|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
Em "Bem-Vindo ao Deserto do Real!", Slavoj Zizek discute as transformações
ideológicas ocorridas nos EUA e na Europa depois do 11 de Setembro
Os excessos do imaginário
Maria Rita Kehl
especial para a Folha
Logo na introdução aos cinco ensaios que compõem este livro, Slavoj Zizek adverte o leitor: ao contrário do que rezam os pressupostos liberais, a liberdade de pensamento não é
o fundamento da liberdade política. Talvez ocorra aos leitores brasileiros a frase
que encabeçava a coluna dos aforismos
de nosso grande filósofo Millôr Fernandes: "Livre pensar é só pensar". Para Zizek, esse "só pensar" de que nos ocupamos na sociedade pós-moderna -criticando, questionando, desconstruindo as
convicções que sustentam estratégias do
poder- pode ser condição não de nossa
liberdade, mas de nossa servidão.
A falta de referências dogmáticas, a falta de um mestre inquestionável a quem
enfrentar, a doce indiferença com que a
cultura pós-moderna acolhe toda contestação, fazem do livre pensamento
uma atividade intelectual ociosa e agradável, mas inútil. "O único modo de assegurar a servidão social é através da liberdade de pensamento", escreve o filósofo esloveno que compreende -com
Chesterton, mais do que com Kant-
que o engajamento subjetivo é o modo
mais eficiente de fazer com que as pessoas colaborem com sua própria dominação.
Assim, inauguramos a leitura de
"Bem-Vindo ao Deserto do Real!", questionando a validade da própria empreitada; se o livro de Slavoj Zizek convoca o
leitor a pensar, questionar e desconstruir
suas idéias e convicções, isso não lhe garante nenhum acréscimo de liberdade
para intervir na esfera pública, na estrutura dos poderes que, esses sim, determinam de fato até os limites da vida mais
privatizada. O que o pensamento de Zizek critica é a própria noção de liberdade
privada, tão cara à vida "civilizada" contemporânea em oposição à qual ele vai
resgatar o sentido forte da ação política.
A reclusão à esfera da intimidade, hoje,
é toda ela preenchida por "fórmulas de
autenticidade privada propagadas pela
indústria cultural", cuja expressão mais
recente são as "confissões públicas de segredos íntimos nos shows de televisão".
Contra a generalização desse eficiente
dispositivo de alienação, Zizek não se
constrange em propor que "hoje, a única
forma de romper com as restrições da
mercadização alienada é inventar uma
nova coletividade" (pág. 105).
Cinema e TV
Os analisadores da
"mercadização alienada" utilizados pelo
autor neste livro, como em todas as suas
obras, são os produtos da indústria cultural no sentido adorniano do termo.
São notícias de jornal, programas de televisão, peças de publicidade e principalmente o cinema, representado pela produção hollywoodiana recente. A frase
que dá título ao livro, por exemplo, é tomada do filme "Matrix", dos irmãos Wachowski. Lembra a passagem em que os
protagonista desperta da realidade virtual controlada pela matriz.
Ao se confrontar com o "deserto do
real", a reação dele não é de libertação,
mas de horror. Esse é o paradigma da sedução operada pela ideologia: ela nos faz
desejar a dominação e repudiar o alto
preço cobrado pela liberdade. Ninguém
melhor do que Zizek, um filósofo que leu
e compreendeu Lacan à luz de Hegel, para nos confrontar com os significantes
mestres da ideologia que impregnam
nosso modo de vida nos menores detalhes, de modo a tornar a alienação mais
fascinante que a liberdade.
Nos cinco ensaios que compõem este
livro de 2002, editado recentemente no
Brasil pela editora Boitempo, Slavoj Zizek analisa as transformações ideológicas que se produziram na Europa e nos
Estados Unidos depois dos atentados de
11 de setembro de 2001, sem dissociá-las
do panorama psicossocial que produziu
as condições do próprio atentado. O
mundo contemporâneo estaria mergulhado na "paixão pelo real" (expressão
tomada do filósofo francês Alain Badiou), da qual o terror fundamentalista é
apenas a expressão mais espetacular. O
real é o elemento traumático que resiste a
ser integrado simbolicamente na vida
social e/ou na realidade psíquica. A impossibilidade de integração compele à
repetição, como no caso dos pesadelos
recorrentes que levaram Freud a indagar: se o sonho é realização de desejos,
por que queremos repetir, no pesadelo, a
experiência do horror?
