São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2006

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O Joyce da música

Inventor do free jazz, que revolucionou o gênero nos anos 1950 e influenciou do rock ao funk, Ornette Coleman fala do novo disco, cita Nietzsche e compara sua música à pintura de Pollock

PAOLA GENONE

Quando Ornette Coleman inventou o free jazz com um toque de seu sax em Nova York, em 1959, ele provocou o mesmo pânico que James Joyce causara em 1922 com "Ulisses". Acusaram-no de ser destruidor, um perigoso fabricante de dissonâncias, um impostor. Hoje Coleman é visto como precursor do free jazz, do rock e do jazz-funk. Ele compôs maravilhas para orquestra sinfônica. Elaborou uma teoria musical conhecida como "harmolodia". Tocou canções ácidas que ferem e canções tristes que alegram. E, aos 76 anos, o saxofonista está lançando um novo disco, "Sound Grammar".

 

PERGUNTA - Um espaço imenso repleto de esculturas africanas, com paredes recobertas de pinturas hieroglíficas e arte contemporânea. Seria possível imaginar que estamos numa galeria de arte, não fosse esse saxofone de plástico branco posto em um degrau. É o célebre saxofone com o que o sr. tocou em 1959, quando criou o free jazz, no Five Spot, em Nova York?
ORNETTE COLEMAN
- Esse mesmo. Em 1959, eu tinha 29 anos e tinha acabado de gravar meus dois primeiros discos na Califórnia: "Something Else!!!!" e "Tomorrow Is the Question!".
A crítica tinha me massacrado, o que deve ter divertido o dono do Five Spot, um templo do bebop, que se ofereceu para me produzir em Nova York. Na noite de 16/11/59, cheguei com meu quarteto. Eu tocava meu saxofone de plástico branco e Don Cherry, seu "trompete de bolso", fabricado no Paquistão.
Começamos com uma improvisação total, mas que, para nós, era muito melódica. Nossa música deve ter ferido os ouvidos do público, já que, depois de cinco minutos, várias pessoas deixaram a sala. Alguém gritou: "Parem com essa cacofonia!
Seus instrumentos assobiam como cobras!". Finalmente, vencidos pelas vaias, paramos de tocar.

PERGUNTA - No dia seguinte, o "New York Times" escreveu que um saxofonista com ar de quem vive na lua, de chapéu preto e colete de couro, quase provocara uma revolta no Five Spot ao tocar uma música estranha e inusitada.
COLEMAN
- Nossa passagem desencadeou uma discussão repentina. A revista "Down Beat" saiu com a manchete "Inovadores ou sonhadores? Visionários ou charlatões?". Acusaram-me de tocar desafinado, de não conhecer nem as escalas nem a harmonia ou as regras do bebop. Apelidaram minha música de "free jazz", querendo com isso dizer "qualquer coisa". O dono da casa nos manteve.
Na terceira noite, para espanto meu, vi Leonard Bernstein ali. Ele subiu ao palco, me abraçou, pegou o microfone e declarou que nossa música era a coisa mais interessante que ouvira desde as inovações de Charlie Parker e Thelonious Monk nos anos 1940. Bernstein cochichou no meu ouvido: "Meu caro, é melhor ser crucificado que se entediar. Além disso, a crucifixão vai eternizá-lo".
Foi assim que meus shows viraram ponto de encontro da intelligentsia nova-iorquina. Rauschenberg me apelidou de "o pintor musical do expressionismo abstrato" e John Cage elogiou a "vox humana" de meu sax. Alguns deles se recusaram a chamar minha música de "free jazz" e substituíram o termo por "the new thing" (a coisa nova).
Por sinal, a expressão "free jazz" acabou provocando um qüiproquó: no dia de um concerto em Ohio intitulado "Free Jazz Concert", 5.000 pessoas compareceram pensando que seria um show gratuito!

