São Paulo, Domingo, 17 de Outubro de 1999
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POLÍTICA

A ruína do capitalismo



Para o sociólogo americano Immanuel Wallerstein, a humanidade atravessará 50 anos de convulsões sociais com a agonia do sistema

GUSTAVO IOSCHPE
Colunista da Folha

Nas paredes do diminuto escritório em Paris, pôsteres amarelecidos de cidades italianas e anúncios de palestras, uma estante com livros, um rack com fitas cassete de música clássica. Uma mesa para o computador e outra para a montanha de papéis. No centro da anarquia, o protagonista: Immanuel Wallerstein, um dos mais importantes intelectuais vivos e um dos principais sociólogos em atividade.
Próximo aos 70 anos, o sociólogo americano é o autor da monumental trilogia "The Modern World-System", três catataus que descrevem o mundo capitalista do século 16 até o 19.
Sua análise de "sistemas-mundo" é uma tentativa de ver o sistema capitalista como um todo, entendendo que não se trata de uma colcha de retalhos de Estados nacionais autônomos, mas de um sistema unificado e altamente hierarquizado, que surgiu muito antes de fábricas e navios a vapor.
É de Wallerstein a famosa separação do mundo entre os países de centro e de periferia e a constatação de que estes sofriam com os termos desiguais de comércio praticados por aqueles. Suas idéias vêm ajudando a derrubar alguns dos axiomas pelos quais (sobre)vivemos: a crença na utilidade do Estado-nação como ferramenta de melhoria de posição na escala das coisas; a idéia, emprestada do neoclassicismo econômico e da teoria da modernização, de que todos os países devem convergir, em algum momento, no paraíso da fartura e da opulência; e a certeza de que o sistema capitalista, apesar de não ter tudo resolvido, pelo menos trouxe ganhos em qualidade de vida para a humanidade, desde que foi implantado há 500 anos.
Wallerstein questiona e redireciona tudo: a validade da ciência, a crença no progresso, a malignidade das elites nacionais, a esperança dos terceiro-mundistas pela ascensão dentro do sistema e o futuro do mundo como o conhecemos. No fim, o discreto cidadão na sala pequena de um prédio velho de uma rua de Paris acaba desmontando as próprias idéias e avisa: o capitalismo não dura mais que 50 anos; até lá vamos ter um período de muita incerteza, desordem e, principalmente, mudança, como ele diz na entrevista a seguir.

Folha - Muitos países têm entrado voluntariamente em acordos de livre comércio no chamado mundo "globalizado" com potências que recentemente os exploravam, acreditando na doutrina de vantagem comparativa. O sr. vê essa adesão como o "beijo da morte" para os países periféricos?
Immanuel Wallerstein -
Em primeiro lugar, eu acho que o termo "globalização" é em grande parte um slogan e uma mistificação, não uma realidade nova. Estamos falando é da liberdade de movimento dos fatores de produção versus protecionismo. Isso tem sido uma questão por 500 anos. Países foram para um lado e para outro na questão, porque há vantagens em ambos, para todos. No momento, os EUA têm liderado um grande esforço para derrubar barreiras, especialmente de fluxos de capital. Os fluxos financeiros sempre foram os mais controlados de todos. Os EUA tiveram um certo nível de sucesso nos últimos dez anos, conseguindo com que países fizessem coisas para as quais eles ainda não estavam preparados.
Por um lado, essa iniciativa começou com muito êxito. Quando você proclama que não há alternativas ao modelo neoliberal, o que está querendo dizer é que não deveria haver outras alternativas, mas, obviamente, elas existem. Houve uma forte reação. Não só uma reação de vários países, que disseram: "Isso não funciona para nós, vamos sair perdendo", mas também dos EUA e da Europa Ocidental, de pessoas como Jeffrey Sachs e Kissinger; pessoas que você não poderia nunca chamar de esquerdistas. E o argumento deles é muito sensato, ao dizerem que as pessoas que têm se esforçado para conseguir esse livre fluxo não pensaram nas consequências de uma política como essa. As consequências são muito severas: colapsos de liderança, seguidos de revoluções etc. O que eles estão dizendo é que você deve fazer isso de uma maneira mais social.
Então a combinação da discussão, simbolicamente, do FMI-Banco Mundial e a crescente resistência de alguns países definitivamente diminuíram o grau de abertura. Mas isso não é nada de novo, acelera e regride o tempo todo, e certamente o livre comércio não é uma panacéia. Quer dizer, a idéia de que você deve competir não tem nada de novo -o que é o capitalismo senão a teoria de que você tem de ser competitivo no mercado mundial?

