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Em busca do nirvana
O egípcio Albert Cossery e o tcheco Ivan Klíma questionam a liberdade do indivíduo diante da busca do bem-estar material
PAULO SCHILLER
ESPECIAL PARA A FOLHA
À primeira vista, Albert Cossery -que
se diz um autor
egípcio que escreve
em francês- e Ivan
Klíma -ao lado de Milan Kundera, o romancista tcheco mais
traduzido fora de seu país-,
donos de trajetórias pessoais e
de estilos muito diferentes,
têm muito pouco em comum.
Entretanto esses dois representantes do que há de melhor
na literatura contemporânea
se dedicaram a explorar a problemática da liberdade do indivíduo diante dos caprichos da
política e da servidão imposta
pela perseguição do bem-estar
material.
Um bordel precário numa
região decrépita do Cairo serve
de cenário para o assassinato
aparentemente sem razão de
uma prostituta.
Para emprestar algum colorido a uma vida insípida, em
que a homossexualidade secreta o obriga a se submeter a relações humilhantes, Nour El Dine, o policial encarregado de
investigar o caso, espera se deparar com um criminoso de inteligência superior.
Espectros livres
Yéghen, quase um indigente,
que divide a vida entre hotéis
fétidos e a cadeia, é o fiel escudeiro que fornece haxixe para
Gohar, o professor de filosofia
que decidiu ser mendigo para
deixar de pregar as teorias que
não passam de instrumentos
de controle social, recursos para perpetuar a opressão e a miséria.
As crises de ciúmes de uma
mulher em relação ao marido
sem braços e sem pernas, que
ela imagina ser um sedutor inveterado, subvertem o culto às
aparências, traço que marca os
bairros "europeus" da cidade,
onde o dinheiro dita as regras.
Em "Mendigos e Altivos", os
espectros que assombram as
ruas imundas e degradadas do
Cairo, personagens recorrentes na obra ficcional de Cossery, são verdadeiramente livres porque não têm nada a
perder. Vivem inteiramente
desprendidos das ambições
mesquinhas que aprisionam os
"bem-nascidos", escravizados
pelo trabalho.
Praga, renascida depois da
queda do império soviético, é o
cenário de "Nem Santos Nem
Anjos", em que Klíma, na voz
de três narradores, dois deles
femininos, representantes de
três gerações diferentes, conta
a história de uma família desagregada numa sociedade que
saboreia os primeiros anos de
democracia e "modernidade".
Kristyna, que reparte seus
dias entre o consultório de dentista e a solidão acompanhada
de copos de vinho, se angustia
por Jana, a filha rebelde de 15
anos, entregue ao sexo e às drogas -símbolos da "liberdade"
capitalista-, cuida da mãe idosa e se debate ante a paixão por
Jan, um rapaz 15 anos mais jovem que ela, antigo aluno do
ex-marido -que agoniza vitimado por um câncer incurável.
Kristyna desvenda seu passado ao explorar os escritos
guardados pelo pai em uma caixa que sua mãe lhe oferece como um legado misterioso. Esse
pai, marxista incorrigível, escolheu o luto à alegria por ocasião
do nascimento da filha, acontecido no dia da morte de Stálin.
Klíma, que descobriu a origem judaica quando Hitler subiu ao poder, decidiu que seria
escritor aos dez anos de idade,
em Terezin, misto de gueto e
campo de concentração estabelecido pelos nazistas próximo
de Praga.
Livre do pesadelo da guerra,
Klíma submergiu sob o regime
comunista que oprimiu o Leste
Europeu durante mais de quatro décadas. Quando os tanques desfilaram pelas ruas em
1968 para acabar com as esperanças despertadas pela Primavera de Praga, Klíma, ao contrário de outros intelectuais,
voltou para o seu país de uma
visita que fazia a Londres, onde
os "nomes das ruas não lhe diziam nada".
Best-seller local
Contrabandista de livros,
editor dedicado à circulação
subterrânea de textos censurados, anfitrião de reuniões da intelectualidade, Klíma teve, junto de Vaclav Havel, um papel
fundamental no movimento
que resultou na queda do governo submetido a Moscou durante a "revolução de veludo".
No período que se seguiu à
democratização da então Tchecoslováquia, os leitores faziam
fila para comprar seus livros
lançados em tiragens que chegaram a 150 mil exemplares.
Com o tempo, seu prestígio declinou, como aconteceu a tantos autores que encontraram a
fonte de inspiração maior no
combate às ditaduras.
Filho de um proprietário de
terras que pregava a inutilidade
do trabalho, Cossery, influenciado pela paixão dos irmãos
pela literatura, também sabia
que seria escritor desde os dez
anos de idade. Na adolescência,
enquanto descobria Dostoiévski e Stendhal, lia no cinema as
legendas dos filmes para a mãe
analfabeta. Instalado em um
quarto de hotel em Paris em
1945, onde vive até hoje, aos 93
anos de idade, Cossery, companheiro de noitadas de Camus,
escreveu apenas oito livros, entre eles o belíssimo "As Cores
da Infâmia" (ed. Conrad), publicado no Brasil em 2004.
Klíma mantém uma rotina
de trabalho regular diante de
um computador rodeado de dicionários. Cossery não escreve
mais que umas poucas frases
por dia com uma caneta esferográfica barata.
Em português, a prosa límpida e direta, de contador de histórias, de Klíma, e o artesanato
mágico de Cossery nos são passados por Aleksandar Jovanovic e Dorothée de Bruchard em
duas traduções primorosas.
Durante a ditadura, Klíma
descobriu que a intimidade era
o único espaço em que alguma
liberdade podia subsistir. Para
Cossery, a liberdade também
só pode ser interior, fruto do
simples fato de existirmos,
alheios até mesmo à filosofia do
absurdo, que não difere, na essência, de todas as outras.
PAULO SCHILLER é psicanalista, autor de "A
Vertigem da Imortalidade" (Cia. das Letras).
MENDIGOS E ALTIVOS
Autor: Albert Cossery
Tradução: Dorothée de Bruchard
Editora: Conrad (tel. 0/xx/11/
3346-6088)
Quanto: R$ 39 (304 págs.)
NEM SANTOS NEM ANJOS
Autor: Ivan Klíma
Tradução: Aleksandar Jovanovic
Editora: Record (tel. 0/xx/21/ 2585-2000)
Quanto: R$ 45,90 (336 págs.)
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