São Paulo, Domingo, 17 de Outubro de 1999
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PONTO DE FUGA

O tenor e as fadas


JORGE COLI
especial para a Folha,
em Nova York

A dupla "Cavalleria Rusticana" e "I Pagliacci" abriu a temporada de óperas da Met, em NY. Plácido Domingo cantava "I Pagliacci" junto a Veronica Villarroel, a mesma do "Il Guarany" gravado pela Sony, mais convincente aqui do que na delicada Cecilia, de Carlos Gomes. Mas a expectativa da noite era a "Cavalleria". Nela estreava, em NY, o tenor argentino José "onde está a minha camisa" Cura, como é conhecido nos bastidores. As fadas madrinhas às vezes perdem completamente a cabeça. Quando nasceu, elas se reuniram em volta de seu berço e disseram: "José Cura vai ter beleza física, vai lutar taekwondo e fazer musculação; vai dominar uma impecável musicalidade, a ponto de compor obras com gosto e inspiração, ou tecer os mais sutis fraseados dirigindo orquestras; vai saber pronunciar as palavras com emoções adequadas; vai ter uma das mais belas vozes, poderosa, extensa, com um timbre de bronze escuro; vai...". "Chega!", berrou a fada de nariz torto, que sempre chega para estragar a festa. "Você vai ter tudo isto, mas eu...". Aí se aproximou do berço, e o bebê era tão bonitinho que ela amoleceu: "Está bem, vou pôr na sua voz apenas um vibrato (a fada entendia de ópera) que poderá -digo poderá, não é certo- vir a se descontrolar com o tempo. Mas, no auge dos seus 36 anos, depois de triunfar em Londres e no Scala de Milão, você vai fazer a Met, em NY, vir quase abaixo com aplausos". O que, convenhamos, é de deixar qualquer mortal comum roendo-se de inveja.

Larica - "American Beauty" é o primeiro filme de Sam Mendes. Possui o mesmo colorido artificial, discreto e sonhador, que seu diretor, no teatro, encontrara para "Blue Room", uma adaptação de Schnitzler estrelada por Nicole Kidman. É um filme "low profile". Conta, sem agressividade, mas sem falsos pudores, a crise de um quarentão suburbano. Nesse estilo calmo, de sofisticação um pouco fria, os sonhos e os valores da classe média americana, que quer triunfar, são reduzidos a pó. A crítica à família, aos horizontes estreitos, ao puritanismo fascistóide não é novidade. Mostrar, como positivas, a renúncia de um trabalho "ambicioso" para o de servir hambúrgueres ou a paixão de um homem maduro por uma ninfeta é mais surpreendente. Propor a maconha como o instrumento definitivo para a consciência clara das coisas e o gatilho que permite encontrar um equilíbrio feliz, individual e pleno é destoante de tudo o que o cinema tem oferecido nos últimos tempos. O bem e o mal trocaram de lugar. São revelados, sob a aparência, não pelo desejo de "vencer na vida", mas por uma fome de felicidade.

Fruição - Três recitais e uma ópera são os CD's de José Cura para o selo Erato. Ele é o mais estupendo dos Sansões, em atordoante gravação da obra de Saint-Saëns, dirigida por Colin Davis. Um dos recitais, sob a batuta de Plácido Domingo, é consagrado a Puccini: corram ouvir seu "E Lucevan le Stelle", seu "Nessun Dorma". Num outro, intitulado "Verismo", ele próprio rege e canta, fundindo matizes de intenções musicais. Enfim, o mais raro e suave, "Anhelo", contém obras de compositores argentinos, algumas assinadas pelo próprio tenor.

Fios - Os atores, em "American Beauty", multiplicam nuanças ao demonstrar que crenças e valores são, de fato, hipocrisia e frustrações. Kevin Spacey decola como um "loser", num casamento em estado de coma. Suas sessões masturbatórias são hilariantes, assim como a energia "lutadora" e patética de sua esposa, Annette Benning, afogada na cultura do "empowerment". E há muito que o cinema não tratava dos adolescentes com tanta poesia.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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