São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2000

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Da natureza clássica à quântica

Cássio Leite Vieira
Antonio Augusto Passos Videira
especial para a Folha

Em 14 de dezembro de 1900, num passeio matinal por Grünewald, bosque no subúrbio de Berlim, o físico alemão Max Planck disse a seu filho mais velho, Karl, que havia chegado a um resultado científico tão importante quanto os alcançados dois séculos antes por sir Isaac Newton (1642-1727). Na tarde daquele dia, na Sociedade Alemã de Física, Planck, ao anunciar esse resultado, inaugurava a teoria quântica, que rege os fenômenos naturais na escala dos átomos e das moléculas. Ao lado da teoria da relatividade, ela forma as duas colunas que sustentam a física deste século. A hipótese de Planck era simples, mas se mostrou revolucionária: na natureza, a energia só é gerada e absorvida em diminutos pacotes, denominados "quanta" (no, singular, "quantum"). Ao propor essa descontinuidade, Planck rompia com uma tradição de séculos, que tinha a energia como um tipo de fluxo contínuo. Vista de hoje, a hipótese do quantum de energia foi um divisor de águas. Tudo que havia sido feito antes passou a ser classificado como física clássica. Os trabalhos que se sucederam, com base na hipótese dos pacotes de energia, levaram o nome de física moderna. Planck, um cientista conservador, muito ligado à física clássica, não achou então que sua hipótese fosse algo mais que um "artifício" para resolver a questão sobre a qual se debruçava desde meados da década de 1890 (não só ele se dedicava ao problema, mas também parte significativa da comunidade de físicos). Em 1931, em carta ao físico inglês Robert Wood (1868-1955), Planck relembrou que a proposição do quantum "foi um ato de desespero, porque, por natureza, sou pacífico e contra aventuras dúbias. [..." Porém, o problema tinha de ser resolvido a qualquer preço. Eu estava pronto para qualquer sacrifício das minhas convicções físicas [...". Eu tinha de chegar a um resultado positivo". O problema a que Planck se referia diz respeito a como a energia (ou a radiação) interage com a matéria. No início do século, a física clássica já enfrentava com dificuldades fenômenos então recém-descobertos, como a radioatividade, os raios X, o elétron e a chamada radiação do corpo negro -o alvo de Planck. Pode-se imaginar um corpo negro como um forno aquecido, com as paredes internas pintadas de preto e um pequeno orifício em sua estrutura. A radiação que escapará pelo buraco é semelhante àquela emitida por qualquer material aquecido (metal, porcelana, vidro etc.). Quando a temperatura está por volta de 100C, sente-se a radiação emitida apenas na forma de calor (ou infravermelho). Quando elevada para cerca de 600C, passa-se a ver a cor vermelha, até que, ao atingir a casa dos 2.000C, o branco (ou seja, a mistura de todas as cores visíveis) torna-se predominante, como acontece com o filamento de uma lâmpada caseira. No final do século passado, já se sabia que, para cada temperatura, havia uma cor (ou freqüência) predominante. E mais: sabia-se que essa cor predominante se deslocava em direção a ondas mais energéticas, à medida que aumentava a temperatura do corpo. Ainda em 1859, o físico alemão Gustav Kirchhoff (1824-1887) havia demonstrado que a intensidade da radiação emitida era a mesma para qualquer material, independentemente da geometria do corpo (uma barra de ferro ou um pedaço de porcelana se comportam de modo semelhante). Isso intrigava físicos como Planck, já um renomado especialista em termodinâmica (estudo dos fenômenos físicos que envolvem calor). No final do século passado, havia duas leis que tentavam dar uma explicação para a radiação emitida por um corpo negro. A primeira, proposta empiricamente em 1896 pelo físico alemão Wilhelm Wien (1864-1928), conseguia descrever a intensidade de radiação na faixa das frequências mais altas. Porém, essa lei apresentava discrepâncias em frequências mais baixas. Esse trecho do espectro emitido era bem explicado por outra lei, a de Rayleigh-Jeans, batizada em homenagem a seus