São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cultura

O escritor Albert Camus forjou um dos diagnósticos mais perfeitos da humanidade no século 20

Um inconformista perplexo



Fernando Savater
especial para "El País"

Certa vez, Borges referiu-se a Robert Louis Stevenson como "um desses amigos que a literatura me deu". De fato, sentimos por certos escritores algo que não pode ser descrito simplesmente como admiração ou interesse e que merece ser chamado de amizade. Muitas vezes, esses escritores nem são os mais importantes, e sim os mais nossos. Identificamo-nos com seus temas, com seu humor, com seu tom de voz, com seus caprichos e até com suas debilidades e seus erros, que, por isso mesmo, não são muito fáceis de desculpar. Preferimos a companhia deles à de outros escritores mais importantes, porém mais distantes. Em suas páginas ficamos à vontade e sentimos esse calorzinho estimulante de reconhecimento mútuo que, fora de suas páginas, só conseguimos bebendo bem acompanhados em certos bares. Nem todos os autores se prestam a essa forma de camaradagem. Imagino que ela seja difícil com Goethe (apesar de Eckermann) ou com Calderón de la Barca, mas acho que é fácil com Chesterton e quase inevitável com Montaigne. Sem dúvida, o escritor francês Albert Camus (1913-1960) é um dos protagonistas literários de nosso século que mais e maiores amizades despertaram em seus leitores... E também um dos que provocaram, ao menos enquanto vivia, os mais irrevogáveis antagonismos.

Fervor popular
Estes são não menos compreensíveis, pois Camus possuía uma aura quase insultantemente positiva: foi atraente, elegante sem afetação, moderno, corajoso, reto, esportivo, um menino de rua humilde, mas irresistível, tocado pela graça do fervor popular em tudo o que fazia, fosse jornalismo, romance ou teatro, radical humanista da política num tempo particularmente desumano, o mais jovem ganhador do Prêmio Nobel, em 1957...
Enfrentou todos os totalitarismos numa época em que era raríssimo encontrar um intelectual que não tivesse flertado, antes ou depois, pelo menos com um deles e, às vezes, sucessiva e contraditoriamente, com mais de um.
Por tudo isso, como não invejá-lo muito, como não detestá-lo um pouco, assim como se sente ojeriza do infalível primeiro aluno da classe? E, no entanto, ele desperta amizade: porque sabe mostrar o lado irrepetível e frágil de cada um de nós, porque se declara incompleto, insatisfeito, falível, porque defende princípios elevados, mas prova amar até o que há de menos excelso na vida, porque cultiva a razão, mas não escamoteia seus desenlaces absurdos, porque mostra mais do que demonstra, porque não pode ser confundido com um professor e sempre guarda em si algo de tremulamente jovem e imaturo. Até a morte foi gentil com ele, poupando-lhe -poupando-nos?- as redundâncias ou as renúncias de seu envelhecimento.
"O Homem Revoltado" (ed. Record) é talvez um dos ensaios mais perfeitos e emblemáticos do século 20. É a obra de um homem de letras e de coração, não de um douto acadêmico. É a reflexão histórica de um inconformista perplexo, não o vômito rancoroso de um ressentido nem a autópsia gélida de um dissecador do sofrimento humano.
Mas encerra um diagnóstico que os acontecimentos de nossa época -e talvez os do amanhã- não permitem ignorar: os seres humanos só o são por completo quando se revoltam... desde que não dirijam sua revolta contra a própria humanidade que almejam e que têm de partilhar. A injustiça é execrável, mas a crueldade não sabe corrigi-la e, antes ou depois, se torna cúmplice daquela. Dos homens, sabemos apenas que morrem e não são felizes: mas vale a pena tentar que continuem sendo homens.


Fernando Savater é filósofo espanhol, autor, entre outros, de "Ética como Amor-Próprio" (Martins Fontes).
Tradução de Sergio Molina.



Texto Anterior: + brasil 501 d.C. - Luiz Costa Lima: Elogio do congraçamento
Próximo Texto: + livros: Oz entre nós
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.