Folha - O sr. não acha que a adesão formal a tratados de livre comércio é algo novo e prejudicial?
Wallerstein -
Certamente não é novo. Certamente algo que não é bom "per se": é bom para alguns e ruim para outros. E certamente não é inevitável ou irrevogável. Quer dizer, eu não acho que daqui a dez ou 15 anos haverá mais abertura do que há agora, talvez até haja consideravelmente menos.
À medida que os EUA constroem uma zona na América Latina, quais seriam os excluídos? Os europeus, os japoneses... Mas eles terão as suas próprias zonas. Nós podemos, daqui a dez ou 15 anos, ter um mundo formalmente dividido em três zonas, dentro das quais haverá livre comércio, mas não entre elas. Nós já estamos vendo coisas assim na Europa Ocidental, que são apenas um sinal de conflitos mais fundamentais ainda por vir.

Folha - O livre comércio -ou a globalização, como é chamado- vem sendo defendido por membros da chamada Terceira Via, pessoas de perfil social-democrata, como Blair, Clinton...
Wallerstein -
... E Fernando Henrique Cardoso.

Folha - Isso significa que a Terceira Via seria apenas um disfarce, um rótulo?
Wallerstein -
Não. Olha, os social-democratas vêm, cada vez mais, migrando para o centro, por cem anos. Essas pessoas querem capturar a posição liberal. Em parte, é uma tentativa de conseguir mais votos. Eles acham que vão consegui-los no centro, sem perder votos na esquerda, se eles se proclamarem social-democratas. Mas eu não acho que essa seja a receita para o sucesso. Não acho que nisso haja algo de novo: trata-se da clássica posição centrista, liberal, que vem enfraquecendo nos últimos 30 anos, e eles estão tentando restaurá-la. Falta saber quanto sucesso terão.
Uma coisa que se pode dizer sobre a Terceira Via é que ela funciona. Se você é Clinton, ela funciona contra um Partido Republicano de extrema-direita. E, se você é Blair, ela funciona contra um Partido Conservador de extrema-direita. Mas, se os republicanos voltarem para sua posição de "moderados" e os conservadores voltarem para sua posição tradicional, por que os eleitores votariam na versão falsa, quando eles podem votar na versão verdadeira? Isso é tudo que tem de ser feito para a Terceira Via ser derrotada. Então, eu não a vejo como o caminho do futuro. Acho que ela já alcançou seu cume e agora está começando a retroceder.
Que Fernando Henrique Cardoso tenha aderido a isso diz mais sobre as suas tentativas de se posicionar internacionalmente do que sobre a política interna brasileira. Não creio que isso importe muito em termos de política interna brasileira. Eu não imagino que as pessoas saibam o que isso significa.

Folha - O sr. defende, na contracorrente das idéias dominantes, que, com o fim da Guerra Fria, o que realmente teria sido derrotado foi o liberalismo.
Wallerstein -
Se você quer começar com as minhas heresias, iniciemos com o que eu entendo por liberalismo. O liberalismo é, como quase todos os termos políticos importantes, um termo confuso e que confunde, e as pessoas o usam de várias maneiras diferentes. Há liberalismo político, econômico, liberalismo cultural -e esses termos não são a mesma coisa. As pessoas podem ser um sem ser o outro. Então, por que usamos o mesmo termo?
Os liberais têm sido pró e contra o liberalismo político, pró e contra o liberalismo econômico e pró e contra o liberalismo cultural, se você olhar para a verdadeira história do movimento. Então, é óbvio que nenhuma dessas é a questão-chave. O liberalismo tem sido, desde o início, a doutrina dos centristas do mundo.

