São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2000

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Edição comemorativa e exposição celebram nos EUA os cem anos da publicação do clássico da literatura infantil "O Mágico de Oz", de L. Frank Baum
Oz entre nós

John Updike
especial para "The New Yorker"



Há cem anos, "O Mágico de Oz", de L. Frank Baum, era publicado pela moribunda firma de George M. Hill, em Chicago. A Biblioteca do Congresso abriga agora uma exposição e acaba de ser publicada uma edição comemorativa do centenário, "The Annotated Wizard of Oz" (O Mágico de Oz Comentado), aos cuidados de Michael Patrick Hearn. Hearn, como sabemos pelo prefácio de Martin Gardner, se tornou um especialista em Baum quando estudava língua inglesa no Bard College e comentou pela primeira vez o "Mágico" quando tinha apenas 20 anos. Gardner, o compilador polímata de "The Annotated Alice" (1960) e de "More Annotated Alice" (1990), fora chamado a fazer o mesmo para a fábula de Baum, em 1970; alegando sua incapacidade, recomendou o jovem de Bard a Clarkson N. Potter, que publicou o tomo de Hearn em 1973. Desde então, Hearn produziu versões comentadas do "Conto de Natal", (1843) de Charles Dickens, e do "Huckleberry Finn" (1844), de Mark Twain, fez contribuições a vastos setores dos estudos sobre Baum, colaborou em uma biografia de W.W. Denslow, o ilustrador do "Mágico", e labutou em cima de uma "biografia definitiva" de Baum, ainda inédita. Ao que se presume, ele e sua editora vêm aguardando pacientemente, com mais e mais rodadas de comentários e ilustrações, a chegada do centenário (que também marca o aniversário de "Sister Carrie", de Dreiser, de "Lord Jim", de Conrad, dos primeiros romances de Colette e de "A Interpretação dos Sonhos", de Freud). Não é difícil imaginar por qual razão Gardner se esquivou da proposta original. As duas "Alices" são livros mais literários, intricados e modernistas que o "Mágico" de Baum, e a mente de Lewis Carroll, repleta de brincadeiras matemáticas, jogadas de xadrez, quebra-cabeças semânticos e paradoxos da religião vitoriana, se prestava melhor aos comentários de uma mente afim como a de Gardner. Mas Baum, como Hearn mostra em sua introdução, também era uma personagem complexa: seguidor do teosofismo, entendido em avicultura, ator e cantor entusiasta, bom fotógrafo amador, inventor doméstico, vendedor ambulante de porcelana e, numa virada final, autor de livros para crianças. Tinha 44 anos quando publicou "O Mágico de Oz". Até então, sua bibliografia incluía um catálogo de vendedores de selos, um tratado sobre acasalamento e criação de galinhas Hamburg, uma obra definitiva sobre "A Arte de Decorar Vitrines e Interiores de Mercearias" (que também celebra seu centenário) e alguns pequenos volumes para crianças.

