São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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+ memória

O PENSADOR ALEMÃO FALA DE SUA RELAÇÃO COM O FILÓSOFO FRANCÊS, MORTO NO ÚLTIMO DIA 9, E APONTA AS AFINIDADES ENTRE SEU PENSAMENTO E O DE ADORNO

PRESENÇA DE DERRIDA

por Jürgen Habermas

Derrida praticamente não teve equivalente, além de Foucault, para forjar o espírito de toda uma geração, e essa geração ele manteve em suspenso até hoje. Mas, à diferença de Foucault e apesar de ter sido igualmente um pensador político, a contribuição de Derrida aos que o seguiram terá sido ajudá-los a canalizar seus impulsos nos trilhos de um exercício que não implica, de início, um conteúdo doutrinário, nem mesmo a criação de um vocabulário produtor de um novo olhar sobre o mundo. É verdade, também há tudo isso, mas o exercício proposto por Derrida é principalmente um fim em si: mergulhar na leitura micrológica dos textos e revelar os vestígios que resistiram ao tempo. Como a dialética negativa de Adorno, a desconstrução de Derrida também é antes de tudo uma prática. Muitos conheceram essa doença [câncer no pâncreas] contra a qual Jacques Derrida travou um combate soberano. A morte, portanto, não veio totalmente de surpresa. Mas ela nos toca como um acontecimento súbito, precipitado, que nos arranca brutalmente daquilo que a banalidade habitual do cotidiano tem de tranqüilizador. É claro que o pensador sobreviverá em seus textos, ele, que despendeu toda a sua energia intelectual na leitura incessante dos grandes textos e que celebrou o primado do escrito transmissível sobre a presença da palavra. Mas sabemos agora o que nos faltará: é a voz de Derrida, a presença de Derrida. O leitor de Jacques Derrida encontra um autor que lê os textos contra o veio, até que eles produzam um sentido subversivo. Sob seu olhar inflexível, todo contexto se desfaz em fragmentos; o solo que acreditávamos estável se torna movediço, o que supúnhamos completo revela seu fundo duplo. As hierarquias, os agenciamentos e as oposições habituais nos oferecem um sentido inverso ao que nos é familiar. O mundo em que acreditávamos estar em casa se torna inabitável. Não somos desse mundo: nele somos estrangeiros entre estrangeiros. E, finalmente, uma mensagem religiosa que quase não é mais cifrada.

Vulnerabilidade
São raros os textos que parecem desvelar tão nitidamente aos leitores anônimos o rosto de seus autores. No entanto Derrida pertence na realidade aos autores que pegam seus leitores desprevenidos quando os encontram pessoalmente. Ele não era o que esperávamos. Era uma pessoa de uma amabilidade incomum, elegante, certamente vulnerável e sensível, mas sabendo ficar à vontade e que, quando dava sua confiança, abria-se com simpatia; era uma pessoa amigável, disposta à amizade. Eu tive exatamente essa felicidade, a de ele me dar sua confiança, quando nos reencontramos há seis anos aqui em Evanston, perto de Chicago, de onde lhe envio esta última homenagem.
Derrida nunca encontrou Adorno. Mas, quando recebeu o Prêmio Adorno na cidade de Frankfurt, ele pronunciou na Paulskirche um discurso de aceitação que, do gesto do pensamento até as voltas secretas dos temas oníricos próprios do romantismo, não poderia ter mais afinidades com o espírito de Adorno.
As raízes judias são sem dúvida o elemento por meio do qual seus pensamentos se assemelham. Scholem continuou sendo um desafio para Adorno, Lévinas tornou-se um mestre para Derrida. Nesse sentido, a obra de Derrida pode ter também na Alemanha uma virtude esclarecedora; se de fato ele se apropriou dos últimos temas de Heidegger, pelo menos o fez sem naufragar no neopaganismo e sem trair as fontes mosaicas.


Jürgen Habermas é pensador alemão e um dos principais filósofos vivos. É autor de "O Futuro da Natureza Humana" (ed. Martins Fontes), entre outros livros.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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