São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2006

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A língua florida

Surgido com a expulsão dos judeus da Espanha, em 1492, idioma ladino sobreviveu no Império Otomano

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Segundo o mito bíblico, quando os descendentes de Noé demonstraram sua soberba diante de Deus, tentando construir a Torre de Babel, receberam uma severa punição. De uma língua comum, os diferentes grupos humanos passaram a falar cada um uma língua própria, e, nessa multiplicidade, perdeu-se a comunicação global uniforme.
O mito faz sentido como metáfora das dificuldades do entendimento entre os homens, mas o castigo da multiplicação de línguas -atrevo-me a dizer-, ao invés de castigo, se tornou uma bênção, pois a diversidade lingüística é um dos aspectos mais sedutores da experiência humana. A língua sussurra afetos, exprime ódios, cimenta identidades, como bem sabem os brasileiros que falam o português do Oiapoque ao Chuí, como se dizia nos velhos manuais escolares.
Nem sempre porém, como se sabe, os grupos humanos que falam determinada língua são membros de um Estado-nação.
É o caso do ladino, também chamado de judezmo e judeu-espanhol. Sua história começa, a rigor, com a expulsão dos judeus da Espanha, pelos reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela, em 1492, no mesmo ano em que Colombo chegou à América.
Como se sabe, esse grupo, que se tornaria conhecido como sefardita (de Sefarad, denominação da Espanha em hebraico), espalhou-se pelos Países Baixos e por toda a região do Mediterrâneo, do norte da África até a Turquia, em territórios abrangidos pelo Império Otomano.
Os sultãos, em muitos aspectos retrógrados, deram aos sefarditas um tratamento melhor do que tinham recebido em qualquer império cristão da Europa.
Ao longo dos séculos, os judeus, bem como outras etnias -gregos e armênios, por exemplo-, formaram uma comunidade à parte, recebendo o estatuto de "dhimmi" (protegidos), uma denominação que diz muito, embora não diga tudo.
Sujeitos a uma tributação especial, ao uso de uma rodela de cor amarela no peito e outros sinais distintivos e outras formas de discriminação, os judeus do Império Otomano viveram, por vários séculos, uma vida comparativamente tranqüila. Para isso, concorreu o fato de que, sobretudo nos primeiros tempos, muitos judeus tinham habilidades especiais não desprezíveis, pelo conhecimento de várias línguas e os contatos com o mundo europeu, tornando-se assim um instrumento útil para a política exterior otomana.
Apesar da dramática expulsão, os sefarditas não borraram de suas vidas a língua que falavam quando saíram da Espanha. Certamente, sua condição de "dhimmi" e a inexistência, portanto, de pressões para que se integrassem plenamente como súditos do Império Otomano concorreram para que fosse mantido como sua língua o espanhol que falavam ao serem expulsos da Espanha.

Unidade na religião
O ladino representou um elemento de identidade dos grupos sefarditas, mas não dos judeus em geral, na medida em que outros grupos, provenientes sobretudo da Europa Central, os ashkenazis, falam iídiche. A identidade judaica não se fundou, pois, na língua, mas na religião e no preconceito de não-judeus, que deu origem, contraditoriamente, tanto às perseguições quanto a uma resistência física e cultural. Pelo contrário, um certo estranhamento entre ashkenazis e sefarditas é clássico, e alguns traços permanecem até hoje. O idioma ladino desdobrou-se em muitas variantes, de acordo com a região ou país em que se fixaram os emigrados da Espanha. Há, assim, um ladino que, a partir do espanhol falado no século 15, combina-se com palavras e expressões gregas, búlgaras, árabes ou turcas, em maior ou menor grau; afora o hebraico, língua sagrada da qual se trasladaram palavras ou frases inteiras.
As variantes chegaram mesmo a constituir dialetos próprios, como é o caso do "raquitia", um compósito de espanhol, hebraico e árabe, falado pelos judeus marroquinos, muitos dos quais, aliás, chegaram à região amazônica, a partir de meados do século 19, atraídos sobretudo pela expansão da borracha. Não obstante essas variações, o tronco básico é o espanhol arcaico, que floresce nos dias de hoje.
Além de inúmeros especialistas que estudam o ladino ou tentam preservá-lo das ondas da homogeneização cultural, ele é falado em Israel, pelos grupos de origem sefardita, e nos países árabes, por umas poucas famílias que aí restaram. No Brasil, vários grupos, provenientes de uma primeira geração, vinda da Turquia, do Marrocos, do Egito etc., têm tratado de manter a riqueza da cultura sefardita, como se viu por ocasião do Quarto Congresso da Cultura e Tradição Sefaradi, realizado em novembro, em São Paulo.

Doce e melodioso
Melodioso e doce, o ladino lembra o português. Veja-se, como exemplo, o uso do sufixo diminutivo "ico", correspondente ao nosso "inho" - ou ao "ito" do português de Portugal, utilizado amplamente como diminutivo. Assim, "hijico" (filhinho) ou "chiquitito" (pequenininho), "carrocica" (carrocinha) e por aí vai. Belo nas suas inflexões e nos seus cantos, o ladino ganhou um qualificativo expressivo, ao ser chamado de língua florida.


BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras).

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