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POLÍTICA
A ruína do capitalismo
Para o sociólogo americano
Immanuel Wallerstein, a
humanidade atravessará 50
anos de convulsões sociais
com a agonia do sistema
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GUSTAVO IOSCHPE
Colunista da Folha
Nas paredes do diminuto escritório em Paris, pôsteres amarelecidos de cidades italianas e anúncios de palestras, uma estante
com livros, um rack com fitas cassete de música clássica. Uma mesa para o computador e outra para a montanha de papéis. No centro da anarquia, o protagonista:
Immanuel Wallerstein, um dos
mais importantes intelectuais vivos e um dos principais sociólogos em atividade.
Próximo aos 70 anos, o sociólogo americano é o autor da monumental trilogia "The Modern
World-System", três catataus que
descrevem o mundo capitalista
do século 16 até o 19.
Sua análise de "sistemas-mundo" é uma tentativa de ver o sistema capitalista como um todo, entendendo que não se trata de uma
colcha de retalhos de Estados nacionais autônomos, mas de um
sistema unificado e altamente hierarquizado, que surgiu muito antes de fábricas e navios a vapor.
É de Wallerstein a famosa separação do mundo entre os países
de centro e de periferia e a constatação de que estes sofriam com os
termos desiguais de comércio
praticados por aqueles. Suas
idéias vêm ajudando a derrubar
alguns dos axiomas pelos quais
(sobre)vivemos: a crença na utilidade do Estado-nação como ferramenta de melhoria de posição
na escala das coisas; a idéia, emprestada do neoclassicismo econômico e da teoria da modernização, de que todos os países devem
convergir, em algum momento,
no paraíso da fartura e da opulência; e a certeza de que o sistema
capitalista, apesar de não ter tudo
resolvido, pelo menos trouxe ganhos em qualidade de vida para a
humanidade, desde que foi implantado há 500 anos.
Wallerstein questiona e redireciona tudo: a validade da ciência,
a crença no progresso, a malignidade das elites nacionais, a esperança dos terceiro-mundistas pela
ascensão dentro do sistema e o futuro do mundo como o conhecemos. No fim, o discreto cidadão
na sala pequena de um prédio velho de uma rua de Paris acaba
desmontando as próprias idéias e
avisa: o capitalismo não dura
mais que 50 anos; até lá vamos ter
um período de muita incerteza,
desordem e, principalmente, mudança, como ele diz na entrevista
a seguir.
Folha - Muitos países têm entrado voluntariamente em acordos de livre comércio no chamado mundo "globalizado" com
potências que recentemente os
exploravam, acreditando na
doutrina de vantagem comparativa. O sr. vê essa adesão como o "beijo da morte" para os
países periféricos?
Immanuel Wallerstein - Em
primeiro lugar, eu acho que o termo "globalização" é em grande
parte um slogan e uma mistificação, não uma realidade nova. Estamos falando é da liberdade de
movimento dos fatores de produção versus protecionismo. Isso
tem sido uma questão por 500
anos. Países foram para um lado e
para outro na questão, porque há
vantagens em ambos, para todos.
No momento, os EUA têm liderado um grande esforço para derrubar barreiras, especialmente de
fluxos de capital. Os fluxos financeiros sempre foram os mais controlados de todos. Os EUA tiveram um certo nível de sucesso nos
últimos dez anos, conseguindo
com que países fizessem coisas
para as quais eles ainda não estavam preparados.
Por um lado, essa iniciativa começou com muito êxito. Quando
você proclama que não há alternativas ao modelo neoliberal, o
que está querendo dizer é que não
deveria haver outras alternativas,
mas, obviamente, elas existem.
Houve uma forte reação. Não só
uma reação de vários países, que
disseram: "Isso não funciona para
nós, vamos sair perdendo", mas
também dos EUA e da Europa
Ocidental, de pessoas como Jeffrey Sachs e Kissinger; pessoas
que você não poderia nunca chamar de esquerdistas. E o argumento deles é muito sensato, ao
dizerem que as pessoas que têm se
esforçado para conseguir esse livre fluxo não pensaram nas consequências de uma política como
essa. As consequências são muito
severas: colapsos de liderança, seguidos de revoluções etc. O que
eles estão dizendo é que você deve
fazer isso de uma maneira mais
social.