Folha - Entre os conservadores e os movimentos anti-sistêmicos?
Wallerstein -
Exato. Tem sido a força dominante. Dizem: "Sim, o comércio é inevitável, o progresso está chegando e é uma coisa boa, mas ele tem de ser administrado e controlado por experts, e o que a gente tem para oferecer é reforma administrada". O liberalismo quer começar uma doutrina orientada pelo Estado (e a idéia de que o liberalismo é contra o Estado é uma loucura absoluta) sobre como controlar rebeliões em massa, por meio de concessões.
Se você pensar no liberalismo como a doutrina reformista que faz concessões para aplacar o descontentamento popular, mas sem entregar o jogo e mantendo o sistema, aí pode ver o seu sucesso histórico e os problemas que ele enfrenta hoje.
Parte do argumento é que os liberais conseguiram cooptar a oposição: por um lado, os conservadores, que eram contra qualquer tipo de mudança, e, por outro, os radicais, que queriam mudanças amplas e rápidas. E assim criou o que eu chamo de avatares do liberalismo, que podem discutir se querem reformas mais rápidas ou mais lentas, mas que, basicamente, aceitam as premissas do liberalismo. Isso controlou a situação política.
O último avatar do liberalismo foi o leninismo, que disse às massas: "Confie em nós, pois, quando chegarmos ao poder, faremos todas as reformas e, se as reformas não chegarem rápido o suficiente, é porque estamos sendo atacados, mas esperem e nós chegaremos, logo, na sociedade perfeita".
O meu argumento é que isso foi o que manteve o sistema nos últimos 30, 50 anos e, quando isso caiu, quando os movimentos anti-sistêmicos -na forma de movimentos de liberação nacional, comunistas ou até social-democratas- perderam o apoio popular, porque eles não conseguiram mudar o mundo, isso provocou a queda do comunismo. Provocou também a queda da principal ferramenta de controle que as forças dominantes tinham sobre as massas, que, então, ficaram desiludidas.
Elas não têm mais a crença de que alguma magia ou feitiço vá acontecer e se tornam, por um lado, contra o Estado e, por outro lado, muito amedrontadas -porque o Estado está entrando em colapso a sua volta, e há crimes- e então elas se voltam ao que eu chamo de "grupismo", que é a criação de grupos que vão prover segurança contra o perigo.

Folha - Será que o sr. poderia delinear, de forma resumida, suas razões para achar que o capitalismo está agonizando?
Wallerstein -
Eu venho argumentando que o capitalismo está acabando por causa dos limites impostos à acumulação de capital, de um lado, e do colapso da sua sustentação política, de outro.
A sustentação política do capitalismo tem sido o liberalismo que tem especialmente por meio de seu avatar reprimido revoltas populares. Basicamente, em uma palavra, a sustentação política mais importante é a legitimação do Estado. E a legitimação do Estado passa pela promessa dos movimentos anti-sistêmicos de que o Estado seria uma ferramenta boa para transformar o mundo. Eu acho que isso acabou.
Então nós vamos às bases econômicas do sistema, e o sistema existe para a acumulação incessante de capital. O que eu venho argumentando é que isso está sendo prejudicado por três razões: um, o nível mundial de salários vem subindo e deve continuar crescendo por causa da "desruralização" do mundo; dois, o preço da matéria-prima vem subindo por causa do fim da possibilidade de externalização barata dos custos, essa é a crise ecológica; e três, o preço da arrecadação de impostos vem subindo mundialmente -a porcentagem de dinheiro recolhido que é destinada ao Estado, por aquilo que eu chamo de democratização do mundo, à medida que a população pressiona o Estado para que este lhe propicie saúde, educação e renda perpétua.
Então há três fatores, em escala mundial, que vem encolhendo as margens de lucro -e vão continuar a fazê-lo cada vez mais. Por um lado, do ponto de vista dos capitalistas, vale cada vez menos fazer parte do sistema e, por outro lado, é cada vez mais difícil de manter legitimidade política.

