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O Joyce da música
Inventor do free jazz, que revolucionou o gênero nos anos 1950
e influenciou do rock ao funk, Ornette Coleman fala do novo disco,
cita Nietzsche e compara sua música à pintura de Pollock
PAOLA GENONE
Quando Ornette Coleman inventou o
free jazz com um
toque de seu sax
em Nova York, em
1959, ele provocou o mesmo
pânico que James Joyce causara em 1922 com "Ulisses". Acusaram-no de ser destruidor,
um perigoso fabricante de dissonâncias, um impostor.
Hoje Coleman é visto como
precursor do free jazz, do rock
e do jazz-funk. Ele compôs maravilhas para orquestra sinfônica. Elaborou uma teoria musical conhecida como "harmolodia". Tocou canções ácidas
que ferem e canções tristes que
alegram. E, aos 76 anos, o saxofonista está lançando um novo
disco, "Sound Grammar".
PERGUNTA - Um espaço imenso repleto de esculturas africanas, com
paredes recobertas de pinturas hieroglíficas e arte contemporânea. Seria possível imaginar que estamos
numa galeria de arte, não fosse esse
saxofone de plástico branco posto
em um degrau. É o célebre saxofone
com o que o sr. tocou em 1959,
quando criou o free jazz, no Five
Spot, em Nova York?
ORNETTE COLEMAN - Esse mesmo.
Em 1959, eu tinha 29 anos e tinha acabado de gravar meus
dois primeiros discos na Califórnia: "Something Else!!!!" e
"Tomorrow Is the Question!".
A crítica tinha me massacrado, o que deve ter divertido o
dono do Five Spot, um templo
do bebop, que se ofereceu para
me produzir em Nova York. Na
noite de 16/11/59, cheguei com
meu quarteto. Eu tocava meu
saxofone de plástico branco e
Don Cherry, seu "trompete de
bolso", fabricado no Paquistão.
Começamos com uma improvisação total, mas que, para
nós, era muito melódica. Nossa
música deve ter ferido os ouvidos do público, já que, depois de
cinco minutos, várias pessoas
deixaram a sala. Alguém gritou:
"Parem com essa cacofonia!
Seus instrumentos assobiam
como cobras!".
Finalmente, vencidos pelas
vaias, paramos de tocar.
PERGUNTA - No dia seguinte, o
"New York Times" escreveu que um
saxofonista com ar de quem vive na
lua, de chapéu preto e colete de couro, quase provocara uma revolta no
Five Spot ao tocar uma música estranha e inusitada.
COLEMAN - Nossa passagem desencadeou uma discussão repentina. A revista "Down Beat"
saiu com a manchete "Inovadores ou sonhadores? Visionários
ou charlatões?". Acusaram-me
de tocar desafinado, de não conhecer nem as escalas nem a
harmonia ou as regras do bebop. Apelidaram minha música
de "free jazz", querendo com isso dizer "qualquer coisa".
O dono da casa nos manteve.
Na terceira noite, para espanto
meu, vi Leonard Bernstein ali.
Ele subiu ao palco, me abraçou,
pegou o microfone e declarou
que nossa música era a coisa
mais interessante que ouvira
desde as inovações de Charlie
Parker e Thelonious Monk nos
anos 1940. Bernstein cochichou no meu ouvido: "Meu caro, é melhor ser crucificado que
se entediar. Além disso, a crucifixão vai eternizá-lo".
Foi assim que meus shows viraram ponto de encontro da intelligentsia nova-iorquina.
Rauschenberg me apelidou de
"o pintor musical do expressionismo abstrato" e John Cage
elogiou a "vox humana" de meu
sax. Alguns deles se recusaram
a chamar minha música de
"free jazz" e substituíram o termo por "the new thing" (a coisa
nova).
Por sinal, a expressão "free
jazz" acabou provocando um
qüiproquó: no dia de um concerto em Ohio intitulado "Free
Jazz Concert", 5.000 pessoas
compareceram pensando que
seria um show gratuito!
