São Paulo, Domingo, 17 de Outubro de 1999
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Subtração do visível



Um direito à imagem pode encobrir outro

JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha

A polêmica sobre o "direito à imagem", que recentemente rebentou na França entre o Ministério da Justiça e a corporação dos fotógrafos, não se refere somente às relações entre o direito dos jornalistas a informar pela imagem e os direitos dos particulares a sua própria imagem e a sua vida privada. É a singularidade do atual estatuto das relações entre a imagem, o direito, a política e mesmo a arte que se acha na ordem do dia.
O conflito nasceu de duas disposições de um projeto de lei relativo à presunção de inocência e aos direitos das vítimas. A primeira proíbe publicar fotos de pessoas algemadas, a segunda, de publicar fotos de vítimas de crimes em situações que atentem contra a sua dignidade. Uma e outra inscrevem-se numa mesma perspectiva global de desenvolvimento dos direitos pessoais: proteção da vida privada, da imagem e da dignidade pessoal, presunção de inocência de todos, até que sejam declarados culpados.
O próprio "acusado" trocou de nome: agora é o "examinando". Um passo a mais foi dado com a proscrição de toda imagem material de encarceramento. Mas esse passo a mais tem consequências perturbadoras. Não se trata somente de emprestar um eufemismo a um estado de fato. Trata-se de tornar invisível a sua materialidade. A proteção da pessoa privada tende a tornar-se uma suspensão da visibilidade do próprio acontecimento. O que não é julgado não é mostrado, não deve ter visibilidade. Essa regra implícita esconde uma outra: que o único "julgamento" é agora o dos tribunais.
Antes, a imagem do acusado funcionava como apelo a um julgamento da opinião pública, independente daquele dos juízes, e até mesmo contestador a seu respeito. Ou servia ainda para reivindicar a justiça intrínseca de uma ação forçada a opor-se à lei existente, para denunciar um estado de coisas injusto. Inscrevia-se ela no combate político clássico que repõe em questão a legitimidade das leis existentes. Ainda há pouco, na França, o líder das ações camponesas contra a cadeia McDonald's brandia suas algemas aos olhos dos jornalistas, como emblema da justiça de seu combate. Na nova lógica, a presunção de inocência, apanágio de toda pessoa privada, acaba de anular o litígio propriamente político sobre esse descompasso entre duas justiças e dois julgamentos, que emblematizam a figura do culpado inocente ou do justiceiro encarcerado.
A proteção da pessoa e de sua imagem produz assim uma operação indissoluvelmente política e ontológica. Ela tende a subtrair, com um certo tipo de julgamento e de manifestação política, uma parcela do visível. Mas essa parcela não é a parcela de exemplo contagioso ou de horror insuportável que proscrevíamos antes. Em matéria de violência, de indecência e de horror, não há mais nada que as telas censurem. A parcela proscrita é a parcela não-decidida, litigiosa, que alimentava o conflito político, pondo em xeque, com a "culpabilidade" do agente, a natureza da própria ação. Cumpre agora saber onde termina a subtração, se ela não ganha, com a visibilidade dos fatos, o próprio aval da existência deles.
Essa é pergunta que suscita a segunda proibição, a de mostrar as vítimas em situações atentatórias contra a sua dignidade. A viúva de um prefeito assassinado por terroristas córsicos insurgiu-se, por exemplo, contra uma foto que mostrava seu marido com a cabeça contra o chão, e assim também uma mulher quase desnuda pelo sopro de uma explosão terrorista no metrô parisiense. Mas esses casos singulares, em que uma pessoa reivindica sua dignidade, arrastam consigo uma cadeia imensa dessas fotos que nos fizeram ver e continuam a nos fazer ver os horrores que marcaram nosso século. Os jornalistas e os fotógrafos esfregaram na cara dos legisladores esses testemunhos históricos que são as fotos de refugiados dos campos nazistas ou daquela pequena vietnamita nua, queimada por napalm. E que ainda hoje registram a colheita diária de crimes de massa na Bósnia ou em Ruanda, no Timor Leste ou em Kosovo. Claro que a aparência das vítimas não é conforme ao ideal de dignidade humana. O simples bom senso responde que sua própria situação é indigna, que a imagem quer precisamente lhe dar testemunho.