Só que paixão pelo real não é o avesso
da ideologia: é a força propulsora das
formações imaginárias que recobrem todos os aspectos da vida que não podemos compreender. É precisamente do
imaginário que se alimenta a ideologia.
Aliada a todas as formas de gozo, tal paixão gera o impulso cego que nos precipita, em ato, a intervir diretamente sobre o
real, nos casos em que todo o campo
simbólico parece estar tão perfeitamente
recoberto pelo imaginário que nenhuma
mudança substancial parece possível.
Sacrifício
O suicídio de Antígona e o
atentado que destruiu as torres gêmeas
do WTC em 2001 possuem essa característica em comum: são intervenções diretas sobre o real -que trazem à tona
sua face extrema, a morte- que não alteram as condições simbólicas originárias, mas, ao contrário, contribuem para
reforçá-las. A morte sacrificial de Antígona confirma a lei patriarcal imposta
por Creonte, assim como a queda das
torres fez por reafirmar a potência do
império que o ato terrorista quis desafiar.
Esse é o paradoxo da paixão pelo real:
ela é alimentada pelas formações do imaginário, que no caso contemporâneo são
produzidas na escala superindustrial do
espetáculo globalizado. Se a demolição
das torres gêmeas foi uma intervenção
direta sobre o real, isso não impediu sua
imediata tradução nos termos do imaginário das produções cinematográficas
que formatam o mundo mental do cidadão norte-americano. Expressões como
"a guerra do bem contra o mal", utilizadas pelo próprio presidente George W.
Bush para mobilizar o mundo a favor de
sua "guerra contra o terror", são evidências disso. A idéia de um "bem" absoluto
só se sustenta em termos imaginários,
indissociável da crença em um "mal" absoluto do qual ela é o oposto complementar. "O que um homem mau odeia
não é o bem", escreve Zizek, lembrando
Novalis: "Ele odeia excessivamente o
mal" (pág. 164).
O texto de Zizek revela o esforço permanente do autor em subverter a cena
imaginária na qual nosso pensamento é
capturado e oferecer possibilidades alternativas de interpretação dos fatos. Só
no campo simbólico tal mobilidade é
possível. A própria lei simbólica deve ser
reconsiderada, não como uma determinação sobre-humana e intransponível,
mas como "um conjunto de arranjos sociais contingentes abertos à mudança"
(pág. 120). É a simbolização da lei que
mantém aberto o espaço para o ato.
Risco radical
Isso porque, para Zizek, o ato capaz de produzir diferença
significativa nas condições do poder é
aquele que incide sim sobre o real, mas
aposta na possibilidade de ressimbolização, produzida "après coup", por efeito
do próprio ato. Um ato, escreve ele, sempre envolve um risco radical: se é sempre
situado em um contexto concreto, isso
não significa que esteja inteiramente determinado por esse contexto. "Um ato
altera retroativamente as próprias coordenadas em que interfere. Essa falta de
garantias é o que os críticos (da noção de
ato) não podem suportar: eles querem
um ato sem riscos" (pág. 175).
Nas páginas finais do livro, o autor
abre espaço para uma discussão tão delicada quanto atual para o leitor brasileiro:
será que, nas democracias representativas modernas, sustentadas por lobbies
de interesses e atreladas ao capital globalizado, existe espaço para um ato transformador? O conceito leninista de revolução é aventado por ele, que encaminha
o último ensaio do livro até esse ponto
extremo sem nos oferecer o lenitivo de
uma conclusão.
Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora
de "Sobre Ética e Psicanálise" (Companhia das Letras), entre outros.
Bem-Vindo ao Deserto do Real!
192 págs., R$ 27
de Slavoj Zizek. Trad. Paulo Cezar Castanheira.
Editora Boitempo (rua Euclides de Andrade, 27,
SP, CEP 05030-030, tel. 0/xx/ 11/ 3875-7285).
Texto Anterior: + comportamento: Eu, eu mesmo e eu também Próximo Texto: Mosaico de memórias Índice
|