Sabor das grandes planícies
Sua vida (1856-1919) reflete o aventureirismo econômico e social do país. Hearn conta que seu pai, Benjamin Ward Baum, "seguiu quase tantas carreiras quanto seu filho. Trabalhava na construção de uma fábrica de barricas em Chittenango (Nova York) quando seu filho nasceu, mas fez fortuna na nascente indústria petrolífera da Pensilvânia alguns anos mais tarde". Lyman Frank, um de seus nove filhos (dos quais apenas cinco chegariam à idade adulta), foi criado numa propriedade luxuosa em Syracuse e educado por tutores ingleses. Era um garoto leitor e sonhador. Aguentou apenas dois anos na Escola Militar Peekskill, até passar para a Escola Clássica de Syracuse, onde aparentemente não concluiu o curso. Aos 26, casou-se com Maud Gage, de 21 -na ocasião, já era um homem desengonçado com vastos bigodes, viajando como atração principal de um melodrama musical, "A Donzela de Arran", para o qual escrevera tudo, libreto, canções e música. Sua sogra, Matilda Joslyn Gage, era uma feminista de destaque e fervorosa seguidora do teosofismo e não quisera que sua filha abandonasse Cornell para se casar com um ator. Maud casou-se de qualquer jeito e, quando engravidou, Frank largou o teatro. Fundou em sociedade com um tio a Baums Castorine Company, vendendo uma graxa para eixos inventada por seu irmão Benjamin e fabricada ainda hoje neste mundo escorregadio. O irmão e as irmãs de Maud haviam se estabelecido no Território de Dakota; em 1888, Frank mudou-se com a família para Aberdeen, Dakota do Sul, onde abriu um armazém, Baums Bazaar. A seca e a depressão levaram a loja à falência; em 1890, Baum assumiu um semanário, o "Saturday Pioneer", que também foi à falência, em 1891. Achou emprego em Chicago, primeiro como repórter, depois como vendedor ambulante para a firma de porcelana Pitkin & Brooks. A estadia de dois anos e meio em Dakota forneceu-lhe, entretanto, aquele sabor das grandes planícies que seria crucial para o mito de Dorothy e do Mago; a desolação acinzentada e a árdua sobrevivência rural compõem a imagem em negativo do mundo colorido de Oz. No Kansas de Baum "nem a grama era verde, pois o sol queimara a ponta das folhas alongadas até que ficassem da mesma cor acinzentada de tudo o mais". A espetacular "Cidade Branca" de Chicago, construída em argamassa e cimento para a Exposição Columbiana de 1893 à margem do lago, forneceu a Baum e a seu ilustrador, Denslow, a escala e o brilho da Cidade Esmeralda de Oz, mas não a sua coloração. Uma autora contemporânea, Frances Hodgson Burnett, comparou a Cidade Branca à Bela Cidade de "Pilgrims Progress" (1678), de John Bunyan, e escreveu: "Fileiras infinitas de jóias pareciam circundá-la. O Palácio das Flores tinha um grande cristal de luz brilhando contra o azul escuro do céu; torres e domos pareciam ter coroas e diademas; milhares de jóias pendiam entre as massas de folhas ou se refletiam, cintilantes, na escuridão das lagoas; fontes de jóias fundidas brotavam, flamejavam e mudavam de aspecto". Obra da ilusão elétrica (uma conquista recente, obra do mago de Menlo Park) e logo uma ruína abandonada, a Cidade Branca emprestou ao livro de Baum um laivo melancólico de fragilidade. Em 1903, um informe da editora Bobbs-Merrill afirmava que o nome "Oz" vinha da gaveta "O-Z" do arquivo do autor, mas o nome ecoa um poema de Shelley bem conhecido de muitos vitorianos: "E no pedestal vêem-se estas palavras:/ "Meu nome é Ozymandias, rei dos reis:/ Atentem a minhas palavras, ó poderosos, e desesperem-se!" / Nada mais restou". Há uma nota de vazio, de trapaça mirabolante, de charlatanice de província no primeiro dos livros de Oz, antes que uma pletora de milagres venha transformar a personagem num feiticeiro de verdade. No filme da MGM, as personagens cantam em êxtase que "o Mágico de Oz não tem igual (...) por causa das coisas maravilhosas que faz" -no caso, se descobre que ele encena uma pantomima lacrimosa e escapa num balão desgovernado.
Elogios de Mark Twain
Mas Baum, que se voltou para os livros como meio de passar mais tempo com seus quatro filhinhos, mostrou ser um autêntico mago como autor para crianças. Conhecera William Wallace Denslow, um artista doidivanas da Filadélfia que viera a Chicago para a exposição; ambos tinham idéias claras e ambiciosas sobre livros para crianças e chegaram a pagar pelas ilustrações coloridas de sua primeira obra em colaboração, um livro com versos de Baum: "O Livro do Papai Ganso". O livro recebeu elogios de Mark Twain, de William Dean Howells e do almirante George Dewey, e Hearn informa que foi o livro ilustrado mais vendido de 1900.
O mesmo ano viu a publicação de nada menos que cinco títulos de Baum, dos quais o "Mágico" foi o último. O editor Hill foi soterrado por encomendas, e fizeram-se quatro novas tiragens, num total de 90 mil exemplares. O "Journal" de Minneapolis considerou-o, em novembro, "o melhor livro para crianças do século"- um belo elogio em se tratando do século 19, mas nem tanto caso se referisse ao século incipiente.
Em 1902, George M. Hill foi à falência, a despeito do sucesso de Baum, e os direitos do "Mágico" foram ter às mãos mais crassas de Bobbs-Merrill; nesse ínterim, Baum e Denslow separaram-se, cada qual levando consigo as personagens de Oz, uma vez que seu contrato estipulava a posse em separado do texto e das ilustrações. O mesmo ano viu a estréia, na Chicago Grand Opera House, de "O Mágico de Oz", uma "extravagância musical" criada por Julian Mitchell, que mais tarde criaria "The Ziegfeld Follies".