criadores, John Strutt (1842-1919), mais tarde lorde Rayleigh, e James Jeans (1877-1946), ambos ingleses. Catástrofe ultravioleta No entanto, a lei de Rayleigh-Jeans levava a um tipo de incoerência que incomodava (muito) os físicos da época: a catástrofe ultravioleta. Segundo essa lei, a energia irradiada por qualquer corpo aquecido seria infinita e, assim, seria extremamente perigoso se aproximar até de uma inofensiva xícara de chá quente. A física clássica, na qual a lei Rayleigh-Jeans se baseava, previa que esses objetos emitiriam, em intensidade significativa, radiação ultravioleta (daí o nome), ou mesmo radiações mais energéticas, como os raios X e os raios gama. A experiência do dia-a-dia, claro, desmentia essa previsão.
Planck resolveu abordar o problema num sentido inverso. Primeiro, deduziu uma expressão matemática que descrevia corretamente a distribuição de energia de um corpo negro, sem, naquele momento, entender muito bem suas implicações. Ele anunciou essa fórmula para a Sociedade de Física de Berlim, em 19 de outubro de 1900. O físico alemão Heinrich Rubens (1865-1922) assistiu à apresentação de Planck e passou a noite em claro, comparando a proposta com seus dados experimentais. No dia seguinte, levou suas conclusões para o colega. A fórmula tinha grande poder de previsão.
Nos dois meses seguintes, Planck mergulhou em trabalho árduo para tentar revelar o significado de duas constantes que apareciam em sua fórmula. "Depois de algumas poucas semanas do mais extenuante trabalho de minha vida, a escuridão se iluminou", relatou Planck em conferência de 1920, ao receber o Nobel de Física.
Inicialmente, Planck atacou a questão a partir da teoria eletromagnética do físico escocês James Clerk Maxwell (1831-1879) e da termodinâmica. Confessou mais tarde que, se tivesse usado a teoria dos elétrons, do físico holandês Hendrik Lorentz (1853-1928), os cálculos teriam sido simplificados. "Eu não acreditava na existência dos elétrons", disse o então antiatomista convicto.
O ponto decisivo no intenso trabalho foi a escolha da mecânica estatística criada no século 19, principalmente pelo físico austríaco Ludwig Boltzmann (1844-1906). Não foi um decisão fácil para Planck: em cerca de 40 trabalhos publicados, nunca havia usado a interpretação probabilística da segunda lei da termodinâmica.
Caso tivesse se detido em aplicar tais idéias, como Boltzmann sugeria, mais uma vez teria chegado à catástrofe ultravioleta. Foi então que Planck formulou sua hipótese mais ousada: a energia seria gerada e absorvida em pacotes, os quanta, e não de forma contínua. Cinco anos depois, Albert Einstein (1879-1955) notaria que, sem a hipótese do quantum, nenhuma teoria conseguiria escapar da catástrofe ultravioleta.
Nos primeiros cinco anos, o quantum de energia praticamente não foi usado pelos físicos para tentar resolver problemas relacionados à estrutura da matéria e da radiação. Em entrevista à Folha, por e-mail, o historiador da ciência Jonh Heilbron, autor da principal biografia de Planck, "The Dilemmas of an Upright Man" (Os Dilemas de um Homem Direito, reeditada pela Harvard University Press este ano), diz que, até 1905, a hipótese de Planck "não tinha significado especial, a não ser seu uso no cálculo da constante de Boltzmann, a partir de medidas da radiação do corpo negro". Além disso, o quantum disputava o reconhecimento com descobertas feitas pouco antes: os raios X (1895), a radioatividade (1896), o elétron (1897) e o elemento rádio (1898).
"Planck lançou ao solo uma semente de dúvida. Dela haveria de nascer uma nova física", afirmou a historiadora da ciência Barbara Lovett Cline. Aos cem anos, a teoria quântica passou por severos testes experimentais e foi confirmada a distâncias impensavelmente pequenas. É a mais bem-sucedida teoria física da história.

Cássio Leite Vieira é jornalista e bolsista do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MCT). Antonio Augusto Passos Videira é historiador da ciência pela Universidade de Paris-7 e professor de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)


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