Então a combinação da discussão, simbolicamente, do FMI-Banco Mundial e a crescente resistência de alguns países definitivamente diminuíram o grau de
abertura. Mas isso não é nada de
novo, acelera e regride o tempo
todo, e certamente o livre comércio não é uma panacéia. Quer dizer, a idéia de que você deve competir não tem nada de novo -o
que é o capitalismo senão a teoria
de que você tem de ser competitivo no mercado mundial?
Folha - O sr. não acha que a
adesão formal a tratados de livre comércio é algo novo e prejudicial?
Wallerstein - Certamente não é
novo. Certamente algo que não é
bom "per se": é bom para alguns e
ruim para outros. E certamente
não é inevitável ou irrevogável.
Quer dizer, eu não acho que daqui
a dez ou 15 anos haverá mais abertura do que há agora, talvez até
haja consideravelmente menos.
À medida que os EUA constroem uma zona na América Latina, quais seriam os excluídos? Os
europeus, os japoneses... Mas eles
terão as suas próprias zonas. Nós
podemos, daqui a dez ou 15 anos,
ter um mundo formalmente dividido em três zonas, dentro das
quais haverá livre comércio, mas
não entre elas. Nós já estamos
vendo coisas assim na Europa
Ocidental, que são apenas um sinal de conflitos mais fundamentais ainda por vir.
Folha - O livre comércio -ou a
globalização, como é chamado- vem sendo defendido por
membros da chamada Terceira
Via, pessoas de perfil social-democrata, como Blair, Clinton...
Wallerstein - ... E Fernando
Henrique Cardoso.
Folha - Isso significa que a Terceira Via seria apenas um disfarce, um rótulo?
Wallerstein - Não. Olha, os social-democratas vêm, cada vez
mais, migrando para o centro,
por cem anos. Essas pessoas querem capturar a posição liberal.
Em parte, é uma tentativa de conseguir mais votos. Eles acham que
vão consegui-los no centro, sem
perder votos na esquerda, se eles
se proclamarem social-democratas. Mas eu não acho que essa seja
a receita para o sucesso. Não acho
que nisso haja algo de novo: trata-se da clássica posição centrista, liberal, que vem enfraquecendo
nos últimos 30 anos, e eles estão
tentando restaurá-la. Falta saber
quanto sucesso terão.
Uma coisa que se pode dizer sobre a Terceira Via é que ela funciona. Se você é Clinton, ela funciona contra um Partido Republicano de extrema-direita. E, se você é Blair, ela funciona contra um
Partido Conservador de extrema-direita. Mas, se os republicanos
voltarem para sua posição de
"moderados" e os conservadores
voltarem para sua posição tradicional, por que os eleitores votariam na versão falsa, quando eles
podem votar na versão verdadeira? Isso é tudo que tem de ser feito
para a Terceira Via ser derrotada.
Então, eu não a vejo como o caminho do futuro. Acho que ela já alcançou seu cume e agora está começando a retroceder.
Que Fernando Henrique Cardoso tenha aderido a isso diz mais
sobre as suas tentativas de se posicionar internacionalmente do
que sobre a política interna brasileira. Não creio que isso importe
muito em termos de política interna brasileira. Eu não imagino
que as pessoas saibam o que isso
significa.
Folha - O sr. defende, na contracorrente das idéias dominantes, que, com o fim da Guerra
Fria, o que realmente teria sido
derrotado foi o liberalismo.
Wallerstein - Se você quer começar com as minhas heresias,
iniciemos com o que eu entendo
por liberalismo. O liberalismo é,
como quase todos os termos políticos importantes, um termo confuso e que confunde, e as pessoas
o usam de várias maneiras diferentes. Há liberalismo político,
econômico, liberalismo cultural
-e esses termos não são a mesma coisa. As pessoas podem ser
um sem ser o outro. Então, por
que usamos o mesmo termo?
Os liberais têm sido pró e contra
o liberalismo político, pró e contra o liberalismo econômico e pró
e contra o liberalismo cultural, se
você olhar para a verdadeira história do movimento. Então, é óbvio que nenhuma dessas é a questão-chave. O liberalismo tem sido,
desde o início, a doutrina dos centristas do mundo.
Folha - Entre os conservadores
e os movimentos anti-sistêmicos?