Baum raramente soube quando parar, desdobrando maravilha após maravilha: não percebeu que seu "Mágico" diz respeito a nossa capacidade de sobreviver à desilusão


Mitchell descartara o libreto de Baum para uma opereta em cinco atos baseada em sua fábula e em seu lugar encenou um vaudeville que culminou seu sucesso em Chicago com uma temporada de ano e meio na Broadway, seguida de uma carreira itinerante que durou, com interrupções, até 1911. A extravagância aumentou a fortuna de Baum, mas também encorajou seu tropismo em direção ao teatro. Em 1904, a primeira sequência de seu livro, "A Maravilhosa Terra de Oz", foi concebida a fim de servir de base a uma outra extravagância, estrelando David C. Montgomery e Fred A. Stone, que haviam desempenhado os papéis do Homem de Lata e do Espantalho na produção de Mitchell. O livro era dedicado a eles e estava repleto de trapalhadas e trocadilhos adequados às suas interpretações. O livro vendeu-se bem, mas fracassou como musical, com canções de Baum, mas sem, afinal de contas, a atuação de Montgomery e Stone. Antecipando a publicidade de arrastão aperfeiçoada por Walt Disney, Baum promoveu sua produção infeliz com uma gincana num jornal dominical, com desenhos de Walt McDougall e de título "Estranhos Visitantes da Maravilhosa Terra de Oz". Apesar de sua saúde frágil (angina, cálculos, apendicite), Baum foi um turbilhão de atividade até sua morte, aos 62 anos. Além de 13 sequências para seu livro de Oz, escreveu uma série para adolescentes, "As Sobrinhas da Tia Jane", sob o pseudônimo de Edith Van Dyne, livros para crianças sob quatro outros pseudônimos, um romance adulto publicado anonimamente e muitas peças inéditas. Esplendidamente trajado numa sobrecasaca branca com lapelas de seda, Baum viajou com um show de cinema e slides: um comentarista do "Tribune" de Chicago escreveu que "sua habilidade de cativar a atenção de um grande público durante duas horas de atrações tênues foi amplamente demonstrada"; essas primeiras produções eletrônicas eram dispendiosas e ajudaram a levá-lo à bancarrota em 1911. Transferindo, por economia, sua residência de inverno na Califórnia do Hotel del Coronado para um "belo bangalô que chamou de Ozcot", em Hollywood, L. Frank Baum se viu circundado pela nascente indústria cinematográfica, mas sem meios de se imiscuir nela proveitosamente. Sua "Oz Film Manufacturing Company" produziu alguns filmes mudos, começando com "A Garota de Oz", em 1914, mas foram desdenhados como filmes para crianças e foram mal nas bilheterias. Em 1925, seis anos depois da morte de Baum, lançou-se um filme a partir de "O Mágico de Oz": de acordo com a opinião severa de Hearn, faltava a esse filme "toda a mágica do livro de Baum" (ainda que Oliver Hardy -sem Stan Laurel- levasse o papel de Homem de Lata), e o roteiro era "terrível, redigido em parte pelo filho do autor, Frank J. Baum". Foi o filme da MGM de 1939 que acertou na mosca: a produção de US$ 3 milhões não teve lucros em seu lançamento original, mas se tornou peça de repertório da televisão no pós-guerra. Cem anos depois da publicação do "Mágico", o filme é a principal rota de acesso a Oz. Oz rapidamente se tornou alvo de atividade comercial, e há algo de deprimente na crônica de sua exploração, uma crônica que Hearn remata com uma nota que compila tudo, de um "Mágico" com atores negros (nos palcos em 1975, nos cinemas em 1978) a um natimorto "Retorno a Oz", da Disney (1985). Para não falar da série de televisão "Perdidos em Oz", dirigida por Tim Burton e ainda por estrear. É difícil deixar de ler as sequências do próprio Baum sem notar a exploração em marcha às mãos de um autor que não compreende nitidamente sua própria obra-prima. Depois de sua morte, a série foi prolongada por Ruth Plumly Thompson, que lhe acrescentou mais 19 títulos entre 1921 e 1939; em seguida, por John R. Neill, cujos desenhos insípidos ilustram todos os livros de Oz, à exceção do primeiro; por Jack Snow, autor de ficção científica de segunda categoria; por Rachel Cosgrove; por Eloise Jarvis McGraw Wagner; e mesmo pelo filho de Baum, que disputou judicialmente com sua mãe a posse da marca de "Oz". O infatigável Hearn conta ainda que "recentemente vem surgindo um subgênero de romances adultos a partir da mitologia de Oz", como "Was", de Geoff Ryman (1992), e "A Malvada - A Vida e a Época da Bruxa Malvada do Oeste", de Gregory Maguire (1995) -produtos, ao que parece, de crianças saturadas de Oz agora transmutadas em criadores pós-modernos, livres do medo de processos por direitos autorais.

