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BRASIL 500 D.C.
Na cerimônia do Oscar, as províncias mundiais dos EUA buscam o seu reconhecimento
O espetáculo do império
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
especial para a Folha
A cerimônia anual de entrega
dos prêmios da Academy of Motion Picture Arts and Sciences é o
império do espetáculo. Tudo é
cuidadosamente planejado, ensaiado, calculado, anunciado e divulgado. No cenário luxuoso, em
atmosfera de brilho e glamour,
movem-se atrizes, atores, diretores e produtores, astros do firmamento hollywoodiano. E o meganegócio do cinema no ponto alto
de seu ritual de autopromoção.
Olhava um tanto enfastiado (no
fundo, só me interessava saber se
Fernanda Montenegro iria ser premiada) o conhecido ritual de astros e estrelas subindo ao palco
para receber os prêmios e agradecer com as piadinhas de praxe,
quando algo inusitado me chamou a atenção. Apareceu no palco
para apresentar os filmes candidatos ao prêmio um senador do Partido Democrata, John Glenn Jr.
"Um político no espetáculo?",
me perguntei. Logo vi que não.
John Glenn Jr. não estava ali como senador, mas como famoso
astronauta, que acabara de voltar
ao espaço já sexagenário. Ele estava ali como herói norte-americano
e foi em louvor ao heroísmo norte-americano que falou aos astros
e estrelas. "Um herói norte-americano no espetáculo?", me perguntei de novo. Ainda não passara
a surpresa quando outra maior,
quase chocante, surgiu no palco.
O presidente da academia, Jack
Valenti, apresentou ninguém menos do que o general Colin Powell,
ex-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas norte-americanas,
nosso conhecido (no Brasil) desde
a Guerra do Golfo. Dois dos filmes
que concorriam ao prêmio tinham
por tema a Segunda Guerra Mundial. Referindo-se ao conflito, o
general exaltou o patriotismo que
então levou a juventude norte-americana a correr em defesa da
pátria e dos valores que a sustentam.
O que estavam fazendo ali, no
meio das luzes do espetáculo, um
herói astronauta e um general vitorioso? Havia mais do que espetáculo naquele espetáculo. No mínimo, havia mais do que cinema.
Havia política. A cerimônia tornou-se então mais interessante.
Passei a examiná-la sob o novo registro.
Com os novos óculos, a surpresa
reduziu-se. Homenagear um herói
norte-americano, o único vivo, fazia todo o sentido num momento
em que a figura que deveria, pela
lógica do sistema, encarnar as virtudes nacionais, servir de modelo
à juventude, perdera todo o respeito da população (embora não
necessariamente o apoio político)
ao longo do desgastante processo
de impeachment. A academia
preenchia o vácuo de liderança
moral aberto pelo comportamento desastrado do presidente da República com a exaltação de um herói construído fora da política.
A presença do general era ainda
mais significativa. No momento
histórico em que os Estados Unidos assumem o papel imperial, ela
vinha afirmar, para fora, a supremacia de seus valores políticos, ao
mesmo tempo em que buscava
soldar uma das principais fissuras
que ameaçam internamente a integridade do Império, a fissura étnica. O general Powell, como se
sabe, é um negro, um afro-americano, como se deve dizer aqui.
Mais ainda, é o negro, o afro-americano que pela primeira vez atingiu o mais alto posto na hierarquia
das Forças Armadas. Exibindo-o,
a academia mostrava, urbi et orbi,
um Império unido e sólido, pronto para exercer o papel de liderança mundial.
O império do espetáculo transmutava-se em espetáculo do Império, encenado no novo coliseu.
A academia fazia mais do que distribuir prêmios, ela se engajava na
promoção do exercício do novo
papel dos Estados Unidos no
mundo pós-Guerra Fria. E o fazia
de posição privilegiada, pois seu
espetáculo é visto por milhões de
espectadores em todos os domínios do Império e mesmo além.
Mais do que falar e persuadir, o
espetáculo da academia também
coopta, ao admitir entre os concorrentes aos prêmios representantes oriundos das províncias do
Império, desde as mais próximas
até as mais distantes.
A apresentadora, Whoopi Goldberg, também negra, ou afro-americana, deixou claro esse ponto, ao
convidar os estrangeiros a inscreverem seus filmes, como o fez
"that lady from Japan", uma que
ganhou prêmio de documentário.
Eles serão vistos, ela garantiu, e serão premiados na medida de seu
mérito. Os representantes das províncias, por seu lado, consideram
glória suprema receber o reconhecimento do Império. Vi, quase
constrangido, a incontida alegria e
o deslumbramento com que o diretor e ator italiano (Roberto Benigni) agradeceu sua premiação.
Foi melancólico ver um representante da Itália, país que já foi
um dos principais produtores de
cinema de qualidade, desmanchar-se em agradecimentos pelo
prêmio que lhe davam. Para províncias menos importantes, como
a nossa, a luta pelo reconhecimento é mais árdua. Em contrapartida,
é ainda maior a ânsia com que o
prêmio é buscado, como se dele
dependessem a honra e a glória
nacionais. Tal busca de reconhecimento pelas províncias era a melhor prova da capacidade do Império em legitimar sua supremacia.
Excesso de imaginação de minha
parte? Lembrem-se do filme "Independence Day", talvez a mais
completa, e bem-feita, defesa da
ideologia do novo Império. Para
os que não o viram, o tema é uma
invasão de extraterrestres, que tiveram o mau gosto de chegar à
Terra exatamente no Quatro de
Julho. Os Estados Unidos têm que
suspender sua festa de Independência para liderar a reação mundial contra os brutais invasores.
Dois cidadãos norte-americanos,
um negro, quer dizer, um afro-americano, e um judeu (só faltou
uma mulher), se oferecem para
missão quase suicida contra o poderoso inimigo. O presidente do
país (no filme, ele é um herói)
também se voluntaria para combater ao lado dos soldados. Após a
vitória, ele faz um discurso afirmando que o Quatro de Julho deixara de ser a data da Independência norte-americana e passa a ser a
da libertação de toda a humanidade. Os Estados Unidos subsumiam
o mundo, inaugurava-se o Império.
José Murilo de Carvalho é professor do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou recentemente "Pontos
e Bordados" (Ed. da UFMG).
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