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PONTO DE FUGA
O tenor e as fadas
JORGE COLI
especial para a Folha,
em Nova York
A dupla "Cavalleria Rusticana" e "I Pagliacci" abriu a temporada de óperas da Met, em
NY. Plácido Domingo cantava
"I Pagliacci" junto a Veronica
Villarroel, a mesma do "Il Guarany" gravado pela Sony, mais
convincente aqui do que na delicada Cecilia, de Carlos Gomes. Mas a expectativa da noite era a "Cavalleria". Nela estreava, em NY, o tenor argentino José "onde está a minha camisa" Cura, como é conhecido
nos bastidores. As fadas madrinhas às vezes perdem completamente a cabeça. Quando
nasceu, elas se reuniram em
volta de seu berço e disseram:
"José Cura vai ter beleza física,
vai lutar taekwondo e fazer
musculação; vai dominar uma
impecável musicalidade, a
ponto de compor obras com
gosto e inspiração, ou tecer os
mais sutis fraseados dirigindo
orquestras; vai saber pronunciar as palavras com emoções
adequadas; vai ter uma das
mais belas vozes, poderosa, extensa, com um timbre de bronze escuro; vai...". "Chega!",
berrou a fada de nariz torto,
que sempre chega para estragar a festa. "Você vai ter tudo
isto, mas eu...". Aí se aproximou do berço, e o bebê era tão
bonitinho que ela amoleceu:
"Está bem, vou pôr na sua voz
apenas um vibrato (a fada entendia de ópera) que poderá
-digo poderá, não é certo-
vir a se descontrolar com o
tempo. Mas, no auge dos seus
36 anos, depois de triunfar em
Londres e no Scala de Milão,
você vai fazer a Met, em NY, vir
quase abaixo com aplausos". O
que, convenhamos, é de deixar
qualquer mortal comum roendo-se de inveja.
Larica - "American Beauty" é
o primeiro filme de Sam Mendes. Possui o mesmo colorido
artificial, discreto e sonhador,
que seu diretor, no teatro, encontrara para "Blue Room",
uma adaptação de Schnitzler
estrelada por Nicole Kidman. É
um filme "low profile". Conta,
sem agressividade, mas sem
falsos pudores, a crise de um
quarentão suburbano. Nesse
estilo calmo, de sofisticação
um pouco fria, os sonhos e os
valores da classe média americana, que quer triunfar, são reduzidos a pó. A crítica à família, aos horizontes estreitos, ao
puritanismo fascistóide não é
novidade. Mostrar, como positivas, a renúncia de um trabalho "ambicioso" para o de servir hambúrgueres ou a paixão
de um homem maduro por
uma ninfeta é mais surpreendente. Propor a maconha como o instrumento definitivo
para a consciência clara das
coisas e o gatilho que permite
encontrar um equilíbrio feliz,
individual e pleno é destoante
de tudo o que o cinema tem
oferecido nos últimos tempos.
O bem e o mal trocaram de lugar. São revelados, sob a aparência, não pelo desejo de
"vencer na vida", mas por uma
fome de felicidade.
Fruição - Três recitais e uma
ópera são os CD's de José Cura
para o selo Erato. Ele é o mais
estupendo dos Sansões, em
atordoante gravação da obra
de Saint-Saëns, dirigida por
Colin Davis. Um dos recitais,
sob a batuta de Plácido Domingo, é consagrado a Puccini:
corram ouvir seu "E Lucevan le
Stelle", seu "Nessun Dorma".
Num outro, intitulado "Verismo", ele próprio rege e canta,
fundindo matizes de intenções
musicais. Enfim, o mais raro e
suave, "Anhelo", contém obras
de compositores argentinos,
algumas assinadas pelo próprio tenor.
Fios - Os atores, em "American Beauty", multiplicam
nuanças ao demonstrar que
crenças e valores são, de fato,
hipocrisia e frustrações. Kevin
Spacey decola como um "loser", num casamento em estado de coma. Suas sessões masturbatórias são hilariantes, assim como a energia "lutadora"
e patética de sua esposa, Annette Benning, afogada na cultura do "empowerment". E há
muito que o cinema não tratava dos adolescentes com tanta
poesia.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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