São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2000

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+3 questões Sobre consumismo

1. Como definir o comportamento consumista?

2. Quais são suas causas?

3. O consumismo pode ser terapêutico?

Ana Verônica Mautner responde
1.
Comportamento consumista está associado, em primeiro lugar, à idéia de exagero e também à condição de insaciabilidade. O sujeito quer mais, sempre mais. Nessa etapa do processo ocorre uma mudança qualitativa. Ele deixa de apenas de querer para querer exibir. Não se trata de exibir o que comprou. A exibição está no ato da troca, que culmina na aquisição. É no ato de conseguir a posse do bem, ou coisa, que encontramos a gratificação máxima do consumista. A questão, pois, reside no tema do poder. Eu quero (peço, encomendo, tomo). Pago e depois levo.
Resumindo, diria que o comportamento consumista se caracteriza por uma insaciável necessidade de exibir poder. Às vezes o que se adquire é colecionado ou consumido ou distribuído ou simplesmente guardado. De qualquer forma, a negociação, a troca, contém o "gozo" que mantém o comportamento que psicólogos enquadram na categoria de compulsivo: o prazer no ato da compra é a gratificação que mantém o comportamento consumista.

2.
A mobilidade social, característica essencial do mundo moderno, exige dos membros da sociedade uma flexibilidade que nem sempre conseguimos. Nessa questão, crises egóicas de poder fluem para o consumo. Daí até que o ato de comprar sobrepuje a necessidade de ter é menos do que um passo. "O que" e "como" consumimos tornam-se nosso cartão de visita. O ato de comprar é, nesse contexto, elemento volátil na formação da identidade.

3.
O comportamento consumista enquanto fator de formação de identidade exerce o mesmo tipo de terapia que os remédios anestésicos: dá um descanso ao sofredor. Diminui a dor psíquica que sentimos quando elementos identificatórios não estão definidos. Quando a intolerância à dor atinge formas patológicas, seu uso deixa de ser terapêutico para tornar-se o causador de outras dores. É como a aspirina, que, tomada em excesso, dá azia. Comportamento consumista cria conflitos no lar, gera dívidas, juros e outros tantos inconvenientes. O comportamento consumista pode ser visto, pois, como uma das tentativas de que dispomos para driblar a sensação de impotência que a forma de organização da sociedade moderna (massa de indivíduos à procura de individuação) gera em seus membros.

Everardo Rocha responde
1.
O consumo, na sociedade moderna, se liberta dos limites da tradição para se tornar uma princípio fundamental, isto é, um sistema que, para além de saciar "necessidades" biológicas ou econômicas, serve a que os indivíduos estabeleçam semelhanças e diferenças entre si. A chamada "sociedade de consumo" nasce de um longo processo histórico, que envolve marcos como a corte elisabetana (século 16), o romantismo (século 18 e início do 19) e os meios de comunicação de massa (séculos 19 e 20); em si mesmo, tal modelo não é um mal, e sim uma "linguagem", que visa a singularizar "indivíduos" em princípio igualados (pela democracia e o mercado). O mal está na apropriação indébita dessa linguagem -que podemos chamar de "consumismo".
Nesse caso, o "consumo, logo comunico" dá lugar ao "consumo, logo existo", e a pessoa vê a si própria e todos os valores reduzidos à compulsão e ao sofrimento de "possuir" sempre mais. Esquecemos, assim -vide nossos festejos de Natal-, o que as festas primitivas ("kula") tinham como postulado básico: o ato de trocar, a "relação", vale mais que as coisas dadas ou recebidas.

2.
Como sugeri na resposta anterior, a atitude consumista é uma distorção, uma apropriação perversa das modernas regras de sociabilidade. Não vejo, por exemplo, na mídia o poder de manipulação suficiente para que fosse julgada "a responsável" por esse comportamento. Creio, antes, que o consumismo é uma variante exacerbada da sociedade de consumo, que se pode identificar em personagens como a protagonista de "Madame Bovary" (1857), de Gustave Flaubert, ou James Bond, cujas roupas, bebidas, mulheres, cigarros transmitiam o ideário "american way" do período da Guerra Fria.

3.
A pessoa que se separou e sai para as compras não resolverá, com isso, seu problema interno -ao contrário do que crê o consumista-, mas poderá ritualizar a tristeza, do mesmo modo como, antigamente, a roupa preta sinalizava a entrada e saída no período de luto: nos dois casos, o consumo ajuda à expressão de um outro olhar. Nesse sentido, consumir é terapêutico, assim como o é para o amigo que, dando um presente ao outro, exprime e reforça esse vínculo.

Quem são

Ana Verônica Mautner
É psicanalista e escritora, autora de, entre outros, "Crônicas Científicas" (ed. Escuta).

Everardo Rocha
É antropólogo, professor de comunicação social na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e autor de, entre outros, "A Sociedade do Sonho" (ed. Mauad).



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