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O poeta tumultuado
Folha Imagem
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Da esq. para a dir., os poetas Geir Campos, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira e Lêdo Ivo
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Ferreira Gullar recorda os
encontros que teve com o
autor de "Museu de Tudo"
desde a década de 50
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ADRIANO SCHWARTZ
Editor-adjunto do Mais!
O poeta Ferreira Gullar não encontrava João Cabral de Melo Neto havia mais de dez anos. Poucos
meses atrás, chegou a pedir a um
amigo comum para tentar marcar
uma conversa com o autor pernambucano, que, 45 anos antes,
escrevera uma elogiosa resenha
de seu livro de estréia, "A Luta
Corporal". Não deu tempo. O
amigo viajou, e a morte de Cabral
tornou impossível a reunião.
No depoimento a seguir, concedido por telefone, Gullar relembra os principais episódios de sua
convivência com João Cabral, que
começou com uma visita em 1954,
logo após a publicação da citada
resenha, e atravessou Barcelona,
discordâncias sobre a importância das idéias do movimento concretista, a crueldade das touradas
e até a lembrança do pai.
O medo do poeta
Conheci João Cabral no início
dos anos 50, no período em que
foi posto para fora do Itamaraty,
quando Carlos Lacerda fez uma
denúncia contra ele. Ele veio para
o Brasil e entrou em seguida com
uma ação, com um recurso. Nessa
época, quando fervia essa situação, ele morava num prédio na
rua Farani, no Rio. Era o prédio
dos poetas: moravam lá Murilo
Mendes, Lêdo Ivo, João Cabral.
Fui visitar João Cabral e ele estava assustadíssimo. Enquanto nós
conversávamos, olhava no corredor para ver se havia alguém escutando. Estava traumatizado
com que havia acontecido: ele ganhava a vida como diplomata, era
isso que ele era. Já tinha admiração por ele, pela poesia dele, e quis
conhecê-lo. Fui visitá-lo com algum conhecido, mas não me lembro quem. Ele me contou as absurdas acusações que o Lacerda
havia feito. Era uma coisa infundada, pois o João Cabral nunca foi
de conspirar. Na Espanha, ele estava ligado ao pessoal da esquerda
e tinha ele próprio uma posição
de esquerda, mas era uma coisa
pessoal dele, que não envolvia seu
trabalho diplomático.
Eu fiquei muito simpatizado pela figura dele, pois parecia um
pouco com o meu pai. Ele devia
ter na época uns 34 anos, e eu tinha uns 23. Ele lembrava um pouco o meu pai, com aquele jeito
nordestino dele.
Em seguida, fui trabalhar na revista "Manchete" com o Otto Lara
Resende, que era seu amigo. Um
dia, o Otto me deu os originais de
"Morte e Vida Severina" para ler.
E eu gostei muito. Nessa época,
João Cabral fazia uma coluna literária em "A Vanguarda", um jornal que o Joel Silveira tinha criado
com o Rubem Braga. Antes de eu
o conhecer, ele já estava trabalhando nesse jornal. No começo
de 54, publiquei "A Luta Corporal", e ele escreveu sobre o livro
-aliás, foi esse o motivo da visita.
Ele falava que a obra o lembrava
da experiência de Mallarmé, um
livro que não era um depósito de
poemas, mas que era na verdade
uma coisa integrada, em que o
poema fazia parte da própria página, e que a página em branco era
usada como um elemento expressivo etc. Isso me deixou muito
contente.
Encontro na Espanha
Passaram-se os anos e eu o encontrei em Barcelona, em 1968.
Eu participava da luta de resistência e, após a passeata dos 100 mil,
tinha uma viagem programada
para a Europa com a minha mulher. Ao chegar a Barcelona, procurei por João Cabral. Nessa época, ele tinha sido promovido pelo
governo do Castelo Branco -e
estava bastante preocupado com
esse fato. Ele nos convidou para
um jantar, no qual apareceu o Otto Lara, que levou uma carta da
Academia Brasileira de Letras, dizendo que ele havia sido eleito. E
então ele ficou preocupado mesmo.
No dia seguinte, nós nos encontramos de novo, para almoçar e,
depois, assistir a uma tourada.