Mas o tema político e ontológico vai muito além da simples oposição entre o respeito às vítimas e o dever de informar sua situação. Pois não se trata simplesmente de saber se poderemos ou não dar a conhecer, por médicos e juristas, as dores e as injustiças do mundo. A fotografia atesta duas coisas simultaneamente; não só a evidência do crime, mas também sua natureza, conferindo densidade humana àqueles que os exterminadores tratam como a canalha subumana.
O que os genocidas e as limpezas étnicas negam, de fato, é um primeiro "direito à imagem", anterior a toda propriedade que o indivíduo possa ter de "sua" imagem: o direito de ser incluído na imagem da comunidade humana. A limpeza ou o extermínio étnicos são sempre a demonstração em ato de seu próprio pressuposto: que o exterminado não pertence àquilo de que é excluído, que não pertence verdadeiramente à humanidade, não, em todo caso, àquela que tem direito de existir nesse dado tempo e nesse dado espaço. Eis por que a limpeza ou o extermínio étnicos alcançam seu triunfo lógico no discurso negacionista, ao apagar quaisquer vestígios.
Alegar contra essas fotografias a dignidade ameaçada das vítimas não seria substituir esse direito primeiro negado, o direito de levar a imagem a público, direito sobre o qual as vítimas não têm voz ativa, por um direito de propriedade sobre suas imagens, detido de fato somente por aqueles que possuem os meios de cunhar suas imagens? Alguém dirá que se trata de uma questão bizantina. Ninguém espera, pelo menos agora, que as vítimas kosovares pleiteiem indenizações pela publicação de suas imagens na imprensa francesa. E o ministro respondeu aos inquietos afirmando que a lei não se aplicava aos fatos da guerra.
Essa resposta "reconfortante" nos deixa perplexos. Isso porque ela remete o estatuto da imagem a uma partilha de domínios e de gêneros que precisamente está em questão. Hitler não movia guerra ao povo judeu, eliminava os parasitas malsãos. As milícias sérvias não moviam guerra ao povo kosovar, suprimiam aqueles que não estivessem em "seu" lugar. E as operações "humanitárias" que respondem à limpeza étnica não pretendem intervir numa guerra. Se o extermínio e o discurso negacionista ganharam tamanha importância no pensamento contemporâneo, é porque seu extremismo material e sua provocação intelectual radicalizam a incerteza que abala hoje a linha divisória entre as esferas: o público e o privado, o político, a polícia e a guerra. O direito do proprietário e o direito da vítima ilustram, em suma, o progressivo desaparecimento do mundo político, em benefício de uma cena dupla: de um lado a cena privada mundial dos interesses proprietários, de outro a cena dos embates étnicos e das intervenções humanitárias.
Mas não é só a imagem em geral -e particularmente a imagem fotográfica- que se acha envolvida nessa tormenta. É também uma certa idéia da modernidade artística. O que fez a dupla fortuna política e artística da fotografia em nosso século foi o fato de ela exemplificar o lugar privilegiado que a arte moderna confere às imagens dos anônimos -esses anônimos que se apropriaram, no século passado, dessa imagem que sempre foi reservada aos privilegiados, aos que tinham um nome e faziam a história. A objetiva dos grandes repórteres, ao atestar os horrores do século, e a objetiva dos Doisneau ou dos Cartier-Bresson, ao surpreender crianças na rua ou os amantes anônimos.
Elas exprimiam esse tempo em que todos se revelavam suscetíveis de ser sujeitos da história e objeto de arte. É esse "anônimo", sujeito comum da política democrática e da arte moderna, que vê também sua imagem se esfumar, se cindir em duas. Ao mesmo tempo que a lei estende sua proteção ambígua aos supostos inocentes e à dignidade das vítimas, os anônimos da legenda fotográfica demandam às agências o preço mercantil de sua imagem. Num mundo dividido entre proprietários de imagens e proprietários de dignidade, não é somente a política, mas também a arte, que vê suas imagens comprometidas.
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Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor de "O Dissenso", "O Desentendimento", "A Noite dos Proletários", entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", da Folha.
Tradução de José Marcos Macedo.



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