São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

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Jogo da vida

Divulgação
Tela do jogo "Everquest"


GAMES PROVOCAM O SURGIMENTO DE UM NOVO CAMPO DE ESTUDOS, INDICAM UM CAMINHO PARA CONVIVER COM A INTERNET E, NOS EUA, RIVALIZAM COM AS INDÚSTRIAS DE CINEMA E DE MÚSICA

por Hermano Vianna

Haruki Murakami, escritor japonês, explica assim as constantes referências à música pop em sua literatura: "Quando escrevo que o herói do meu romance escuta Radiohead ou Prince, você e eu sabemos do que falo, nós compartilhamos um sentimento, estabelecemos uma conexão". No seu livro "A Balada do Impossível", várias das cenas mais melancólicas são embaladas pelos Beatles, sobretudo por "Norwegian Wood". O fato de conhecermos essa e outras canções tão bem, de elas terem atuado como trilha sonora de momentos fundamentais de nossas vidas e de podermos cantá-las enquanto enfrentamos a leitura (para mim sempre vinha "Norwegian Wood" na versão de Milton Nascimento...), só contribui para aumentar a tristeza avassaladora daquele romance absolutamente oriental (apesar da enxurrada de símbolos ocidentais).
Com o fim da indústria fonográfica, profetizado por David Bowie para daqui a três ou quatro anos, e com a fragmentação radical do consumo musical planetário via internet, sem que nenhuma canção tenha mais capacidade de encantar todo o planeta ao mesmo tempo, fico me perguntando: o recurso "fácil" de Murakami tem futuro? O que poderá ocupar o lugar do pop, de um sucesso dos Beatles, criando signos para sentimentos compartilhados mundialmente? Grifes de moda? Marcas de eletrodomésticos? Um amigo me deu a resposta: as novas gerações não mais estabelecerão conexões emocionais com referências a bandas que todos escutaram nas suas infâncias ou adolescências, pois ninguém vai ter escutado as mesmas coisas; seus pontos de encontros imaginários serão fornecidos pelas paisagens dos videogames. No lugar de "Norwegian Wood", o escritor das próximas décadas vai ter que citar algo como "The Frozen Throne", a terceira expansão do game "Warcraft". Todo mundo saberá de que sentimento ele vai estar falando.
Um artigo recente do "Wall Street Journal" fortalece o argumento: "A indústria de videogame dos EUA é maior que a venda doméstica de ingressos para os filmes de Hollywood e está se aproximando das vendas de música", tendo acumulado US$ 27 bilhões em 2002. Mas os números não são os elementos mais importantes para avaliar a crescente influência dessa novíssima forma de entretenimento. Ao contrário da música, os jogos eletrônicos souberam encontrar rapidamente uma forma de lucrar com a popularização da internet. Um game on-line não é uma ameaça, mas sim um novo filão milionário -talvez a verdadeira vocação comercial- para essa indústria.
Participei, em Chicago, de um encontro de fãs de "Everquest", o game on-line mais popular do planeta, com cerca de 500 mil assinantes que pagam US$ 12 por mês para poder jogar com gente de todo o mundo, conectados -muitas vezes 300 mil ao mesmo tempo- via internet aos computadores-servidores da Sony Online Entertainment (SOE). Ali estavam todas as lições que salvariam a indústria fonográfica da bancarrota, se ela quisesse realmente entender a cabeça da garotada cibernética e suas novas comunidades de interesse, diversão e invenção.
A primeira lição é muito óbvia: os games on-line encontraram um antídoto muito eficiente contra a pirataria. Os CDs que instalam o game nos computadores dos jogadores podem ser pirateados à vontade, pois eles não funcionam sozinhos. Para participar do jogo é preciso se conectar ao servidor e só ali é possível encontrar os outros jogadores. Isso não se faz sem pagamento mensal. O que "Everquest" vende não é um produto que pode ser armazenado em casa ou num computador, mas um serviço, uma experiência em tempo real, compartilhada naquele momento com milhares de outras pessoas. É como a diferença de um disco de música para um show. O disco pode ser pirateado. Mas o que pode um pirata diante da experiência de estar num show, no momento mesmo em que acontece, mergulhado na viciadora e excitante maré de improbabilidade que cerca todo evento ao vivo? Poderia no máximo entrar de penetra, com ingressos falsificados. Mas isso é bem mais difícil e mais fácil de combater.
Para entender as outras lições é preciso entrar no universo do jogo. "Everquest", como tantos outros games on-line descendentes dos RPGs (portanto descendentes do imaginário do "Senhor dos Anéis"), é um mundo à parte, com sua própria mitologia, na verdade uma bricolagem de várias mitologias de procedências diversas. Quem joga "Everquest" vive no mundo de Norrath, que é dividido em três continentes, onde habitam 13 raças, entre elas os bárbaros, os ogros, os elfos e até os humanos. As diferentes raças têm diferentes classes ocupacionais: guerreiros, mágicos, druidas etc. Já é complexidade para sociedade nenhuma botar defeito.
Por US$ 12 mensais, cada jogador pode ter até oito personagens, ou avatares, em cada servidor que roda o software do mundo de "Everquest" (cada servidor contém seu mundo, e um jogador pode ter personagens diferentes nesses mundos paralelos). É possível então escolher a que raça ou classe queremos pertencer. É assim que os outros jogadores vão nos ver quando nos encontrarem perambulando por Norrath.
A atividade principal dos habitantes de "Everquest" é matar os mobs, criaturas geradas pelo computador que contêm dinheiro e outros itens importantes para o andamento do jogo em seus corpos. Ao matar os mobs, os jogadores mudam de nível (a palavra "level", em inglês mesmo, se tornou padrão entre brasileiros). Nos níveis mais elevados, só é possível matar os mobs por meio da união com outros jogadores. Portanto o mundo de "Everquest" foi desenhado, talvez como nosso mundo "real", para incentivar a interação social e a comunicação entre os vários participantes, que formam clãs e outros grupos políticos de tendências bem surpreendentes. Existe até um ativo clã gay intercontinental.
