior, fruto do simples fato de existirmos, alheios até mesmo à filosofia do absurdo, que não difere, na essência, de todas as outras.

PAULO SCHILLER é psicanalista, autor de "A Vertigem da Imortalidade" (Cia. das Letras).


MENDIGOS E ALTIVOS
Autor:
Albert Cossery
Tradução: Dorothée de Bruchard
Editora: Conrad (tel. 0/xx/11/ 3346-6088)
Quanto: R$ 39 (304 págs.)

NEM SANTOS NEM ANJOS
Autor:
Ivan Klíma
Tradução: Aleksandar Jovanovic
Editora: Record (tel. 0/xx/21/ 2585-2000)
Quanto: R$ 45,90 (336 págs.)


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