PERGUNTA - Entre 1958 e 1960, o sr. gravou discos com títulos que soam como gritos: "Something Else!!!!" (Outra Coisa), "The Shape of Jazz to Come!" (A Forma do Jazz que Está por Vir), "This Is Our Music" (Esta É Nossa Música) e "Free Jazz". De onde saiu esse grito?
COLEMAN
- Eu apresentei minha visão do mundo com meu sax. Nasci em 1930 em Fort Worth, Texas, numa família de professores pobres. Perdi meu pai aos 7 anos. Fiquei desorientado, até o dia em que, na escola, um aluno tirou um sax da mala e começou a tocar. Eu imediatamente pedi um a minha mãe. Ela me disse que eu teria que comprá-lo com minhas economias. Então passei dois anos e meio engraxando sapatos das pessoas na rua.
Certa manhã, minha mãe me fez olhar debaixo da cama. Encontrei um sax. Eu tinha 13 anos. Aprendi a ler e escrever música em livros. Compunha músicas e as tocava na igreja.

PERGUNTA - O sr. começou como músico de rhythm'n'blues. COLEMAN - Criei meu próprio grupo e passei para o sax tenor, no qual era possível produzir um som mais viril. Descobri o bebop e Charlie Parker; aprendi todos os solos dele de cor e comecei a me aventurar em seu universo sonoro.
Decidi deixar Fort Worth e percorrer o Mississippi com um grupo de R&B. Mas em pouco tempo o líder do grupo me despediu por "atentado à serenidade dos dançarinos". De acordo com ele, ninguém compreendia meus fraseados "bizarróides".
Continuei minha viagem sozinho. Certa noite, em 1949, num clube de Baton Rouge (Louisiana), experimentei em cima de um blues algumas idéias que passavam por minha cabeça. Eu tinha 18 anos, usava barba e cabelos compridos. Na saída, uma meia dúzia de espectadores estava me esperando. Quebraram o sax tenor contra minha boca. Saí com os dentes quebrados e o rosto ferido.

PERGUNTA - Numa noite em 1950 o sr. chegou a Los Angeles. Charlie Parker tocava no Tiffany Club. COLEMAN - Minhas roupas estavam tão gastas que o segurança do clube pensou que eu fosse mendigo e não me deixou entrar. Ouvi os solos de Charlie Parker através de uma janela com grade que dava para a sala.
Naquela noite, a Califórnia me pareceu um paraíso. Pouco depois tive a oportunidade de tocar com meus ídolos: o baterista Max Roach e o trompetista Clifford Brown.
Interpretei o repertório deles à minha maneira, tocando o tema de "Donna Lee" ao inverso no meu sax alto. Meu solo mal tinha terminado quando aqueles grandes músicos deixaram o palco com ar de desgosto.
Fiquei tremendamente decepcionado. Após seu glorioso estrondo inicial, o bebop tinha se fixado em formas rígidas e limitadas. Eu teria podido fazer como eles, agiu como um robô, mas não quis. O que é que existe na alma do jazz se não é um amor vivo pelo inédito? Passei dez anos na Califórnia. Durante o dia eu trabalhava como ascensorista; à noite, compunha.
Em 1953, conheci meus futuros companheiros de estrada, o trompetista Don Cherry, o contrabaixista Charlie Haden e o baterista Ed Blackwell.