Metamorfose na tela
As imagens poderosas do "Mágico" de fato clamam por extensão e elaboração. O filme da MGM ultrapassa o livro em vários aspectos. Elimina, por exemplo, o episódio demasiado esopiano (e provavelmente impossível de filmar, ao menos antes da computação gráfica) no qual a rainha dos ratos e seus muitos asseclas transportam o Leão Medroso da cama de papoulas em que ele ferrou no sono; em seu lugar, o filme ressuscita a montagem teatral de 1902, quando uma súbita tempestade de neve anulava o encanto das papoulas. O filme extirpa bom número de animais extravagantes e o episódio particularmente forçado do País de Porcelana, tão estranhamente postado no caminho para o covil da Bruxa.
O roteiro aumenta o papel desta última, mostrando-a como origem de todos os obstáculos no caminho dos peregrinos -que ela assiste televisivamente por meio de sua bola de cristal. No livro, ela é uma presença relativamente passiva e facilmente vencida ("Ah, nunca pensei que uma mocinha como você conseguiria me derreter e pôr fim a minhas maldades. Veja: lá me vou!"), em contraste com o perfil esverdeado e tagarela de Margaret Hamilton, que morre lamentando sua "bela maldade".
Uma vez morta, o filme ganha velocidade; com a partida do Mágico, ele praticamente acaba, ao passo que o livro de Baum se estende com mais complicações no caminho para a Bruxa Bondosa do Sul, com criaturas humanóides como as Árvores Lutadoras e os Cabeças de Martelo, numa trama mecânica que depende do Chapeuzinho de Ouro e seu poder sobre os Macacos Alados. Como autor, Baum raramente soube quando parar, desdobrando maravilha após maravilha, enquanto se dissipava o conteúdo humano -moldado como é por limitações não-mágicas. Não percebeu inteiramente que seu "Mágico" diz respeito a nossa capacidade de sobreviver à desilusão -milagres são conversa fiada.
O filme de Hollywood começa em Kansas, cinzento e humano, e planta nessa terra enfadonha todas as figuras que dominarão Oz -três lavradores, a malvada Almira Gulch em sua bicicleta, o professor Maravilha em sua camionete aos pedaços. São todos de Kansas, e Dorothy retornará a eles. Hearn julga "imperdoável" que o filme apresente Oz como um sonho; mas Dorothy, ao acordar, protesta que aquilo "não era um sonho!". Era uma realidade alternativa, uma descrição interna de como crescemos. Como observa Jerome Charyn em seu excelente "Movieland - Hollywood and the Great American Dream Culture" (1989), "o filme inteiro versa sobre metamorfoses". Judy Garland, que tinha 16 anos e é claramente pujante demais para o papel de uma Dorothy pré-púbere, era "uma mulher que parecia florescer a partir de uma garotinha comum".
Crescimento é metamorfose, e autocompreensão é crescimento. O Espantalho já é dotado de cérebro, o Homem de Lata já é sentimental, o Leão tem suficiente coragem, mas todos se sentem deficientes até que o Mágico venha conferir-lhes os sinais exteriores disso (e tudo isso com muito mais graça no filme do que no livro). Dorothy, capaz e lúcida desde o início, só precisa aprender a ver as cores domésticas como preciosas para então retornar a casa com o mesmo ardor da escapada "além do arco-íris" -a grande canção do filme, que sobreviveu por pouco aos cortes finais.
Como Charyn e Salman Rushdie (que exalta o "Mágico" enquanto "parábola da condição migratória"), pertenço a uma geração marcada mais pelo filme do que pelo livro. Se quisermos o testemunho de alguém que leu os livros de Oz com credulidade e deleite adolescentes, podemos recorrer a um artigo marcante e picante de Gore Vidal, publicado em duas partes em "The New York Review of Books" em 1977. Ele vê em Baum um inconformado com a ascensão do império americano e da "férrea ordem puritana". É bem verdade que uma certa corrente subterrânea de dissidência nos livros de Oz indispôs alguns bibliotecários e críticos: o diretor das bibliotecas públicas de Detroit, Ralph Ulveling, condenou-os em 1957 por "negativismo" e "abordagem covarde da vida". Em sua introdução ao "Mágico", Baum soa uma nota de desafio: deplora os incidentes "horríveis e apavorantes" dos "antigos contos de fadas" e promete a seus leitores "um conto de fábulas modernizado, no qual o espanto e a alegria são preservados e o sofrimento e os pesadelos são deixados de fora". A teosofia americana, à qual Baum fora apresentado por sua tremenda sogra, misturava espiritualismo e crenças hinduístas e budistas a uma crença na perfectibilidade humana que rejeitava o lado mais soturno do cristianismo. "Deus é a natureza, e a natureza é Deus", dizia Baum; mas ele também professava uma visão animista segundo a qual "cada pedaço de madeira, cada gota de líquido, cada grão de areia ou lasca de rocha, contém miríades de habitantes (...), esses seres vaporosos e invisíveis são conhecidos como Elementares (...). Não têm alma, mas são imortais; muitas vezes possuem extraordinária inteligência, outras vezes são notavelmente estúpidos". Madame Helena Petrovna Blavatski, fundadora da Sociedade Teosófica, descreveu-os em seu livro "Ísis Desvelada" (1878) como "criaturas que se desenvolveram a partir dos quatro reinos da terra, do ar, do fogo e da água, chamadas pelo cabalistas de gnomos, sílfides, salamandras e ondinas". Essa multidão virtualmente bacteriana veio a ocupar Oz conforme as sequências do livro original multiplicavam suas regiões e tribos; mas o próprio "Mágico" apresenta uma cosmogonia manobrável, delineada em cores brilhantes e inequívocas. Segundo a teosofia, nossos corpos ancestrais têm cores distintas, e o mesmo acontece com as regiões de Oz e seus habitantes. Como aponta Vidal, Oz constitui-se de setores bem ordenados como os vastos jardins que Baum vira na casa de sua infância, mais tarde recriados no desenho geométrico de seu jardim em Ozcot. Os males do capitalismo -recompensas mostraram-se tão passageiras para Baum- são ausentes desse mundo alternativo. Os inimigos do socialismo tiram da Cidade de Esmeralda uma passagem citadíssima: "Não havia pobres (...) porque não havia nada parecido com dinheiro, e todo tipo de propriedade pertencia ao Senhor. As pessoas eram seus filhos, e a Princesa Ozma cuidava de todos. Cada qual recebia gratuitamente de seus vizinhos tudo de que necessitava, que é tudo o que se deve desejar".