Wallerstein - Exato. Tem sido a
força dominante. Dizem: "Sim, o
comércio é inevitável, o progresso
está chegando e é uma coisa boa,
mas ele tem de ser administrado e
controlado por experts, e o que a
gente tem para oferecer é reforma
administrada". O liberalismo
quer começar uma doutrina
orientada pelo Estado (e a idéia de
que o liberalismo é contra o Estado é uma loucura absoluta) sobre
como controlar rebeliões em
massa, por meio de concessões.
Se você pensar no liberalismo
como a doutrina reformista que
faz concessões para aplacar o descontentamento popular, mas sem
entregar o jogo e mantendo o sistema, aí pode ver o seu sucesso
histórico e os problemas que ele
enfrenta hoje.
Parte do argumento é que os liberais conseguiram cooptar a
oposição: por um lado, os conservadores, que eram contra qualquer tipo de mudança, e, por outro, os radicais, que queriam mudanças amplas e rápidas. E assim
criou o que eu chamo de avatares
do liberalismo, que podem discutir se querem reformas mais rápidas ou mais lentas, mas que, basicamente, aceitam as premissas do
liberalismo. Isso controlou a situação política.
O último avatar do liberalismo
foi o leninismo, que disse às massas: "Confie em nós, pois, quando
chegarmos ao poder, faremos todas as reformas e, se as reformas
não chegarem rápido o suficiente,
é porque estamos sendo atacados,
mas esperem e nós chegaremos,
logo, na sociedade perfeita".
O meu argumento é que isso foi
o que manteve o sistema nos últimos 30, 50 anos e, quando isso
caiu, quando os movimentos anti-sistêmicos -na forma de movimentos de liberação nacional,
comunistas ou até social-democratas- perderam o apoio popular, porque eles não conseguiram
mudar o mundo, isso provocou a
queda do comunismo. Provocou
também a queda da principal ferramenta de controle que as forças
dominantes tinham sobre as massas, que, então, ficaram desiludidas.
Elas não têm mais a crença de
que alguma magia ou feitiço vá
acontecer e se tornam, por um lado, contra o Estado e, por outro
lado, muito amedrontadas
-porque o Estado está entrando
em colapso a sua volta, e há crimes- e então elas se voltam ao
que eu chamo de "grupismo", que
é a criação de grupos que vão prover segurança contra o perigo.
Folha - Será que o sr. poderia
delinear, de forma resumida,
suas razões para achar que o capitalismo está agonizando?
Wallerstein - Eu venho argumentando que o capitalismo está
acabando por causa dos limites
impostos à acumulação de capital, de um lado, e do colapso da
sua sustentação política, de outro.
A sustentação política do capitalismo tem sido o liberalismo
que tem especialmente por meio
de seu avatar reprimido revoltas
populares. Basicamente, em uma
palavra, a sustentação política
mais importante é a legitimação
do Estado. E a legitimação do Estado passa pela promessa dos movimentos anti-sistêmicos de que o
Estado seria uma ferramenta boa
para transformar o mundo. Eu
acho que isso acabou.
Então nós vamos às bases econômicas do sistema, e o sistema
existe para a acumulação incessante de capital. O que eu venho
argumentando é que isso está
sendo prejudicado por três razões: um, o nível mundial de salários vem subindo e deve continuar crescendo por causa da
"desruralização" do mundo; dois,
o preço da matéria-prima vem subindo por causa do fim da possibilidade de externalização barata
dos custos, essa é a crise ecológica;
e três, o preço da arrecadação de
impostos vem subindo mundialmente -a porcentagem de dinheiro recolhido que é destinada
ao Estado, por aquilo que eu chamo de democratização do mundo, à medida que a população
pressiona o Estado para que este
lhe propicie saúde, educação e
renda perpétua.
Então há três fatores, em escala
mundial, que vem encolhendo as
margens de lucro -e vão continuar a fazê-lo cada vez mais. Por
um lado, do ponto de vista dos capitalistas, vale cada vez menos fazer parte do sistema e, por outro
lado, é cada vez mais difícil de
manter legitimidade política.
Folha - Nos próximos 50 anos,
o sr. prevê uma série de convulsões sociais...