Uma pesquisa feita por psicólogos indica que os jogadores passam em média 21,9 horas por semana vivendo em Norrath. Se contarmos com oito horas de sono por dia, chegamos à conclusão de que esse pessoal passa 20% de seu tempo acordado num mundo virtual. Não é brincadeira!
Os designers do game inventam o mundo e suas regras. Mas a "realidade" criada é tão complexa que não podem prever o que os jogadores vão fazer ali dentro e que novas regras de convivência vão criar. O game é realmente uma obra aberta, uma criação coletiva de centenas de milhares de pessoas. Cada jogador produz novas personagens, lugares onde essas personagens vão morar, além de clãs e maneiras de fazer as coisas que não estão previstas nos manuais. É como se um ouvinte, ao comprar um disco de música, ganhasse o direito de recriar a música junto com outros compradores. A música original só seria um pretexto para novas invenções e novas amizades.
Quem lança o jogo não tem poder absoluto e participa do paradoxo do Deus católico: é dono do mundo, mas deu livre-arbítrio aos seus habitantes. Os jogadores encontram jeitinhos para burlar as regras divinas, cometendo vários tipos de pecado. A SOE, por exemplo, proíbe o comércio de bens dentro do "Everquest". Muita gente estava ganhando dinheiro vendendo personagens poderosos, habitações luxuosas ou mesmo o dinheiro do jogo em sites de leilão como o e-bay. Uma economia paralela, que movimenta somas equivalentes ao produto interno bruto de países reais e pobres, se formou em games como "Ultima Online", onde há taxas diárias de conversão da moeda do jogo para o dólar. Mas, mesmo com a proibição, todo mundo sabe que transações clandestinas e um submundo comercial florescem em Norrath.
Essa é outra lição para a indústria fonográfica (e para várias outras indústrias): como estabelecer um serviço que não trata o consumidor como entidade passiva, mas estabelece com ele uma relação de co-criação. É a participação ativa nos destinos do "produto" que gera a fidelidade de quem compra o serviço. Em Chicago pude participar de vários debates entre jogadores, os consumidores e os designers do game, os artistas, que anotavam avidamente as críticas ("como um druida, eu gostaria de ter tais e tais poderes"...), às novas expansões do jogo (uma expansão cria novos mundos no mundo de "Everquest"), prometendo que muitas delas seriam incorporadas nos próximos upgrades. Imaginei o que seria o equivalente para a música pop: uma banda, depois de lançar seu último disco, se reuniria com os fãs que criticariam o trabalho ("a música três ficaria melhor com guitarra, e não sintetizador"...), e as críticas seriam incorporadas nas próximas tiragens!
Além disso, não há uma fronteira rígida entre vendedores e consumidores, artistas e público, de uma maneira por vezes bem radical. Tive o prazer de entrevistar Shawn Lord, o "lead designer" (artista-chefe) das últimas expansões do "Everquest": 28 anos; até os 23 morava no Alabama e era apenas um jogador, além de leitor de Clive Barker e fã de rock gótico.
Num encontro como o de Chicago ele conheceu o pessoal que trabalhava no desenvolvimento do game, conseguiu um emprego no "consumer services" da SOE e subiu meteoricamente na hierarquia de Norrath, sendo hoje uma espécie de deus que pode ter a palavra final sobre o que vai ser aquele mundo (isso mostra como esses novos espaços de trabalho estão abertos e como um governo como o brasileiro perde tempo em não incentivar sua juventude a dominar as ferramentas de criação de games para produzir o futuro dessa forma poderosa de arte, cultura e entretenimento): "Eu não me sinto poderoso. Eu me sinto privilegiado. É mais surreal do que qualquer outra coisa a idéia de que eu estava jogando esse game quatro anos atrás e agora estou trabalhando nele, tomando as decisões. É um desafio. Muitas vezes eu me pego pensando: "Uau, por que me permitem fazer isso?'".
Comparei seu trabalho ao de uma superestrela do rock, que brinca com a mente e os desejos de milhares de pessoas no mundo inteiro. "Provavelmente você vai se tornar ou já é mais influente do que Mick Jagger ou Ozzy Osbourne", brinquei... Shawn retrucou, tornando explícita a ideologia dos produtores: "Eu brinco com as pessoas, nós jogamos com as pessoas. Honestamente eu acredito que os jogadores influenciam o jogo, tanto quanto nós o influenciamos. Se as pessoas estão jogando de um jeito, temos que aprender com isso. Nosso trabalho é tornar mais divertido aquele jeito inventado pela comunidade do jogo".
Nos debates com os jogadores, essa ideologia era repetida o tempo todo. "Feedback" era a palavra mais ouvida. Tudo era tratado como se fosse política. Algumas críticas eram respondidas com um texto padrão: "Se isso se tornar um solicitação coletiva, nós mudaremos o jogo". Humildes, os designers e programadores diziam: "Nosso principal trabalho é prover para vocês um serviço estável" (e é mesmo: os servidores da SOE não podem dar pau quando as centenas de milhares de jogadores estiverem conectados ao mesmo tempo, no melhor momento do jogo). Shawn não se acha um gênio: "Sou apenas um artista comercial". Não sei se concordo com ele. Acho que é um novo tipo de artista, maestro de comunidades virtuais. Como ele próprio diz: "Isso tudo é muito novo".
Tão novo que só agora uma outra comunidade se forma para estudar -com uma peculiar mistura de teorias antropológicas, psicológicas, literárias, linguísticas etc.- o que está acontecendo. O campo de pesquisas já foi batizado de "game studies" e nasce já cindido numa briga teórica que ainda vai dar o que falar: a disputa entre os narratologistas, mais americanos, e os ludologistas, mais europeus. Resumindo cruelmente um debate muito rico e interessante: os narratologistas recheiam suas análises com citações de formalistas russos e da poética aristotélica, pensando o game como obra literária, texto, ou como se fosse filme editado coletivamente. Os ludologistas, discípulos de Roger Caillois ou Johan Huizinga, pensam que os jogos têm especificidades muito próprias -o próprio jogar, como conjunto sempre aberto de possibilidades- e que tratá-los como mera narrativa é perder o essencial.

