|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
João Cabral e a tripa
SEBASTIÃO UCHOA LEITE
especial para a Folha
Com o desaparecimento de João Cabral de Melo Neto
vale lembrar o dito rilkiano de que "a fama é a soma de
todos os equívocos em torno de alguém". Talvez pensasse em si mesmo ou em todos os poetas. Os quais, julgou outro poeta (Octavio Paz), não deveriam celebrizar-se e expor-se, mas permanecerem em suas criptas: a
identidade vampírica dos poetas, uma imagem romântica. João Cabral não era rilkiano (exceto no louvor aos
"Novos Poemas") nem, muito menos, octaviano. E preferiu, proclama-se, a solaridade à obscuridade; a fala, ao
silêncio místico; e a concreção da linguagem às abstrações transcendentais.
Ao morrer, emergiram todos os truísmos em torno de
sua obra (rigor + cálculo + cerebralismo etc.) e até um
truísmo genérico de comentador ocasional, o de que
fosse um poeta "espiritual". Mas como se pode ser artista e não se ter espiritualidade? Sem que isso se confunda
com religiosidade, pois a disjunção entre os dois termos
é questão de rigor linguístico. O jogo da linguagem poética é, em si, o jogo do espírito em seu aspecto lúdico,
concreto e imanente, nada tendo isso a ver com religiosidade. Quanto ao truísmo do jogo poético cerebrino
(como se algum outro órgão pudesse ter algo a ver), é
preciso destruí-lo a partir de dentro do próprio "corpus" poético do autor. É lembrável o seu jogo de linguagem com uma metáfora "poética", a do coração, em
"España en el Corazón" (apropriação irônica do "pouco
ibérico Neruda"), em "Agrestes". À idéia de coração enquanto metáfora o poeta opõe a idéia do órgão físico, e à
esta idéia opõe uma "outra tripa", a do colhão, para falar
da Espanha enquanto entidade não-sentimental, mas
visceral.
Cabral operou por similaridades e antíteses, e é sua
obra, ela mesma, enquanto materialidade linguística,
um excêntrico oxímoro poético. Antes de tudo por operar através de tópicos da tradição poética, sem negar
princípios como a medida e a rima assonante, que tirou
da cultura ibérica clássica; e por, através de recursos tradicionais, insidiá-los por meio de figuras nada convencionais, e por uma sintaxe nada fluente, entrecortada,
entre dentes. Como se pode ser por igual tradicionalista
e "fundassentado" (imagem de JCMN, de um assento
profundo e acolchoado, referindo-se aos emblemáticos
"comendadores") e inconformista? Pois assim foi o inconformista que optou, a certa altura, pela tradição clássica.
Poemas testemunham que o poeta não está tão do lado da lei e da ordem como se poderia supor estar um
tradicionalista; ao acaso, lembremos o poema, também
de "Agrestes", em que se evoca a imagem católica tradicional do inferno, o "Conversa com uma Sevilhana". De
aparente simplicidade linear, o poema joga com idéias
antitéticas. Os hipotéticos interlocutores (poeta e sevilhana) misturam, adulteramente, amantes "desabençoados dos padres" (o "nós" do poema) e os choferes de
táxi, a polícia, os porteiros e "os que estão atrás dos guichês", isto é, controlados e controladores, numa confusão vaudevillesca, porém termina numa conclusão genérica: os que controlam qualquer coisa e os que fazem
do controle autoridade, todos vão para o inferno:
"Enfim, quem manda, vai primeiro,
vai de cabeça, vai direto.
talvez precise de sargentos
a ordem unida que há no inferno".
Sem dúvida há um efeito bufônico na heterodoxa mistura dos que detêm o poder da autoridade, ou seja, dos
que mandam. A idéia popular de controle é coerente
com a simplicidade aparente do jogo poético cabralino.
Assenta-se perfeitamente à idéia de tripa, de visceralidade radical, que percorre toda a obra. Por isso, nela parece central o cruzamento entre Pernambuco & Andaluzia, regiões não só do coração, mas de "outras tripas". É
uma poética decidida do "baixo ventre".
A insistência em se destacar o cálculo fino da "poesia
fina" e o racionalismo na poesia de João Cabral pode
acabar ignorando um outro aspecto importante dessa
poética, que é a sua opção, não só racional, mas emocional, pelo que é visceral, pelo que é tripa e não metáfora
poética, por algo rústico que reside mais na idéia medular da cabra que resiste do que nas medidas arquitetônicas da construção poética. Vivesse no século 17, seria
outro "Boca do Inferno"? No século 20, teve que se conter, refinar o pó malhado modernista. Coube ao poeta
resolver as contra-dicções, do que resultou o fascínio do
seu oxímoro poético.
Sebastião Uchoa Leite é poeta, ensaísta e tradutor. Publicou recentemente "A Ficção Vida" (poemas, Ed. 34) e "Jogos e Enganos" (ensaios, Ed. 34/ Editora UFRJ, 1996).
Prepara a edição de "A Espreita" (poemas, Ed. Perspectiva).
Texto Anterior: O poeta tumultuado Próximo Texto: Política: A ruína do capitalismo Índice
|