Folha - Nos próximos 50 anos, o sr. prevê uma série de convulsões sociais...
Wallerstein -
À medida que o sistema entra em colapso, a ordem social também rui, nacional e internacionalmente. Eu prevejo uma série de guerras sangrentas e inconcludentes, mas também tumultos sociais internos. E, particularmente, eu quero enfatizar que esses tumultos -normalmente associados a países de Terceiro Mundo, da periferia- agora vão acontecer no Norte. Especialmente nos Estados Unidos, mas também na Europa Ocidental, Japão etc. Será um mundo desagradável para se viver; intelectualmente estimulante, politicamente muito interessante e pessoalmente muito difícil.

Folha - Que tipo de conflitos o sr. vê entre o Norte e o Sul?
Wallerstein -
Eu vejo o conflito adotando o que eu chamo da forma Khomeini -uma dissensão radical de valores, a negação de se jogar pelas regras-; a forma Saddam Hussein -que é totalmente diferente, é calculadamente geopolítica: "Vamos aumentar nossos arsenais e desafiar o mundo". E a terceira forma, que eu chamo de "balseiros" -o caminho individual. Já que nós temos um mundo polarizado social e demograficamente, nós teremos, inevitavelmente, grandes fluxos migratórios, que você não consegue segurar. Você pode diminui-los, mas não pode pará-los.

Folha - Migração do sul para o norte?
Wallerstein -
É, do sul para o norte. Esses fluxos criarão o tumulto social interno nos países do norte. A demografia vai mudar, de forma dramática. E não só porque as pessoas irão do Brasil ou da Venezuela para os EUA: haverá uma cascata de fluxos, que irá mais rápido do que jamais ocorreu, e nós teremos um efeito político mais radical, por causa de sua velocidade e de seu tamanho.

"A política atual de FHC está muito longe de sua posição intelectual dos anos 50, mas não estou muito certo de que seja diferente de sua postura nos anos 70"

Folha - O sr. disse uma vez que é impossível para a América Latina desenvolver-se sozinha.
Wallerstein -
Não era sobre a América Latina. A ideologia liberal é a de que todos os países estão em estradas paralelas, indo para a frente. É a teoria da modernização... Então todos podem desenvolver-se, só é preciso que se aja da maneira correta. Então, nós podemos dizer: "Bolívia, você está numa situação péssima hoje, mas, se você fizer tudo direitinho, daqui a 30 ou 50 anos, você estará, se não como os EUA, pelo menos como o Canadá". Agora, dentro da estrutura do mundo capitalista, isso é "nonsense". O sistema requer polarização e, aliás, floresce nela. É uma questão de um sistema que é hierárquico. Um Estado em particular pode melhorar sua situação, mas, no geral, isso significa que alguém tem de piorar, porque a natureza hierárquica do sistema tem sido persistente desde o começo. E, como todos os dados mostram, nós estamos mais polarizados do que nunca, em 1999. A diferença entre os que estão no topo e os que estão embaixo é a maior que já houve. E isso nunca será solucionado dentro do sistema, senão você não poderia acumular capital.
Então, se você se refere a desenvolvimento nacional, é uma ilusão. Não são os Estados que se desenvolvem, mas o sistema. E o sistema como um todo está em crise. Mas a ilusão desenvolvimentista tem muita força, porque, se você vive em um Estado que não anda tão bem, parece uma idéia maravilhosa que o seu Estado deva fazer algo. E, para as pessoas que estão no topo, nesses países, é uma boa forma de conseguir poder político, para apresentar essa ilusão desenvolvimentista. Mas isso não aconteceu e não vai acontecer.
A maioria dos Estados latino-americanos está na base da pirâmide... alguns estão no meio -o Brasil é claramente um desses. Mas o Brasil é um país grande. Tamanho importa. Você tem certas vantagens por ser grande; não só vantagens internas, mas externas. Você tem mais poder, mais influência. Você ganha algumas migalhas como resultado.

Folha - Mas serão sempre apenas migalhas?
Wallerstein -
Bem, eu suponho que, se o sistema capitalista fosse existir por mais 150 anos -o que eu não acho que vá acontecer-, talvez o Brasil se tornasse um grande centro, se a Europa ruísse, ou algo do gênero, o que não é totalmente impossível, já que nós temos rotações no sistema. Mas não acho que isso vá acontecer, porque eu não creio que o sistema vá durar até lá.