Acadêmicos
Um bom site para entender a polêmica é o www.ludology.org, montado pelo ludologista uruguaio -uma das maiores estrelas dos "game studies"- Gonzalo Frasca. Outro site básico é o da revista "Computer Game Studies" (www.gamestudies.org), a primeira do campo com revisão de pares e tudo mais que a seriedade acadêmica exige. O primeiro número foi lançado em 2001, ano também da primeira conferência sobre o assunto, realizada em Copenhague -por algum motivo estranho, há um grande número de nórdicos entre os estudiosos de game.
Espen Aarseth, "editor-in-chief" da "Computer Game Studies", comprou briga na apresentação do primeiro número, ao escrever que os jogos eletrônicos podem ser "a maior inovação na estrutura do público desde a invenção do coral, há milhares de anos". Sem assinar embaixo, e sem mesmo tomar o partido dos ludologistas (mas vou logo confessando minha simpatia por seus argumentos), não podemos deixar de perceber que alguma mudança séria está acontecendo na maneira como a indústria do entretenimento está organizada e vai passar a funcionar daqui por diante, e essa mudança tem raiz na maneira como o público toma poder também na criação daquilo que vai consumir.
Mas o que me interessa mesmo nesses mundos virtuais todos é essa possibilidade, que os jogadores de "Everquest" e outros games on-line exploram todos os dias, de viver várias vidas ao mesmo tempo, como se nossa vida "real" não bastasse ou fosse muito pequena diante da capacidade de imaginação e interação social aberta que temos em nossa curiosa natureza humana. Os jogos eletrônicos radicalizam desejos de múltiplas personalidades que outras artes alimentavam com dificuldade (ler Haruki Murakami é também a maneira que encontro para ser japonês por um tempo, porque acho muito limitador ser só brasileiro...). Penso que é isso que a garotada está testando, passando tantas horas vivendo várias vidas nos mundos criados dentro da internet. Não é escapismo. É outra coisa. É uma maneira de escapar do escapismo do "real" (da "Matrix")?
E não vejo como poderia ser diferente. Os garotos estão sozinhos nesses novos mundos, que os adultos não entendem, ou ignoram ou desprezam com uma arrogância de quem ainda finge saber das coisas e estar no controle. Como já disse John Katz, num texto bem raivoso: "Tudo que eles [os adultos] têm para oferecer são sistemas educacionais tediosos ou ultrapassados, estruturas políticas que não mais funcionam e formas exauridas de uma "cultura" murcha, sacrossanta e onerosamente subsidiada". Exagero? O adulto que tiver algo diferente disso para oferecer que atire a primeira pedra. Ou fique calado, deixando a meninada jogar e aprender o que deve aprender, o que inventou que deve aprender. Pois diversão também cria nova cultura. Seja lá o que ela for.

Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O Mundo Funk Carioca" e "O Mistério do Samba" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C.", do Mais!.


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