Bugiganga afortunada
Mas o proletariado não impera, ao contrário, é dominado de maneira pseudomedieval por tiranos benevolentes, o mais das vezes do sexo feminino, talvez em harmonia com as tendências feministas da teosofia e com o sufragismo militante de Matilda Gage. Os senhores detêm poderes de absolutismo paternal: Glinda é a mãe ideal e industriosa e o Mágico é o pai tipicamente empavonado da sitcom de Oz. Muito embora Baum apoiasse o populista William Jennings Bryan em 1896 e 1900, e apesar da abundância de utopias literárias ao final do século 19, Oz não é um lugar suficientemente terreno para veicular grandes mensagens políticas. Sua matéria não é feita de intenção revolucionária, mas sim de "wishful thinking". Se tem algum aspecto terreno, o "Mágico" o deve às ilustrações robustas de Denslow. O "Mágico de Oz Comentado" de Hearn informa que Denslow às vezes trabalhava por conta própria, desconsiderando o texto: desenhou um urso quando Baum menciona um tigre, coroa o Leão bem antes do autor, veste Dorothy com seu vestido caseiro enquanto Baum ainda a descreve em sedas esmeraldinas e sempre omite (como o filme) a "marca redonda e brilhante" do beijo que a Bruxa Bondosa do Norte planta em sua testa como proteção. Um centenário é uma ocasião de aplauso, mas este leitor está inclinado a aceitar o convite a fim de discordar de Hearn, quando este afirma que "há possivelmente três grandes demandas clássicas na literatura americana: "Moby Dick" (1851), de Melville, "Aventuras de Huckleberry Finn" (1883), de Mark Twain, e "O Mágico de Oz" (1900), de L. Frank Baum". Sejam quais forem seus deslizes ou enganos estéticos, os dois primeiros foram gloriosamente escritos na ambição de enunciar toda a verdade, aí incluídos os sofrimentos e pesadelos. O "Mágico" é uma bugiganga relativamente afortunada, no estilo plano e claro de quem dita uma história. Tampouco penso que "o tio Henry e a tia Em vieram a simbolizar o severo fazendeiro americano e sua esposa com tanta força quanto o casal na famosa pintura de Grant Wood, "American Gothic'". Hearn tem visto as coisas com a lente de aumento de The Baum Bugle, revista trimestral do International Wizard of Oz Club, "fundado em 1957 por Justin G. Schiller, de 13 anos". Ao longo de suas notas de rodapé devotadamente pesquisadas, Hearn às vezes incorre em banalidades críticas: "Muito do encanto e da graça de "O Mágico de Oz" provém da ironia e da divertida incongruência de Baum"; o Leão Medroso "comprova a sentença de Hemingway, que dizia que a coragem é a graça sob pressão". Uma analogia mais justa, desenvolvida pelo próprio Hearn em várias passagens, é com "The Pilgrims Progress" (O Caminho do Peregrino), outra história nada rebuscada de uma busca picaresca, escrita por um autor de quarenta e tantos anos com certo hábito de atuação pública (Bunyan era pregador). O "Mágico" é um "Pilgrims Progress" despido de religião, exceto pela intuição teosófica de que há vários universos paralelos.