Nesse almoço, quis explicar por
que tinha entrado para a academia. Dizia que o pai dele havia sido demitido pela ditadura do Getúlio e que isso já tinha acontecido
com ele, sendo algo que o apavorava. Ele achava que o regime de
direita podia cismar com ele, pela
história dele, como homem de esquerda. Havia também o negócio
de "Morte e Vida Severina", que
virara um problema para ele, porque as pessoas começaram a fazer
montagens, e ele ficava preocupado com tudo aquilo. Chegaram a
fazer inclusive apresentações em
Paris, e ele falou que não iria. Ele
falava essas coisas rindo. Eu pouco ligava para essa história de academia, mas ele fez questão de explicar.
Aí fomos para a tourada e eu fiquei horrorizado com aquilo. Ele
ficou muito zangado comigo e começou na sala a fazer passos de
toureiro com um pano invisível, a
mostrar como o toureiro agia. Ao
mesmo tempo, bebia uísque e ficava cada vez mais entusiasmado
com a conversa.
Poesia matemática
Numa certa altura, falamos do
concretismo. Eu disse: "Você não
tem nada a ver com o concretismo, João". Aí ele me perguntou
por que eu havia rompido com o
movimento. Ao que eu respondi
que na verdade eles (os concretistas de São Paulo) que haviam
rompido, pois queriam fazer uma
poesia segundo equações matemáticas, o que era impossível. Eu
não podia participar calado de
uma proposta dessa por considerá-la um charlatanismo. Aí o João
falou:
"Mas poesia matemática pode
ser feita sim, acho que você não
tem razão".
"Mas como, João?", perguntei.
"Eu estou escrevendo um poema, por exemplo, que será o seguinte: tudo múltiplo de dois. A
metragem dos versos terá 12 sílabas, as rimas serão parelhas, e a
estrofes, múltiplas de dois."
"E esse dois nasceu de onde? Essa sua matemática aí é que nem a
do soneto, uma matemática externa ao poema."
Aí eu expliquei para ele que a
idéia dos concretistas não era a de
ter matemática desse jeito. O que
eles buscavam era uma equação
matemática que determinasse a
própria palavra usada no poema.
Era algo que eu considerava absurdo...
A desordem interna
João Cabral só tinha na parede
dele quadros concretistas e, em
certo momento, eu brinquei com
ele, dizendo que deveria variar,
que aquilo estava muito ultrapassado. Então ele me disse:
"Olha, já tenho confusão demais dentro da minha cabeça.
Preciso ter ordem em algum lugar".
Acho que essa resposta é muito
elucidativa de todo o comportamento do João Cabral com relação à poesia, a atitude dele, o rigor
formal, a necessidade de controlar o poema, de criar o poema racionalmente. Isso é exatamente a
necessidade de alguém que tem
uma inquietação muito grande,
que precisa diminuir aquela efervescência, aquele tumulto. E é isso
que determina a qualidade de sua
poética, não só lhe dá autenticidade, como é expressão de uma necessidade efetiva. Não é uma mania formalista.
A tristeza
Depois ele ficou muito tempo
no exterior e passamos muitos
anos sem nos vermos. Fora episódios muito rápidos, a última vez
que estive com ele, uns dez anos
atrás, foi para uma conversa entre
nós dois feita a pedido do jornal
"O Globo", quando falamos longamente, durante uma tarde inteira.
Houve então um distanciamento. Eu, com uma série de problemas, e ele, ligado a uma posição
-a meu ver equivocada- de um
certo partidarismo ao pessoal
(concretista) de São Paulo, que o
exaltava, incensava.
A morte dele me deixou perturbado. Recentemente, eu pedi a
um amigo comum, que costumava vê-lo por outras razões, para
sondá-lo sobre a possibilidade de
uma visita. Eu não queria incomodá-lo por não saber exatamente qual era o seu estado de saúde.
Mas esse amigo viajou, e isso não
pode acontecer. E eu lamento
muito não ter me encontrado
com ele. A sua morte me abalou.
Tenho lido os poemas dele, pensado nele, cantado a canção de
"Morte e Vida Severina", aquilo
me vem a cabeça o tempo todo. É
até estranho, pois eu estava aparentemente tão distante dele...
Mas a morte mostrou que não.
Um novo Cabral?
A poesia, a música, o teatro são
expressão de necessidades profundas das pessoas. Durante um
determinado período há uma florescência maior, durante outros,
não. Mas isso é determinado por
fatores que não se conhecem. A
quantidade de poetas que estão
começando suas carreiras é imensa. E agora mesmo em algum lugar pode estar nascendo alguém
que venha a ser um novo João Cabral.
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