Wallerstein - À medida que o
sistema entra em colapso, a ordem social também rui, nacional
e internacionalmente. Eu prevejo
uma série de guerras sangrentas e
inconcludentes, mas também tumultos sociais internos. E, particularmente, eu quero enfatizar
que esses tumultos -normalmente associados a países de Terceiro Mundo, da periferia- agora vão acontecer no Norte. Especialmente nos Estados Unidos,
mas também na Europa Ocidental, Japão etc. Será um mundo desagradável para se viver; intelectualmente estimulante, politicamente muito interessante e pessoalmente muito difícil.
Folha - Que tipo de conflitos o
sr. vê entre o Norte e o Sul?
Wallerstein - Eu vejo o conflito
adotando o que eu chamo da forma Khomeini -uma dissensão
radical de valores, a negação de se
jogar pelas regras-; a forma Saddam Hussein -que é totalmente
diferente, é calculadamente geopolítica: "Vamos aumentar nossos arsenais e desafiar o mundo".
E a terceira forma, que eu chamo
de "balseiros" -o caminho individual. Já que nós temos um mundo polarizado social e demograficamente, nós teremos, inevitavelmente, grandes fluxos migratórios, que você não consegue segurar. Você pode diminui-los, mas
não pode pará-los.
Folha - Migração do sul para o
norte?
Wallerstein - É, do sul para o
norte. Esses fluxos criarão o tumulto social interno nos países do
norte. A demografia vai mudar,
de forma dramática. E não só porque as pessoas irão do Brasil ou da
Venezuela para os EUA: haverá
uma cascata de fluxos, que irá
mais rápido do que jamais ocorreu, e nós teremos um efeito político mais radical, por causa de sua
velocidade e de seu tamanho.
"A política atual de FHC
está muito longe de sua
posição intelectual dos anos
50, mas não estou muito
certo de que seja diferente
de sua postura nos anos 70"
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Folha - O sr. disse uma vez que
é impossível para a América Latina desenvolver-se sozinha.
Wallerstein - Não era sobre a
América Latina. A ideologia liberal é a de que todos os países estão
em estradas paralelas, indo para a
frente. É a teoria da modernização... Então todos podem desenvolver-se, só é preciso que se aja
da maneira correta. Então, nós
podemos dizer: "Bolívia, você está
numa situação péssima hoje, mas,
se você fizer tudo direitinho, daqui a 30 ou 50 anos, você estará, se
não como os EUA, pelo menos
como o Canadá". Agora, dentro
da estrutura do mundo capitalista, isso é "nonsense". O sistema
requer polarização e, aliás, floresce nela. É uma questão de um sistema que é hierárquico. Um Estado em particular pode melhorar
sua situação, mas, no geral, isso
significa que alguém tem de piorar, porque a natureza hierárquica do sistema tem sido persistente
desde o começo. E, como todos os
dados mostram, nós estamos
mais polarizados do que nunca,
em 1999. A diferença entre os que
estão no topo e os que estão embaixo é a maior que já houve. E isso nunca será solucionado dentro
do sistema, senão você não poderia acumular capital.
Então, se você se refere a desenvolvimento nacional, é uma ilusão. Não são os Estados que se desenvolvem, mas o sistema. E o sistema como um todo está em crise.
Mas a ilusão desenvolvimentista
tem muita força, porque, se você
vive em um Estado que não anda
tão bem, parece uma idéia maravilhosa que o seu Estado deva fazer algo. E, para as pessoas que estão no topo, nesses países, é uma
boa forma de conseguir poder político, para apresentar essa ilusão
desenvolvimentista. Mas isso não
aconteceu e não vai acontecer.
A maioria dos Estados latino-americanos está na base da pirâmide... alguns estão no meio -o
Brasil é claramente um desses.
Mas o Brasil é um país grande. Tamanho importa. Você tem certas
vantagens por ser grande; não só
vantagens internas, mas externas.
Você tem mais poder, mais influência. Você ganha algumas migalhas como resultado.
Folha - Mas serão sempre apenas migalhas?
Wallerstein - Bem, eu suponho
que, se o sistema capitalista fosse
existir por mais 150 anos -o que
eu não acho que vá acontecer-,
talvez o Brasil se tornasse um
grande centro, se a Europa ruísse,
ou algo do gênero, o que não é totalmente impossível, já que nós
temos rotações no sistema. Mas
não acho que isso vá acontecer,
porque eu não creio que o sistema
vá durar até lá.
Folha - Então, o que pode ser
feito em um país como o Brasil?
