São Paulo, Domingo, 17 de Outubro de 1999
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O poeta tumultuado


Folha Imagem
Da esq. para a dir., os poetas Geir Campos, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira e Lêdo Ivo



Ferreira Gullar recorda os encontros que teve com o autor de "Museu de Tudo" desde a década de 50



ADRIANO SCHWARTZ
Editor-adjunto do Mais!



O poeta Ferreira Gullar não encontrava João Cabral de Melo Neto havia mais de dez anos. Poucos meses atrás, chegou a pedir a um amigo comum para tentar marcar uma conversa com o autor pernambucano, que, 45 anos antes, escrevera uma elogiosa resenha de seu livro de estréia, "A Luta Corporal". Não deu tempo. O amigo viajou, e a morte de Cabral tornou impossível a reunião.
No depoimento a seguir, concedido por telefone, Gullar relembra os principais episódios de sua convivência com João Cabral, que começou com uma visita em 1954, logo após a publicação da citada resenha, e atravessou Barcelona, discordâncias sobre a importância das idéias do movimento concretista, a crueldade das touradas e até a lembrança do pai.

O medo do poeta

Conheci João Cabral no início dos anos 50, no período em que foi posto para fora do Itamaraty, quando Carlos Lacerda fez uma denúncia contra ele. Ele veio para o Brasil e entrou em seguida com uma ação, com um recurso. Nessa época, quando fervia essa situação, ele morava num prédio na rua Farani, no Rio. Era o prédio dos poetas: moravam lá Murilo Mendes, Lêdo Ivo, João Cabral.
Fui visitar João Cabral e ele estava assustadíssimo. Enquanto nós conversávamos, olhava no corredor para ver se havia alguém escutando. Estava traumatizado com que havia acontecido: ele ganhava a vida como diplomata, era isso que ele era. Já tinha admiração por ele, pela poesia dele, e quis conhecê-lo. Fui visitá-lo com algum conhecido, mas não me lembro quem. Ele me contou as absurdas acusações que o Lacerda havia feito. Era uma coisa infundada, pois o João Cabral nunca foi de conspirar. Na Espanha, ele estava ligado ao pessoal da esquerda e tinha ele próprio uma posição de esquerda, mas era uma coisa pessoal dele, que não envolvia seu trabalho diplomático.
Eu fiquei muito simpatizado pela figura dele, pois parecia um pouco com o meu pai. Ele devia ter na época uns 34 anos, e eu tinha uns 23. Ele lembrava um pouco o meu pai, com aquele jeito nordestino dele.
Em seguida, fui trabalhar na revista "Manchete" com o Otto Lara Resende, que era seu amigo. Um dia, o Otto me deu os originais de "Morte e Vida Severina" para ler. E eu gostei muito. Nessa época, João Cabral fazia uma coluna literária em "A Vanguarda", um jornal que o Joel Silveira tinha criado com o Rubem Braga. Antes de eu o conhecer, ele já estava trabalhando nesse jornal. No começo de 54, publiquei "A Luta Corporal", e ele escreveu sobre o livro -aliás, foi esse o motivo da visita. Ele falava que a obra o lembrava da experiência de Mallarmé, um livro que não era um depósito de poemas, mas que era na verdade uma coisa integrada, em que o poema fazia parte da própria página, e que a página em branco era usada como um elemento expressivo etc. Isso me deixou muito contente.


Encontro na Espanha
Passaram-se os anos e eu o encontrei em Barcelona, em 1968. Eu participava da luta de resistência e, após a passeata dos 100 mil, tinha uma viagem programada para a Europa com a minha mulher. Ao chegar a Barcelona, procurei por João Cabral. Nessa época, ele tinha sido promovido pelo governo do Castelo Branco -e estava bastante preocupado com esse fato. Ele nos convidou para um jantar, no qual apareceu o Otto Lara, que levou uma carta da Academia Brasileira de Letras, dizendo que ele havia sido eleito. E então ele ficou preocupado mesmo.
No dia seguinte, nós nos encontramos de novo, para almoçar e, depois, assistir a uma tourada. Nesse almoço, quis explicar por que tinha entrado para a academia. Dizia que o pai dele havia sido demitido pela ditadura do Getúlio e que isso já tinha acontecido com ele, sendo algo que o apavorava. Ele achava que o regime de direita podia cismar com ele, pela história dele, como homem de esquerda. Havia também o negócio de "Morte e Vida Severina", que virara um problema para ele, porque as pessoas começaram a fazer montagens, e ele ficava preocupado com tudo aquilo. Chegaram a fazer inclusive apresentações em Paris, e ele falou que não iria. Ele falava essas coisas rindo. Eu pouco ligava para essa história de academia, mas ele fez questão de explicar.
Aí fomos para a tourada e eu fiquei horrorizado com aquilo. Ele ficou muito zangado comigo e começou na sala a fazer passos de toureiro com um pano invisível, a mostrar como o toureiro agia. Ao mesmo tempo, bebia uísque e ficava cada vez mais entusiasmado com a conversa.