PERGUNTA - Entre 1958 e 1960, o
sr. gravou discos com títulos que
soam como gritos: "Something Else!!!!" (Outra Coisa), "The Shape of
Jazz to Come!" (A Forma do Jazz que
Está por Vir), "This Is Our Music" (Esta É Nossa Música) e "Free Jazz". De
onde saiu esse grito?
COLEMAN - Eu apresentei minha visão do mundo com meu
sax. Nasci em 1930 em Fort
Worth, Texas, numa família de
professores pobres. Perdi meu
pai aos 7 anos. Fiquei desorientado, até o dia em que, na escola, um aluno tirou um sax da
mala e começou a tocar. Eu
imediatamente pedi um a minha mãe. Ela me disse que eu
teria que comprá-lo com minhas economias. Então passei
dois anos e meio engraxando
sapatos das pessoas na rua.
Certa manhã, minha mãe me
fez olhar debaixo da cama. Encontrei um sax. Eu tinha 13
anos. Aprendi a ler e escrever
música em livros. Compunha
músicas e as tocava na igreja.
PERGUNTA - O sr. começou como
músico de rhythm'n'blues.
COLEMAN - Criei meu próprio
grupo e passei para o sax tenor,
no qual era possível produzir
um som mais viril. Descobri o
bebop e Charlie Parker; aprendi todos os solos dele de cor e
comecei a me aventurar em seu
universo sonoro.
Decidi deixar Fort Worth e
percorrer o Mississippi com
um grupo de R&B. Mas em
pouco tempo o líder do grupo
me despediu por "atentado à
serenidade dos dançarinos". De
acordo com ele, ninguém compreendia meus fraseados "bizarróides".
Continuei minha viagem sozinho. Certa noite, em 1949,
num clube de Baton Rouge
(Louisiana), experimentei em
cima de um blues algumas
idéias que passavam por minha
cabeça. Eu tinha 18 anos, usava
barba e cabelos compridos. Na
saída, uma meia dúzia de espectadores estava me esperando. Quebraram o sax tenor contra minha boca. Saí com os dentes quebrados e o rosto ferido.
PERGUNTA - Numa noite em 1950
o sr. chegou a Los Angeles. Charlie
Parker tocava no Tiffany Club.
COLEMAN - Minhas roupas estavam tão gastas que o segurança
do clube pensou que eu fosse
mendigo e não me deixou entrar. Ouvi os solos de Charlie
Parker através de uma janela
com grade que dava para a sala.
Naquela noite, a Califórnia me
pareceu um paraíso.
Pouco depois tive a oportunidade de tocar com meus ídolos:
o baterista Max Roach e o
trompetista Clifford Brown.
Interpretei o repertório deles à
minha maneira, tocando o tema de "Donna Lee" ao inverso
no meu sax alto. Meu solo mal
tinha terminado quando aqueles grandes músicos deixaram o
palco com ar de desgosto.
Fiquei tremendamente decepcionado. Após seu glorioso
estrondo inicial, o bebop tinha
se fixado em formas rígidas e limitadas. Eu teria podido fazer
como eles, agiu como um robô,
mas não quis. O que é que existe
na alma do jazz se não é um
amor vivo pelo inédito? Passei
dez anos na Califórnia. Durante
o dia eu trabalhava como ascensorista; à noite, compunha.
Em 1953, conheci meus futuros companheiros de estrada, o
trompetista Don Cherry, o contrabaixista Charlie Haden e o
baterista Ed Blackwell.
PERGUNTA - Com eles o sr. gravou
"Free Jazz", em 1960. Qual era a
missão dessa música?
COLEMAN - O objetivo era fazer
os instrumentos falarem como
talvez tenham falado nos ancestrais longínquos, antes da
invenção da linguagem. Para isso, utilizei um quarteto duplo:
dois sax, dois trompetes, dois
contrabaixos e duas baterias
que dialogavam. No disco, ouve-se um quarteto em um canal
e o segundo quarteto no outro.
