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+ brasil 504 d.C.
A intangível perdiz
Em sua primeira novela, Davi Arrigucci Jr. retoma aspectos de Bandeira, Drummond e Guimarães Rosa
Bento Prado Jr.
Quem abre "Ugolino e a Perdiz"
(Cosac & Naify), a novela de
Davi Arrigucci Jr., sabendo que
o autor é crítico e historiador
erudito da literatura, pode ser desencaminhado, de início, pela epígrafe com os
versos da "Divina Comédia" no pórtico
do livro. Há pelo menos dois Ugolinos
no grande poema, um no inferno e outro
no purgatório, mas é claro que é o infernal que habita a imaginação de Arrigucci. Mas evitemos o equívoco a que somos
convidados: Dante está presente, é claro,
no horizonte, mas de maneira muito indireta, que tira sua substância da passagem por São João da Boa Vista, no interior paulista, próxima de Minas Gerais, e
de uma prática da linguagem que tangencia a escrita de nossos maiores escritores, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa
e Carlos Drummond de Andrade. Como
esses autores, Arrigucci traz para a escrita o falar popular e sertanejo, guardando
seu frescor em seu novo e trabalhado enquadramento estilístico.
Comecemos por diferenciar os Ugolinos. O nosso já não tem muito do trágico
Ugolino della Gherardesca, do canto 33
do "Inferno", já nacionalizado por Manuel Bandeira, que o trouxera para nosso
Nordeste no poema "O Cacto", minuciosamente comentado por Davi Arrigucci
em "O Cacto e as Ruínas" (Duas Cidades/Ed. 34). Não falta nem sequer bonomia ao Ugolino de São João de Boa Vista,
longe das caatingas e da tragédia, circulando satisfeito com frequência por intrincados matagais. É, certo, personagem nada trivial: decorou versos de Dante, é artista na construção sofisticada de
seus vitrais (seu nome completo é Ugolino Michalangeli), é inventivo contador
de histórias, chega quase à condição de
"filósofo", "paradóxico" no rastrear o
significado das palavras. Mas é sobretudo caçador, condição inseparável da de
narrador interrogativo, já que "...para
ele, rastrear o significado de uma palavra
não deixava de ser um forma de caçar".
Recortes do mundo
Desde o início
percebemos que, a despeito do horizonte
geográfico e social bem definido, não estamos diante de uma narrativa realista, à
maneira do romance regionalista. O narrador adverte, já na primeira página, depois de traçar o perfil de Ugolino: "...e o
que conto, sem tirar nem pôr, são suas
exatas palavras. Infelizmente ele já não
vive e não pode confirmar a veracidade
desta história...". Sem que um olhar objetivante sobrevoe geografia e sociedade,
elas não deixam de aparecer das diversas
perspectivas dos personagens, implicadas nas maneiras pelas quais seus usos
da linguagem recortam diferentemente
o mundo. Mas nem por isso deixam de
brilhar às vezes, na narrativa, as chamas
do inferno dantesco, com o fulgor e a explosão dos tiros na caçada. Mais ainda,
algo como uma certa "cosmoteologia"
sertaneja (semelhante à "demonologia"
de "Grande Sertão: Veredas"), que remete tanto à "Divina Comédia" como à
"Máquina do Mundo", de Drummond.
Já sabemos que há uma ligação interna
entre caça e narrativa. O que temos de
descobrir é como uma fratura há de
romper a bela circularidade entre a caça
e sua narrativa. Mesmo antes da crise em
que se encerra a novela, já adivinhávamos o grão de angústia que habita o prazer da caça: "O caçador é o que ele caça
[...]. Com a caça, se acabava o caçador".
Mas sempre será possível narrar a caça
que ficou perdida no passado com seu
caçador e tão pálida quanto ele. Aí ainda
temos um presente vivo, mesmo que o
caçador esteja morto. Mas e se a caça for
inatingível? Estaremos condenados à pura literatura, fora da vida.
Tal parece ser um dos sentidos da novela. Com efeito, Joãozinho e Ugolino
conseguem, mediante discreta ameaça
ao fazendeiro Aquilino, permissão para
caçar em suas terras, depois da notícia de
que lá fora vista coisa tão rara nos últimos tempos, uma magnífica perdiz, não
uma perdiz dentre outras, mas, de algum
modo, A Perdiz. Com seu saber, Ugolino
elabora táticas sucessivas para caçá-la,
tendo como pano de fundo uma espécie
de topologia (não exatamente uma "geometria"), definida pelos termos da circunferência e de seu centro.
Com efeito, a astúcia da ave é a de se esconder, imóvel, dos caçadores que a cercam ou de voar numa órbita que transcende o raio dos tiros possíveis. Depois
de malograr em seu projeto de enganar a
perdiz, supostamente escondida e camuflada, imobilizando-se ele próprio no
centro do círculo, para aí surpreendê-la,
Ugolino concebe a suprema astúcia: cercá-la por todos os lados, como faz o polvo com suas presas. Quatro caçadores e
dois cães, "16 pernas e seis cabeças", um
polvo gigantesco dotado de 22 tentáculos, isso sim, seria uma arma infalível.
Mas é nesse momento que a topologia é
transformada radicalmente, para os
olhos atônitos, numa cosmologia em
que se invertem as posições da circunferência e de seu centro, como na visão
beatífica dos versos do "Paraíso" inscritos em epígrafe da novela.
O vôo da perdiz percorre um círculo
infinito, como na definição de Deus por
Nicolau de Cusa: aquele círculo infinito
que tem seu centro em todas as partes,
que não tem exterior e que, portanto, nenhum tiro, nem sequer nenhuma reta
pode tocar, tanger ou tangenciar. Lembremos: "E" si distende in circular figura,/ in tanto che la sua circunferenza/ sarebbe ao sol troppo larga cintura" ("Paraíso", 30, 103-106, "Era tão vasta a circular figura/ que ultrapassava na circunferência/ do próprio Sol a amplíssima cintura", trad. de Cristiano Martins). É "cabisbaixo" (como o caminhante de estradas pedregosas, de Drummond, de
"mãos pensas", após a visão metafísica
da "Máquina do Mundo"), que Ugolino,
depois de iluminado pela luz da intangível perdiz, que em seu vôo circunscreve o
mundo, abandona a caça e se resigna a
apenas contar histórias, à literatura.
Bento Prado Jr. é filósofo, professor de filosofia
na Universidade Federal de São Carlos (SP) e professor emérito da USP. É autor de, entre outros,
"Presença e Campo Transcendental" (Edusp). Ele
volta, neste mês, a escrever com regularidade na
seção Brasil 504 d.C. (depois de Cabral), do Mais!.
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