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Redenções de Pasolini
Sai no Brasil a coletânea
"Alì dos Olhos Azuis", que reúne contos, poemas e roteiros escritos pelo diretor entre 1950 e 65
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Poeta, cineasta, romancista, ensaísta.
Católico, comunista,
homossexual. Pier
Paolo Pasolini (1922-75) foi "trezentos, trezentos e
cinqüenta", para usar aqui a
autodefinição de Mário de Andrade. No volumoso "Alì dos
Olhos Azuis" (Berlendis & Vertecchia, trad. Andréia Guerini,
Bruno Berlendis de Carvalho,
Maria Cristina Pompa e Renata Lúcia Bottini, 640 págs., R$
75), agora lançado no Brasil, esse que foi um dos grandes artistas italianos da segunda metade do século 20 revela a coerência fundamental que há entre suas múltiplas facetas.
Não se trata propriamente
de uma coletânea de contos,
pois há também no volume roteiros de filmes, poemas e textos híbridos, entre a ficção, o
ensaio e a prosa poética. São
trabalhos produzidos entre
1950 e 65, reunidos pelo autor
na edição italiana de 65.
A organização dos escritos,
em ordem cronológica, permite acompanhar o desenvolvimento e a maturação da poética de Pasolini.
Dos textos de 1950, 51, basicamente crônicas da vida suburbana de Roma entremeadas
de digressões ensaísticas e excursos poéticos, passa-se ao
longo da década a construções
dramáticas mais complexas,
culminando nas tragédias que
o próprio autor levaria às telas
no início dos anos 60, "Accatone" ["Desajuste Social", 1961] e
"Mamma Roma" [com título
homônimo, 1962].
Em todas as narrativas, o
ambiente geográfico e humano
é o mesmo: as "borgate" romanas, casarios paupérrimos nos
arredores da cidade. Uma espécie de periferia da periferia, onde, entre miseráveis migrantes
do sul, pululam prostitutas, cafetões, traficantes, ladrões e
delinqüentes de toda espécie.
É de onde brotam também
os célebres "raggazzi di vita"
que Pasolini tanto amou (nos
vários sentidos do verbo) e que
acabaram -um deles, pelo menos- por assassiná-lo.
Olhar humanista
Descrita dessa maneira, a literatura de Pasolini pode dar a
falsa idéia de um chafurdar naturalista na sordidez da marginalidade.
Mas não é nada disso. É com
o olhar educado por séculos de
cultura humanista e a alma embebida no sentido cristão do sagrado que o artista contempla
seus deserdados da Terra. Quase todas as suas histórias podem ser lidas como parábolas
da inocência perdida ou de tentativas abortadas de redenção.
Entre ruínas antigas e escombros modernos, os pobres-diabos de Pasolini trafegam
sem lei e sem moral, mas, talvez
por puro desejo utópico, o autor parece entrever em alguns
deles a busca confusa de uma
nova lei, de uma nova moral -e
de uma nova família.
A par do tema da corrupção e
da prostituição (feminina e
masculina), há outra constante
que perpassa as narrativas: o
motivo da maternidade.
"Mamma Roma", já em seu
próprio título, evidencia a identificação entre a cidade e a gestação. Desde seu símbolo fundador, o da loba que amamenta
Rômulo e Remo, Roma é associada de um modo torto à maternidade. Em Pasolini ela também é mãe, mas uma mãe prostituída e um tanto incestuosa.
Nessa história específica, cabe lembrar, Roma é o nome da
veterana prostituta que quer se
aposentar para criar o filho
adolescente longe do vício e do
crime. Essa via de redenção lhe
será bloqueada, assim como a
de Accatone, quando este tenta
abandonar, por amor, sua vida
de cafetão.
Há uma ausência fatal de saídas no mundo de Pasolini, mas
temperada pela transcendência sagrada. Os símbolos cristãos estão em toda parte.
"Mamma Roma" termina
com a imagem de Ettore, o filho
de Roma, amarrado numa cama de cimento com os braços
em cruz.
Em "Accatone", a imagem final é a de um marginal fazendo
o sinal da cruz com as mãos algemadas diante de um companheiro morto. E "A Ricota" (roteiro do curta-metragem incluído no longa de episódios
"Rogopag") é uma corrosiva e
comovente farsa sobre a filmagem de uma Paixão de Cristo.
O leitor não encontrará aqui
a aridez que costuma caracterizar a leitura de roteiros cinematográficos. Pasolini escreveu-os como peças essencialmente literárias, que se podem
ler como contos estendidos.
Faltou mencionar a língua do
submundo romano, falada pelos personagens. Uma língua
viva, plena de humor e sensualidade, que os tradutores procuraram preservar na versão
brasileira.
E uma última palavra sobre o
título: Alì de olhos azuis é um
jovem argelino que aparece no
poema "Profecia", de 1964, como símbolo dos imigrantes do
Terceiro Mundo que poderão,
num futuro utópico, tomar a
Europa para vingar as humilhações de seus antepassados e
instaurar uma nova civilização.
Quem sabe...
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