Em "Free Jazz", faixa de 37
minutos e três segundos, a noção de virtuosidade desapareceu, em prol da mensagem:
aquilo que era acidente se convertia em nova possibilidade
sonora. Ruídos, efeitos do sopro, assobios da palheta, tudo
era explorado e trabalhado.
Cada instrumento se tornava
um prolongamento da vida e do
corpo. Todas as nuanças emocionais da voz -gritos, gemidos- se exprimiam livremente.
Os instrumentos rítmicos
podiam revelar suas qualidades
melódicas: os bateristas exploravam todos os timbres, usando-os como notas para formar
um discurso. Os contrabaixos
desfraldavam sua riqueza lírica
sem ser relegados ao papel de
acompanhamento.
Enquanto isso, os trompetes
e o sax exploravam os ritmos.
Ao tocar aquela música, éramos
levados a um equivalente musical das "action paintings" de
Jackson Pollock. Por sinal, a capa do disco trazia uma reprodução de uma tela de Pollock.
Não se tratava de uma anarquia
total, mas de limites abertos, já
que, na base, seguíamos uma
partitura.
PERGUNTA - A partir de 1962, o sr.
começou a compor peças para conjuntos de música clássica. Qual dessas experiências o marcou mais?
COLEMAN - Foi sem dúvida a experiência com a Orquestra Sinfônica de San Francisco, que
em 1968 interpretou "Sun Suite", uma música de 20 minutos
de duração. Durante os ensaios,
os músicos queriam me mostrar que conheciam a partitura
perfeitamente. Mas eles eram
como marionetes, aferrados às
minhas notas. Eu dizia a eles:
"Pensem no som! Prestem
atenção sempre aos sons que
vocês fazem, mais do que às notas! As notas, vocês sempre podem mudar".
PERGUNTA - Outra experiência interessante foi a da sinfonia "Céus da
América", gravada em 1972 com a
London Symphony Orchestra.
COLEMAN - Tive a idéia da história quando passei um período
longo numa reserva dos índios
Crow, em Montana. Quando os
índios oravam cantando, cada
uma de suas vozes seguia uma
melodia diferente, e isso, em
uníssono, dava harmonias maravilhosas.
"Céus da América" foi concebido segundo o seguinte princípio: nenhuma seção domina,
todos os instrumentos estão
em posição de igualdade. É um
"aqui e agora" que exige ao
mesmo tempo uma concentração extrema e um abandono total, uma consciência de si mesmo e uma consciência coletiva.
Tive uma experiência semelhante quando visitei uma tribo
de músicos curandeiros de Jajouka, no Marrocos, juntamente com o escritor William Burroughs (Coleman compôs a trilha sonora do filme "Mistérios
e Paixões", de David Cronenberg, baseado no livro "Almoço
Nu", de Burroughs).
Tocar com eles me ensinou
muita coisa. Eles se reuniam ao
pôr-do-sol para tocar seus instrumentos de sopro até o amanhecer. Cada um tinha seu ritmo, entonação e altura próprios, mas eles avançavam juntos como se seguissem a mesma idéia: um maravilhoso canto de pássaros, totalmente improvisado! Minha teoria de
música "harmolódica" é baseada nessas experiências.
A harmolodia é o desejo de
reencontrar a velocidade do
pensamento por meio da música. Não se trata de criar o caos,
mas de agenciar seqüências
musicais móveis, empreendendo todos os trajetos possíveis.
PERGUNTA - Seu novo disco é baseado no conceito da harmolodia.
São necessárias chaves para poder
curtir essa música?
COLEMAN - Para apreciar uma
música, é preciso um conhecimento e uma cultura que permitam a identificação do que é
diverso. Em "O Andarilho e Sua
Sombra" [in "Humano, Demasiado Humano"], Nietzsche escreveu: "A ação da música sobre mim? Infelizmente, meu
amigo, sou lento para amar;
passo tempo demais ofuscado
por aquilo que me é estranho".
Amar a música é algo que se
aprende. É preciso estar preparado para receber as mais mínimas revelações da arte.
Este texto no publicado no "L'Express".
Tradução de Clara Allain.
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