Folha - Então, o que pode ser feito em um país como o Brasil?
Wallerstein -
Há 50 anos, você pensava que podia se desenvolver, então adotava políticas liberais ou políticas socialistas, não importa. Todos achavam que esse era o caminho para a salvação. Todos tentaram. Não funcionou muito. Pessoas diziam que o caminho para a salvação era juntar-se à economia global, mas essa só é a salvação para um pequeno número, não para as massas.
Entretanto as massas têm sorte, porque em 1999 há mais possibilidades do que havia em 1945, precisamente porque o sistema está entrando em colapso. Portanto nós teremos a oportunidade de construir uma nova alternativa -e a questão é se ela será melhor ou pior que a atual. Nós podemos construir uma alternativa melhor. Esse é um desafio para as pessoas no Brasil e para as pessoas nos Estados Unidos. É um desafio para todos: construir uma nova estrutura -essa é a principal questão política.

Folha - Um país periférico, como o Brasil, pode ter poder suficiente para influir na construção dessa nova alternativa?
Wallerstein -
Acho que os brasileiros têm tanto poder para afetar onde nós vamos estar daqui a 25 ou 50 anos quanto as pessoas dos Estados Unidos. Elas podem até mais, porque o que segura as pessoas nos Estados Unidos e na Europa Ocidental é um senso de privilégio presente e um medo de perdê-lo e, portanto, elas tomam decisões insensatas a longo prazo. Como a maioria das pessoas no Brasil não têm esse medo de perder uma posição privilegiada, elas podem tomar decisões mais acertadas. Eu nunca defendi a supremacia do Primeiro ou do Terceiro Mundo. Acho que nós todos estamos juntos nessa.

Folha - Presumindo-se que o sistema capitalista não desapareça nos próximos 100 anos, aí então haveria a possibilidade de mudança significativa?
Wallerstein -
Quer dizer, se eu estiver completamente errado, outras coisas podem acontecer? (risos). Sim, podem. Eu não posso especular. Faço a melhor análise que posso e, assim como outros analistas, posso não estar certo.

Folha - Uma de suas razões para acreditar na falência do capitalismo é a crença de que o mundo piorou, não só em termos relativos, mas absolutos, desde o início do que o sr. chama de capitalismo histórico. O sr. poderia explicar como consegue medir essa falência?
Wallerstein -
É muito difícil de medir. Você tem de medir em termos de quantidade real de comida para comer, de espaço para usar, de recursos naturais para aproveitar e até longevidade. Eu não estou completamente convencido de que a longevidade aumentou. Claro que sim, estatisticamente, mas muito desse aumento tem a ver com a sobrevivência infantil, entre as idades de 0 a 1 ano e de 0 a 5 anos. Não estou muito convencido de que as pessoas que atingem os 5 anos vivem mais do que elas viviam antigamente. E, você sabe, as pessoas têm televisão agora, o que elas não tinham cem anos atrás, mas possuíam outras formas de divertimento. As pessoas vivem em uma favela urbana e antes elas moravam em uma cabana agrícola -qual é melhor? Nós temos um trabalho difícil de medir qualidade de vida. As pessoas morriam por razões diferentes; se essas são melhores ou piores do que as razões (ou doenças) pelas quais se morre agora, eu não sei.
Digamos que sou uma voz dissidente sobre a obviedade das melhorias do capitalismo. Não há dúvidas de que, para pessoas da classe média alta, suas vidas são melhores do que as das pessoas de mesmo nível comparadas a cem anos atrás. E, normalmente, nós estamos olhando para nós mesmos quando fazemos esse tipo de afirmação de que o capitalismo melhorou a qualidade de vida. Mas, se você olhar para as pessoas das classes mais baixas, a coisa não é tão óbvia.

Folha - O sr. mencionou Fernando Henrique Cardoso. O que pensa de seu governo? Suas ações no poder tem surpreendido o sr., que o conheceu na condição de intelectual?
Wallerstein -
Ele tomou a decisão política de mover para o centro, que pensa ser a melhor para a situação brasileira. Até agora tem recebido apoio popular.