Poesia matemática
Numa certa altura, falamos do concretismo. Eu disse: "Você não tem nada a ver com o concretismo, João". Aí ele me perguntou por que eu havia rompido com o movimento. Ao que eu respondi que na verdade eles (os concretistas de São Paulo) que haviam rompido, pois queriam fazer uma poesia segundo equações matemáticas, o que era impossível. Eu não podia participar calado de uma proposta dessa por considerá-la um charlatanismo. Aí o João falou:
"Mas poesia matemática pode ser feita sim, acho que você não tem razão".
"Mas como, João?", perguntei.
"Eu estou escrevendo um poema, por exemplo, que será o seguinte: tudo múltiplo de dois. A metragem dos versos terá 12 sílabas, as rimas serão parelhas, e a estrofes, múltiplas de dois."
"E esse dois nasceu de onde? Essa sua matemática aí é que nem a do soneto, uma matemática externa ao poema."
Aí eu expliquei para ele que a idéia dos concretistas não era a de ter matemática desse jeito. O que eles buscavam era uma equação matemática que determinasse a própria palavra usada no poema. Era algo que eu considerava absurdo...

A desordem interna
João Cabral só tinha na parede dele quadros concretistas e, em certo momento, eu brinquei com ele, dizendo que deveria variar, que aquilo estava muito ultrapassado. Então ele me disse:
"Olha, já tenho confusão demais dentro da minha cabeça. Preciso ter ordem em algum lugar".
Acho que essa resposta é muito elucidativa de todo o comportamento do João Cabral com relação à poesia, a atitude dele, o rigor formal, a necessidade de controlar o poema, de criar o poema racionalmente. Isso é exatamente a necessidade de alguém que tem uma inquietação muito grande, que precisa diminuir aquela efervescência, aquele tumulto. E é isso que determina a qualidade de sua poética, não só lhe dá autenticidade, como é expressão de uma necessidade efetiva. Não é uma mania formalista.

A tristeza
Depois ele ficou muito tempo no exterior e passamos muitos anos sem nos vermos. Fora episódios muito rápidos, a última vez que estive com ele, uns dez anos atrás, foi para uma conversa entre nós dois feita a pedido do jornal "O Globo", quando falamos longamente, durante uma tarde inteira.
Houve então um distanciamento. Eu, com uma série de problemas, e ele, ligado a uma posição -a meu ver equivocada- de um certo partidarismo ao pessoal (concretista) de São Paulo, que o exaltava, incensava.
A morte dele me deixou perturbado. Recentemente, eu pedi a um amigo comum, que costumava vê-lo por outras razões, para sondá-lo sobre a possibilidade de uma visita. Eu não queria incomodá-lo por não saber exatamente qual era o seu estado de saúde. Mas esse amigo viajou, e isso não pode acontecer. E eu lamento muito não ter me encontrado com ele. A sua morte me abalou. Tenho lido os poemas dele, pensado nele, cantado a canção de "Morte e Vida Severina", aquilo me vem a cabeça o tempo todo. É até estranho, pois eu estava aparentemente tão distante dele... Mas a morte mostrou que não.


Um novo Cabral?
A poesia, a música, o teatro são expressão de necessidades profundas das pessoas. Durante um determinado período há uma florescência maior, durante outros, não. Mas isso é determinado por fatores que não se conhecem. A quantidade de poetas que estão começando suas carreiras é imensa. E agora mesmo em algum lugar pode estar nascendo alguém que venha a ser um novo João Cabral.


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