Wallerstein - Há 50 anos, você
pensava que podia se desenvolver, então adotava políticas liberais ou políticas socialistas, não
importa. Todos achavam que esse
era o caminho para a salvação.
Todos tentaram. Não funcionou
muito. Pessoas diziam que o caminho para a salvação era juntar-se à economia global, mas essa só
é a salvação para um pequeno número, não para as massas.
Entretanto as massas têm sorte,
porque em 1999 há mais possibilidades do que havia em 1945, precisamente porque o sistema está
entrando em colapso. Portanto
nós teremos a oportunidade de
construir uma nova alternativa
-e a questão é se ela será melhor
ou pior que a atual. Nós podemos
construir uma alternativa melhor.
Esse é um desafio para as pessoas
no Brasil e para as pessoas nos Estados Unidos. É um desafio para
todos: construir uma nova estrutura -essa é a principal questão
política.
Folha - Um país periférico, como o Brasil, pode ter poder suficiente para influir na construção
dessa nova alternativa?
Wallerstein - Acho que os brasileiros têm tanto poder para afetar
onde nós vamos estar daqui a 25
ou 50 anos quanto as pessoas dos
Estados Unidos. Elas podem até
mais, porque o que segura as pessoas nos Estados Unidos e na Europa Ocidental é um senso de privilégio presente e um medo de
perdê-lo e, portanto, elas tomam
decisões insensatas a longo prazo.
Como a maioria das pessoas no
Brasil não têm esse medo de perder uma posição privilegiada, elas
podem tomar decisões mais acertadas. Eu nunca defendi a supremacia do Primeiro ou do Terceiro
Mundo. Acho que nós todos estamos juntos nessa.
Folha - Presumindo-se que o
sistema capitalista não desapareça nos próximos 100 anos, aí
então haveria a possibilidade
de mudança significativa?
Wallerstein - Quer dizer, se eu
estiver completamente errado,
outras coisas podem acontecer?
(risos). Sim, podem. Eu não posso
especular. Faço a melhor análise
que posso e, assim como outros
analistas, posso não estar certo.
Folha - Uma de suas razões para acreditar na falência do capitalismo é a crença de que o
mundo piorou, não só em termos relativos, mas absolutos,
desde o início do que o sr. chama de capitalismo histórico. O
sr. poderia explicar como consegue medir essa falência?
Wallerstein - É muito difícil de
medir. Você tem de medir em termos de quantidade real de comida para comer, de espaço para
usar, de recursos naturais para
aproveitar e até longevidade. Eu
não estou completamente convencido de que a longevidade aumentou. Claro que sim, estatisticamente, mas muito desse aumento tem a ver com a sobrevivência infantil, entre as idades de
0 a 1 ano e de 0 a 5 anos. Não estou
muito convencido de que as pessoas que atingem os 5 anos vivem
mais do que elas viviam antigamente. E, você sabe, as pessoas
têm televisão agora, o que elas
não tinham cem anos atrás, mas
possuíam outras formas de divertimento. As pessoas vivem em
uma favela urbana e antes elas
moravam em uma cabana agrícola -qual é melhor? Nós temos
um trabalho difícil de medir qualidade de vida. As pessoas morriam por razões diferentes; se essas são melhores ou piores do que
as razões (ou doenças) pelas quais
se morre agora, eu não sei.
Digamos que sou uma voz dissidente sobre a obviedade das melhorias do capitalismo. Não há
dúvidas de que, para pessoas da
classe média alta, suas vidas são
melhores do que as das pessoas de
mesmo nível comparadas a cem
anos atrás. E, normalmente, nós
estamos olhando para nós mesmos quando fazemos esse tipo de
afirmação de que o capitalismo
melhorou a qualidade de vida.
Mas, se você olhar para as pessoas
das classes mais baixas, a coisa
não é tão óbvia.
Folha - O sr. mencionou Fernando Henrique Cardoso. O que
pensa de seu governo? Suas
ações no poder tem surpreendido o sr., que o conheceu na condição de intelectual?
Wallerstein - Ele tomou a decisão política de mover para o centro, que pensa ser a melhor para a
situação brasileira. Até agora tem
recebido apoio popular.
Folha - Que caiu muito depois
da desvalorização do Real.