Numa época em que a literatura infantil era saturada da "moralidade puritana das escolas dominicais", Baum fez uma fantasia refrescantemente agnóstica; as bruxas são muito comicamente malvadas para serem perversas


Escapismo sem escapada
Numa época em que a literatura infantil ainda era saturada da "pútrida moralidade puritana das escolas dominicais" (Hearn), Baum produziu uma fantasia refrescantemente agnóstica. As bruxas são muito comicamente malvadas para que sejam perversas. O Mágico de meia-tigela, acusado por Dorothy de ser "um homem muito mau", protesta: "Sou um homem muito bom, mas um péssimo mágico, devo admitir". Em outro lance ousado de simplificação americana, Baum inventou o escapismo sem escapada. Dorothy opta por abandonar Oz; o Kansas cinzento e varrido pelo vento é reinstaurado (com menos clamor que no filme) como sede da eterna felicidade familiar. Em termos práticos, é bem mais fácil colorir de alegria o lugar onde estamos do que tentar encontrar um paraíso tecnicolor.
O último desenho de Denslow mostra o retorno com mais exuberância que a prosa de Baum alcança. Na pressa, Dorothy corre tão rápido que seus sapatos de prata (versão menos fotogênica das pantufas de rubi do filme da MGM) estão para cair; quase podemos vê-la vencendo as etapas (Espantalho, Leão Medroso, Homem de Lata) de sua corrida às origens.

The Annotated
Wizard of Oz
432 págs., US$ 39,95 de L. Frank Baum. Ilustrações de W.W. Denslow. Org. de Michael Patrick Hearn. Ed. W.W. Norton.

Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, à livraria Cultura (tel. 0/xx/11/ 285-4033) e, no Rio, à livraria Marcabru (tel. 0/ xx/21/ 294-5994).


John Updike é escritor norte-americano, autor de, entre outros, "Bech no Beco" e "Na Beleza dos Lírios" (ambos pela Companhia das Letras).
Copyright 2000 John Updike. Todos os direitos reservados.
Tradução de Samuel Titan Jr.

Podem ser encontradas várias traduções em português do livro "O Mágico de Oz", entre elas a do escritor Paulo Mendes Campos, publicada pela Ediouro, e a de Luciano Machado, com ilustrações de Marcelo Pacheco, publicada pela editora Ática.


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