|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ memória
O PENSADOR ALEMÃO
FALA DE SUA RELAÇÃO COM
O FILÓSOFO FRANCÊS,
MORTO NO ÚLTIMO DIA 9,
E APONTA AS AFINIDADES
ENTRE SEU PENSAMENTO
E O DE ADORNO
PRESENÇA DE DERRIDA
por Jürgen Habermas
Derrida praticamente não teve equivalente, além
de Foucault, para forjar o espírito de toda uma
geração, e essa geração ele manteve em suspenso
até hoje. Mas, à diferença de Foucault e apesar de
ter sido igualmente um pensador político, a contribuição
de Derrida aos que o seguiram terá sido ajudá-los a canalizar seus impulsos nos trilhos de um exercício que não implica, de início, um conteúdo doutrinário, nem mesmo a
criação de um vocabulário produtor de um novo olhar sobre o mundo. É verdade, também há tudo isso, mas o
exercício proposto por Derrida é principalmente um fim
em si: mergulhar na leitura micrológica dos textos e revelar os vestígios que resistiram ao tempo. Como a dialética
negativa de Adorno, a desconstrução de Derrida também
é antes de tudo uma prática.
Muitos conheceram essa doença [câncer no pâncreas]
contra a qual Jacques Derrida travou um combate soberano. A morte, portanto, não veio totalmente de surpresa.
Mas ela nos toca como um acontecimento súbito, precipitado, que nos arranca brutalmente daquilo que a banalidade habitual do cotidiano tem de tranqüilizador. É claro
que o pensador sobreviverá em seus textos, ele, que despendeu toda a sua energia intelectual na leitura incessante
dos grandes textos e que celebrou o primado do escrito
transmissível sobre a presença da palavra. Mas sabemos
agora o que nos faltará: é a voz de Derrida, a presença de
Derrida.
O leitor de Jacques Derrida encontra um autor que lê os
textos contra o veio, até que eles produzam um sentido
subversivo. Sob seu olhar inflexível, todo contexto se desfaz em fragmentos; o solo que acreditávamos estável se
torna movediço, o que supúnhamos completo revela seu
fundo duplo. As hierarquias, os agenciamentos e as oposições habituais nos oferecem um sentido inverso ao que
nos é familiar. O mundo em que acreditávamos estar em
casa se torna inabitável. Não somos desse mundo: nele somos estrangeiros entre estrangeiros. E, finalmente, uma
mensagem religiosa que quase não é mais cifrada.
Vulnerabilidade
São raros os textos que parecem
desvelar tão nitidamente aos leitores anônimos o rosto de
seus autores. No entanto Derrida pertence na realidade
aos autores que pegam seus leitores desprevenidos quando os encontram pessoalmente. Ele não era o que esperávamos. Era uma pessoa de uma amabilidade incomum,
elegante, certamente vulnerável e sensível, mas sabendo
ficar à vontade e que, quando dava sua confiança, abria-se
com simpatia; era uma pessoa amigável, disposta à amizade. Eu tive exatamente essa felicidade, a de ele me dar sua
confiança, quando nos reencontramos há seis anos aqui
em Evanston, perto de Chicago, de onde lhe envio esta última homenagem.
Derrida nunca encontrou Adorno. Mas, quando recebeu
o Prêmio Adorno na cidade de Frankfurt, ele pronunciou
na Paulskirche um discurso de aceitação que, do gesto do
pensamento até as voltas secretas dos temas oníricos próprios do romantismo, não poderia ter mais afinidades com
o espírito de Adorno.
As raízes judias são sem dúvida o elemento por meio do
qual seus pensamentos se assemelham. Scholem continuou sendo um desafio para Adorno, Lévinas tornou-se
um mestre para Derrida. Nesse sentido, a obra de Derrida
pode ter também na Alemanha uma virtude esclarecedora;
se de fato ele se apropriou dos últimos temas de Heidegger,
pelo menos o fez sem naufragar no neopaganismo e sem
trair as fontes mosaicas.
Jürgen Habermas é pensador alemão e um dos principais filósofos vivos.
É autor de "O Futuro da Natureza Humana" (ed. Martins Fontes), entre outros livros.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Texto Anterior: Kiarostami é tema de livro, mostra e exposição Próximo Texto: + memória: A anistia da História Índice
|