Wallerstein - Bom, isso sobe e
desce. Deixe eu dizer isso: FHC é
um homem muito esperto, e as
decisões que ele tomou são decisões pensadas, refletidas, e são as
decisões que ele acha as mais
acertadas. Talvez não sejam as decisões que eu tomaria.
Folha - O sr. poderia colocar o
trabalho intelectual dele em
perspectiva?
Wallerstein - Como sociólogo,
ele é uma figura importante, foi
um dos primeiros "dependentistas"; seus escritos foram bastante
influentes. Ele então se moveu de
uma posição dependentista clássica para o que ele chamou de desenvolvimento dependente. Os
dependentistas diziam que desenvolvimento nacional é impossível, e Cardoso mudou sua postura para dizer que o desenvolvimento era possível, caso houvesse
um Estado forte.
Essa posição o levou de uma posição de dependentista para uma
variável da teoria da modernização. Essa foi a mudança intelectual que ele fez, e dela resultaram
as óbvias mudanças políticas que
também fez. Mas como intelectual tem sido influente; é certamente um dos mais importantes
sociólogos do pós-guerra.
Folha - Então sua política não
o surpreende, pois o sr. a vê como congruente com sua mudança intelectual?
Wallerstein - Deixe eu colocar
da seguinte forma: sua política
atual está muito longe de sua posição intelectual dos anos 50, mas
eu não estou muito certo de que
elas sejam muito diferentes de sua
postura do começo dos anos 70.
Ele mudou, em resultado da reavaliação que fez a respeito do que
acontecia no mundo. Então, a sua
política de hoje me parece consistente com a sua postura intelectual desde, pelo menos, o início
dos anos 70.
Folha - Que tipo de cenário teríamos, no mundo, depois do
colapso do capitalismo ?
Wallerstein - É muito arriscado
fazer projeções para o cenário futuro, de como o mundo será em
2050, ou por aí. De modo geral,
podemos distinguir entre duas
formas genéricas. Uma é a forma
relativamente democrática e
igualitária, e a outra é uma forma
hierárquica, desigual. Cada uma
pode tomar múltiplos formatos.
Nos últimos 10 mil anos, com algumas exceções, nós temos tido
um sistema hierárquico, com vários formatos diferentes. Pode ser
que inventem mais um, novo. Ou
pode ser que voltemos a usar um
antigo: um sistema neofeudal, ou
neofascista, ou neo-imperalista.
Nós nunca tivemos um sistema
relativamente igualitário. Pode
ser que, quando tínhamos unidades sociais pequenas, há 10 mil
anos, elas tenham sido relativamente igualitárias. Nós não sabemos, na verdade. Mas o que funcionou para 200 pessoas pode não
funcionar para 6 bilhões.
Como um sistema relativamente igualitário iria realmente funcionar, que tipos de instituições
nós teríamos que desenvolver para resolver os problemas atuais?
Eu não sei ao certo. Eu acho que
teria que ser relativamente descentralizado e não poderia ser
orientado para o lucro.
Nós temos alguns tipos de instituições, nos últimos 200 anos, que
podemos tentar copiar: se você
pensa como uma universidade,
ou um hospital funciona. Internamente, elas são semi-autoritárias,
mas permitem grande autonomia
para seus profissionais. Seu objetivo não é lucrar. A razão pela
qual as pessoas trabalham duro
nessas instituições não é o dinheiro, mas outras razões: prestígio,
pressão social etc. Pode-se tentar
estender esse princípio para todos
os tipos de atividade produtiva.
Eu estou tentando pensar na usina de aço que não visasse lucrar...
Folha - Como ela funcionaria?
Wallerstein - Aí você tem a
questão de hierarquia interna.
Você tem tido muita pressão, nos
últimos cem anos, por democratização interna. Estamos chegando
lá, devagarinho. Como é que elas
iriam funcionar? Não sei. Teríamos que ir descobrindo pelo caminho. Por isso é que eu não sou
um utopista. Acredito em tentativa e erro. Mas rejeito a idéia de
que é impossível termos um sistema relativamente não-hierárquico, relativamente democrático,
relativamente igualitário -acho
que poderia funcionar, e em grande escala. Nesse sentido eu sou
otimista: acredito na maleabilidade da natureza humana; na capacidade de construir novas estruturas que realmente funcionem.
Folha - Quais são as suas razões para ser otimista em relação ao futuro?
Wallerstein - É um otimismo irracional.
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