|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ autores
A língua florida
Surgido com a expulsão dos judeus da Espanha, em 1492, idioma ladino sobreviveu
no Império Otomano
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Segundo o mito bíblico,
quando os descendentes de Noé demonstraram sua soberba diante de Deus,
tentando construir a Torre de
Babel, receberam uma severa
punição. De uma língua comum, os diferentes grupos humanos passaram a falar cada
um uma língua própria, e, nessa multiplicidade, perdeu-se a
comunicação global uniforme.
O mito faz sentido como metáfora das dificuldades do entendimento entre os homens,
mas o castigo da multiplicação
de línguas -atrevo-me a dizer-, ao invés de castigo, se
tornou uma bênção, pois a diversidade lingüística é um dos
aspectos mais sedutores da experiência humana. A língua
sussurra afetos, exprime ódios,
cimenta identidades, como
bem sabem os brasileiros que
falam o português do Oiapoque
ao Chuí, como se dizia nos velhos manuais escolares.
Nem sempre porém, como se
sabe, os grupos humanos que
falam determinada língua são
membros de um Estado-nação.
É o caso do ladino, também
chamado de judezmo e judeu-espanhol. Sua história começa,
a rigor, com a expulsão dos judeus da Espanha, pelos reis católicos Fernando de Aragão e
Isabel de Castela, em 1492, no
mesmo ano em que Colombo
chegou à América.
Como se sabe, esse grupo,
que se tornaria conhecido como sefardita (de Sefarad, denominação da Espanha em hebraico), espalhou-se pelos Países Baixos e por toda a região
do Mediterrâneo, do norte da
África até a Turquia, em territórios abrangidos pelo Império
Otomano.
Os sultãos, em muitos aspectos retrógrados, deram aos sefarditas um tratamento melhor
do que tinham recebido em
qualquer império cristão da
Europa.
Ao longo dos séculos, os judeus, bem como outras etnias
-gregos e armênios, por exemplo-, formaram uma comunidade à parte, recebendo o estatuto de "dhimmi" (protegidos),
uma denominação que diz
muito, embora não diga tudo.
Sujeitos a uma tributação especial, ao uso de uma rodela de
cor amarela no peito e outros
sinais distintivos e outras formas de discriminação, os judeus do Império Otomano viveram, por vários séculos, uma
vida comparativamente tranqüila. Para isso, concorreu o fato de que, sobretudo nos primeiros tempos, muitos judeus
tinham habilidades especiais
não desprezíveis, pelo conhecimento de várias línguas e os
contatos com o mundo europeu, tornando-se assim um
instrumento útil para a política
exterior otomana.
Apesar da dramática expulsão, os sefarditas não borraram
de suas vidas a língua que falavam quando saíram da Espanha. Certamente, sua condição
de "dhimmi" e a inexistência,
portanto, de pressões para que
se integrassem plenamente como súditos do Império Otomano concorreram para que fosse
mantido como sua língua o espanhol que falavam ao serem
expulsos da Espanha.
Unidade na religião
O ladino representou um elemento de identidade dos grupos sefarditas, mas não dos judeus em geral, na medida em
que outros grupos, provenientes sobretudo da Europa Central, os ashkenazis, falam iídiche. A identidade judaica não
se fundou, pois, na língua, mas
na religião e no preconceito de
não-judeus, que deu origem,
contraditoriamente, tanto às
perseguições quanto a uma resistência física e cultural. Pelo
contrário, um certo estranhamento entre ashkenazis e sefarditas é clássico, e alguns traços permanecem até hoje.
O idioma ladino desdobrou-se em muitas variantes, de
acordo com a região ou país em
que se fixaram os emigrados da
Espanha. Há, assim, um ladino
que, a partir do espanhol falado
no século 15, combina-se com
palavras e expressões gregas,
búlgaras, árabes ou turcas, em
maior ou menor grau; afora o
hebraico, língua sagrada da
qual se trasladaram palavras ou
frases inteiras.
As variantes chegaram mesmo a constituir dialetos próprios, como é o caso do "raquitia", um compósito de espanhol, hebraico e árabe, falado
pelos judeus marroquinos,
muitos dos quais, aliás, chegaram à região amazônica, a partir de meados do século 19,
atraídos sobretudo pela expansão da borracha.
Não obstante essas variações, o tronco básico é o espanhol arcaico, que floresce nos
dias de hoje.
Além de inúmeros especialistas que estudam o ladino ou
tentam preservá-lo das ondas
da homogeneização cultural,
ele é falado em Israel, pelos
grupos de origem sefardita, e
nos países árabes, por umas
poucas famílias que aí restaram. No Brasil, vários grupos,
provenientes de uma primeira
geração, vinda da Turquia, do
Marrocos, do Egito etc., têm
tratado de manter a riqueza da
cultura sefardita, como se viu
por ocasião do Quarto Congresso da Cultura e Tradição
Sefaradi, realizado em novembro, em São Paulo.
Doce e melodioso
Melodioso e doce, o ladino
lembra o português. Veja-se,
como exemplo, o uso do sufixo
diminutivo "ico", correspondente ao nosso "inho" - ou ao
"ito" do português de Portugal,
utilizado amplamente como diminutivo. Assim, "hijico" (filhinho) ou "chiquitito" (pequenininho), "carrocica" (carrocinha) e por aí vai. Belo nas suas
inflexões e nos seus cantos, o
ladino ganhou um qualificativo
expressivo, ao ser chamado de
língua florida.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução
de 1930" (Companhia das Letras).
Texto Anterior: + cinema: Redenções de Pasolini Próximo Texto: Os 100 + - História por Ronaldo Vainfas Índice
|