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+ cultura
O escritor Albert Camus forjou um dos diagnósticos mais perfeitos da humanidade no século 20
Um inconformista perplexo
Fernando Savater
especial para "El País"
Certa vez, Borges referiu-se a Robert Louis Stevenson como "um
desses amigos que a literatura
me deu". De fato, sentimos por
certos escritores algo que não pode ser
descrito simplesmente como admiração
ou interesse e que merece ser chamado
de amizade. Muitas vezes, esses escritores nem são os mais importantes, e sim
os mais nossos. Identificamo-nos com
seus temas, com seu humor, com seu
tom de voz, com seus caprichos e até
com suas debilidades e seus erros, que,
por isso mesmo, não são muito fáceis de
desculpar. Preferimos a companhia deles à de outros escritores mais importantes, porém mais distantes. Em suas páginas ficamos à vontade e sentimos esse
calorzinho estimulante de reconhecimento mútuo que, fora de suas páginas,
só conseguimos bebendo bem acompanhados em certos bares.
Nem todos os autores se prestam a essa
forma de camaradagem. Imagino que ela
seja difícil com Goethe (apesar de Eckermann) ou com Calderón de la Barca,
mas acho que é fácil com Chesterton e
quase inevitável com Montaigne. Sem
dúvida, o escritor francês Albert Camus
(1913-1960) é um dos protagonistas literários de nosso século que mais e maiores amizades despertaram em seus leitores... E também um dos que provocaram,
ao menos enquanto vivia, os mais irrevogáveis antagonismos.
Fervor popular
Estes são não menos compreensíveis, pois Camus possuía
uma aura quase insultantemente positiva: foi atraente, elegante sem afetação,
moderno, corajoso, reto, esportivo, um
menino de rua humilde, mas irresistível,
tocado pela graça do fervor popular em
tudo o que fazia, fosse jornalismo, romance ou teatro, radical humanista da
política num tempo particularmente desumano, o mais jovem ganhador do Prêmio Nobel, em 1957...
Enfrentou todos os totalitarismos numa época em que era raríssimo encontrar um intelectual que não tivesse flertado, antes ou depois, pelo menos com um
deles e, às vezes, sucessiva e contraditoriamente, com mais de um.
Por tudo isso, como não invejá-lo muito, como não detestá-lo um pouco, assim
como se sente ojeriza do infalível primeiro aluno da classe? E, no entanto, ele desperta amizade: porque sabe mostrar o lado irrepetível e frágil de cada um de nós,
porque se declara incompleto, insatisfeito, falível, porque defende princípios elevados, mas prova amar até o que há de
menos excelso na vida, porque cultiva a
razão, mas não escamoteia seus desenlaces absurdos, porque mostra mais do
que demonstra, porque não pode ser
confundido com um professor e sempre
guarda em si algo de tremulamente jovem e imaturo. Até a morte foi gentil
com ele, poupando-lhe -poupando-nos?- as redundâncias ou as renúncias
de seu envelhecimento.
"O Homem Revoltado" (ed. Record) é
talvez um dos ensaios mais perfeitos e
emblemáticos do século 20. É a obra de
um homem de letras e de coração, não de
um douto acadêmico. É a reflexão histórica de um inconformista perplexo, não
o vômito rancoroso de um ressentido
nem a autópsia gélida de um dissecador
do sofrimento humano.
Mas encerra um diagnóstico que os
acontecimentos de nossa época -e talvez os do amanhã- não permitem ignorar: os seres humanos só o são por completo quando se revoltam... desde que
não dirijam sua revolta contra a própria
humanidade que almejam e que têm de
partilhar. A injustiça é execrável, mas a
crueldade não sabe corrigi-la e, antes ou
depois, se torna cúmplice daquela. Dos
homens, sabemos apenas que morrem e
não são felizes: mas vale a pena tentar
que continuem sendo homens.
Fernando Savater é filósofo espanhol, autor, entre outros, de "Ética como Amor-Próprio" (Martins
Fontes).
Tradução de Sergio Molina.
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