São Paulo, domingo, 18 de março de 2007

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Fim de partida

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Em fins de janeiro passado, enquanto passeava por Viena, uma apoplexia cerebral prostrou uma das principais cabeças da Alemanha do pós-guerra. Inconsciente, transportado para um hospital de Konstanz, onde residia, morreu, em 24 de janeiro, Wolfgang Iser. Pessoalmente, a perda é de um amigo e de um mestre.
Poucas tarefas são para mim mais dolorosas do que escrever seu necrológio.
Nascido em 1926 e não residente em Berlim, Iser contou com a sorte para não ser recrutado pelo nazismo entre seus últimos combatentes.

Esforço de renovação
Em troca, sua carreira universitária fora retardada. "Habilitado" (não há correspondente em português para o "habilitiert") pela Universidade de Heidelberg, em 1957, começou a lá ensinar em 1960, transferindo-se para a Universidade de Colônia, em 1963, e se integrando ao corpo docente que formaria a Universidade de Konstanz, em 1967.
Fruto do esforço de renovação das ciências humanas naquele pós-guerra, incentivado pela própria revolta estudantil, a Universidade de Konstanz, junto com a de Bielefeld, logo se tornou um centro de referência ocidental.
Entre seus professores estavam nomes como os de Hans Robert Jauss, Manfred Fuhrmann, Wolfgang Preisendanz, Wolf-Dieter Stempel e Jurij Striedter.
A esses se acrescentariam os daqueles que constituiriam o grupo "Poetik und Hermeneutik" [Poética e Hermenêutica], que se reunia desde 1963.
A cada um de seus simpósios correspondia a publicação de um grosso volume, formando, afinal, uma coleção de 17 tomos (o último, "Contingência", apareceu em 1998).
O nome de Wolfgang Iser começou a transpor fronteiras com o ensaio "A Estrutura Apelativa do Texto", de 1970. É ele o texto inaugural do que viria a ser chamado de "estética do efeito", menos difundida, porém de raízes mais profundas, do que a "estética da recepção", desenvolvida por H.R. Jauss.

Antropologia da literatura
Não seria aqui possível referir sua bibliografia. Destaco apenas uma mínima porção, a partir de seus livros acessíveis em português [leia texto ao lado].
Em 1996, por iniciativa da insubstituível Dirce Côrtes Riedel, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro ainda patrocinaria um simpósio sobre sua obra: "Teoria da Ficção - Indagações sobre a Obra de Wolfgang Iser". Como se verifica pelo subtítulo de "O Fictício e o Imaginário", "Perspectivas de uma Antropologia Literária", Iser cada vez mais se inclinava por uma indagação antropológica -no sentido filosófico do termo- da literatura.
Enquanto a perspectiva norte-americana difundia uma visão político-sociológica, em que a literatura entra, muitas vezes, como Pilatos no credo, a Iser importava a que fundamentos no ser humano correspondia a demanda pelo ficcional.
A literatura é o ramo principal, não o exclusivo, de um território bem mais amplo. Se ela desaparecer, com ela não se dissipa a atração pelo ficcional.
Por isso mesmo sua paixão pela literatura se desdobrava em paixão pela interpretação.
Daí, na série de conferências qu e pronunciaria em Irvine, na Universidade da Califórnia, em 1994, reunida em "The Range of Interpretation" [O Alcance da Interpretação], ao lado da abordagem de Shakespeare do Dr. Johnson [1709-84], aparecem os textos sobre um raro teórico da história da Alemanha do século 19, Johann Gustav Droysen, e sobre a estranha figura do místico Franz Rosenzweig, que, depois de escrever o memorável "Hegel und der Staat" [Hegel e o Estado], abandonara a carreira universitária para relacionar, em "Der Stern der Erlösung" [A Estrela da Redenção, de 1921], a filosofia com a religião judaica.
Neste último, interessava a Iser a própria extensão que a interpretação é passível de assumir, desde um texto literário até sua frente religiosa. Não que ele próprio fosse religioso, senão que soubesse que a religião não importa apenas aos que crêem.

Outras culturas
Foi a mesma ênfase no fenômeno da interpretação que o levara a editar, em 1996, junto com seu colega Stan Buddick, "A Tradutibilidade das culturas - Figurações do Espaço Intermediário". Talvez não seja presunção supor que seu interesse por nós estivesse associado ao mesmo gesto de se pôr em contato com outra cultura, para, a partir dela, aprender a refletir sobre o que ainda não houvesse feito.
Guardo o e-mail que me escreveu antes de viajar para Viena: dizia-me de sua alegria em haver recebido o convite de Flora Süssekind para dar um seminário na Casa de Rui Barbosa.
E como, ao comunicar-me sua morte, me recorda Wolf-Dieter Stempel -o amigo que, durante a ditadura, quando todos os caminhos estavam para mim fechados, me permitiu o acesso a Konstanz-, sua permanente paixão pela vida intelectual provinha de sua paixão pela própria vida. Ao menos nisso podemos escapar das sombras criadas por sua morte: Iser transgredia a visão eurocêntrica, que permanece entre seus colegas de geração.
Via-nos, ao contrário, como parceiros em sua paixão.
Um dos raros encantos do mundo é que suas leis não conseguem ser gerais.
Professor reconhecido, membro permanente de centros de estudos avançados na Holanda, na Inglaterra, nos EUA, em Jerusalém, Iser não deixava de aceitar o convite que os trópicos lhe faziam.
Toda perda é irrecuperável. Mas a de Iser é diferente.


LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor da Universidade do Estado do RJ e da Pontifícia Universidade Católica (RJ). É autor de "História, Ficção, Literatura" (Companhia das Letras).


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