Folha - Que caiu muito depois da desvalorização do Real.
Wallerstein -
Bom, isso sobe e desce. Deixe eu dizer isso: FHC é um homem muito esperto, e as decisões que ele tomou são decisões pensadas, refletidas, e são as decisões que ele acha as mais acertadas. Talvez não sejam as decisões que eu tomaria.

Folha - O sr. poderia colocar o trabalho intelectual dele em perspectiva?
Wallerstein -
Como sociólogo, ele é uma figura importante, foi um dos primeiros "dependentistas"; seus escritos foram bastante influentes. Ele então se moveu de uma posição dependentista clássica para o que ele chamou de desenvolvimento dependente. Os dependentistas diziam que desenvolvimento nacional é impossível, e Cardoso mudou sua postura para dizer que o desenvolvimento era possível, caso houvesse um Estado forte.
Essa posição o levou de uma posição de dependentista para uma variável da teoria da modernização. Essa foi a mudança intelectual que ele fez, e dela resultaram as óbvias mudanças políticas que também fez. Mas como intelectual tem sido influente; é certamente um dos mais importantes sociólogos do pós-guerra.

Folha - Então sua política não o surpreende, pois o sr. a vê como congruente com sua mudança intelectual?
Wallerstein -
Deixe eu colocar da seguinte forma: sua política atual está muito longe de sua posição intelectual dos anos 50, mas eu não estou muito certo de que elas sejam muito diferentes de sua postura do começo dos anos 70. Ele mudou, em resultado da reavaliação que fez a respeito do que acontecia no mundo. Então, a sua política de hoje me parece consistente com a sua postura intelectual desde, pelo menos, o início dos anos 70.

Folha - Que tipo de cenário teríamos, no mundo, depois do colapso do capitalismo ?
Wallerstein -
É muito arriscado fazer projeções para o cenário futuro, de como o mundo será em 2050, ou por aí. De modo geral, podemos distinguir entre duas formas genéricas. Uma é a forma relativamente democrática e igualitária, e a outra é uma forma hierárquica, desigual. Cada uma pode tomar múltiplos formatos.
Nos últimos 10 mil anos, com algumas exceções, nós temos tido um sistema hierárquico, com vários formatos diferentes. Pode ser que inventem mais um, novo. Ou pode ser que voltemos a usar um antigo: um sistema neofeudal, ou neofascista, ou neo-imperalista.
Nós nunca tivemos um sistema relativamente igualitário. Pode ser que, quando tínhamos unidades sociais pequenas, há 10 mil anos, elas tenham sido relativamente igualitárias. Nós não sabemos, na verdade. Mas o que funcionou para 200 pessoas pode não funcionar para 6 bilhões.
Como um sistema relativamente igualitário iria realmente funcionar, que tipos de instituições nós teríamos que desenvolver para resolver os problemas atuais? Eu não sei ao certo. Eu acho que teria que ser relativamente descentralizado e não poderia ser orientado para o lucro.
Nós temos alguns tipos de instituições, nos últimos 200 anos, que podemos tentar copiar: se você pensa como uma universidade, ou um hospital funciona. Internamente, elas são semi-autoritárias, mas permitem grande autonomia para seus profissionais. Seu objetivo não é lucrar. A razão pela qual as pessoas trabalham duro nessas instituições não é o dinheiro, mas outras razões: prestígio, pressão social etc. Pode-se tentar estender esse princípio para todos os tipos de atividade produtiva. Eu estou tentando pensar na usina de aço que não visasse lucrar...

Folha - Como ela funcionaria?
Wallerstein -
Aí você tem a questão de hierarquia interna. Você tem tido muita pressão, nos últimos cem anos, por democratização interna. Estamos chegando lá, devagarinho. Como é que elas iriam funcionar? Não sei. Teríamos que ir descobrindo pelo caminho. Por isso é que eu não sou um utopista. Acredito em tentativa e erro. Mas rejeito a idéia de que é impossível termos um sistema relativamente não-hierárquico, relativamente democrático, relativamente igualitário -acho que poderia funcionar, e em grande escala. Nesse sentido eu sou otimista: acredito na maleabilidade da natureza humana; na capacidade de construir novas estruturas que realmente funcionem.

Folha - Quais são as suas razões para ser otimista em relação ao futuro?
Wallerstein -
É um otimismo irracional.


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