PERGUNTA - Com eles o sr. gravou "Free Jazz", em 1960. Qual era a missão dessa música?
COLEMAN
- O objetivo era fazer os instrumentos falarem como talvez tenham falado nos ancestrais longínquos, antes da invenção da linguagem. Para isso, utilizei um quarteto duplo: dois sax, dois trompetes, dois contrabaixos e duas baterias que dialogavam. No disco, ouve-se um quarteto em um canal e o segundo quarteto no outro.
Em "Free Jazz", faixa de 37 minutos e três segundos, a noção de virtuosidade desapareceu, em prol da mensagem: aquilo que era acidente se convertia em nova possibilidade sonora. Ruídos, efeitos do sopro, assobios da palheta, tudo era explorado e trabalhado.
Cada instrumento se tornava um prolongamento da vida e do corpo. Todas as nuanças emocionais da voz -gritos, gemidos- se exprimiam livremente.
Os instrumentos rítmicos podiam revelar suas qualidades melódicas: os bateristas exploravam todos os timbres, usando-os como notas para formar um discurso. Os contrabaixos desfraldavam sua riqueza lírica sem ser relegados ao papel de acompanhamento.
Enquanto isso, os trompetes e o sax exploravam os ritmos. Ao tocar aquela música, éramos levados a um equivalente musical das "action paintings" de Jackson Pollock. Por sinal, a capa do disco trazia uma reprodução de uma tela de Pollock.
Não se tratava de uma anarquia total, mas de limites abertos, já que, na base, seguíamos uma partitura.

PERGUNTA - A partir de 1962, o sr. começou a compor peças para conjuntos de música clássica. Qual dessas experiências o marcou mais?
COLEMAN
- Foi sem dúvida a experiência com a Orquestra Sinfônica de San Francisco, que em 1968 interpretou "Sun Suite", uma música de 20 minutos de duração. Durante os ensaios, os músicos queriam me mostrar que conheciam a partitura perfeitamente. Mas eles eram como marionetes, aferrados às minhas notas. Eu dizia a eles: "Pensem no som! Prestem atenção sempre aos sons que vocês fazem, mais do que às notas! As notas, vocês sempre podem mudar".

PERGUNTA - Outra experiência interessante foi a da sinfonia "Céus da América", gravada em 1972 com a London Symphony Orchestra.
COLEMAN
- Tive a idéia da história quando passei um período longo numa reserva dos índios Crow, em Montana. Quando os índios oravam cantando, cada uma de suas vozes seguia uma melodia diferente, e isso, em uníssono, dava harmonias maravilhosas.
"Céus da América" foi concebido segundo o seguinte princípio: nenhuma seção domina, todos os instrumentos estão em posição de igualdade. É um "aqui e agora" que exige ao mesmo tempo uma concentração extrema e um abandono total, uma consciência de si mesmo e uma consciência coletiva.
Tive uma experiência semelhante quando visitei uma tribo de músicos curandeiros de Jajouka, no Marrocos, juntamente com o escritor William Burroughs (Coleman compôs a trilha sonora do filme "Mistérios e Paixões", de David Cronenberg, baseado no livro "Almoço Nu", de Burroughs).
Tocar com eles me ensinou muita coisa. Eles se reuniam ao pôr-do-sol para tocar seus instrumentos de sopro até o amanhecer. Cada um tinha seu ritmo, entonação e altura próprios, mas eles avançavam juntos como se seguissem a mesma idéia: um maravilhoso canto de pássaros, totalmente improvisado! Minha teoria de música "harmolódica" é baseada nessas experiências.
A harmolodia é o desejo de reencontrar a velocidade do pensamento por meio da música. Não se trata de criar o caos, mas de agenciar seqüências musicais móveis, empreendendo todos os trajetos possíveis.

PERGUNTA - Seu novo disco é baseado no conceito da harmolodia. São necessárias chaves para poder curtir essa música?
COLEMAN
- Para apreciar uma música, é preciso um conhecimento e uma cultura que permitam a identificação do que é diverso. Em "O Andarilho e Sua Sombra" [in "Humano, Demasiado Humano"], Nietzsche escreveu: "A ação da música sobre mim? Infelizmente, meu amigo, sou lento para amar; passo tempo demais ofuscado por aquilo que me é estranho".
Amar a música é algo que se aprende. É preciso estar preparado para receber as mais mínimas revelações da arte.


Este texto no publicado no "L'Express".
Tradução de Clara Allain.


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