São Paulo, Domingo, 18 de Abril de 1999
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Há cem anos, em 23 de abril de 1899, nascia em São Petersburgo um dos principais escritores do século, Vladimir Nabokov, autor de "Lolita", obra que é analisada pelo escritor e crítico Silviano Santiago
O pequeno demônio de Nabokov

Foto do Patrimônio Vladimir Nabokov
O escritor russo Vladimir Nabokov (1899-1977)


SILVIANO SANTIAGO
especial para a Folha

Na sua edição de 20 de março do corrente ano, um jornal carioca narrou as aventuras de um homem de 58 anos, aposentado, que, depois de namorar por cerca de cinco meses uma menina de 10 anos de idade, passou a "viver como marido e mulher" com ela. Na matéria "Uma união polêmica em Macaé" se diz também que "ele tinha idade para ser avô da menor". Depois de ter sido estuprada por um doente mental, a menina tinha abandonado a casa da mãe e passado a frequentar a casa do aposentado. A comunidade do bairro se sentiu chocada com o caso e tomou a iniciativa de denunciá-lo ao Conselho da Infância e da Adolescência da cidade. Como se esperava, "o caso foi levado à 123ª DP e o aposentado foi preso sob a acusação de estupro -apesar de a menina confessar ter ido morar com ele por vontade própria".
No depoimento prestado na delegacia, o aposentado afirma que a menina vinha diariamente à sua casa, pedindo dinheiro para comprar doces. Em troca dos R$ 2 que recebia a cada visita, "oferecia o corpo para agradecer a doação". O depoimento do denunciado não pára aí. Confessou ainda que o amor dos dois foi crescendo aos poucos. Só depois de muito tempo é que levou a menina para morar na sua casa a fim de "protegê-la" e matriculá-la "na escola". Terminou o depoimento de maneira temerária: "Fizemos um pacto: só vamos nos separar com a morte".
Concluído o inquérito, o delegado julgou por bem "avaliar a sanidade mental" do quase-avô que, "após ter trabalhado por mais de 20 anos como estofador", se aposentara. Tinha recebido a aposentadoria em 90, por invalidez e problemas mentais. Durante as crises, era internado em "manicômios e hospitais do interior".
Temos acima um resumo duplamente empobrecido da intriga principal do romance "Lolita", de Vladimir Nabokov, publicado em 1955, e agora reimpresso pela Companhia das Letras, em tradução de Jorio Dauster (aliás, o romance utiliza recurso retórico de apresentação semelhante ao nosso, pois diz dar voz -apesar de algumas mudanças de palavras aqui e ali, para evitar que os leitores reconheçam pessoas e lugares reais- a reportagens que foram publicadas nos jornais norte-americanos de setembro e outubro de 1952). O aposentado fluminense cometeu o crime de enamorar-se de e transar com uma "ninfeta", para usar o termo (se não me engano) criado pelo romancista russo e hoje registrado pelo "Aurélio". Não foi ele o responsável pelo estupro. Outro tinha abusado dela antes. Seduzido pela menina, o aposentado tornou-se não só o seu protetor, passando-lhe mesadas diárias para satisfazer os pequenos caprichos, como também transformou-se no responsável pela sua educação. Na falta dos verdadeiros, ele mistura as funções de pai e mãe, acrescidas das de marido.
Tão grande é o amor nascido entre os dois que o estofador se transformou em mumificador. Acredita que está experimentando algo com a menina que vai merecer a imortalidade. Caso não fosse matéria de jornal, o repórter poderia ter acrescentado que o estofador, ao final do depoimento na delegacia -repetindo o procedimento usado por Nabokov e pelos autores pós-modernos-, teria pedido de empréstimo e assumido como suas as últimas quatro linhas do romance: "Estou pensando em bisões extintos e anjos, no mistério dos pigmentos duradouros, nos sonetos proféticos, no refúgio da arte. Porque essa é a única imortalidade que você e eu podemos partilhar, minha Lolita". Numa espécie de alerta à crença dos psiquiatras e à justiça dos homens, o narrador do romance não deixa por menos: "Eu seria um hipócrita se dissesse -e o leitor tolo acreditasse- que o choque de perder Lolita me havia curado da pedofilia".
Se o aposentado tramou com a menina um redentor pacto de morte, o personagem de Nabokov foi menos feliz. Abandonado por Lolita, descobre-a pobre e grávida ao lado de um zé-ninguém. Exige que ela lhe diga o nome do inescrupuloso ladrão de ninfetas. Clare Quilty, ela confessa. Humbert sai à caça do melífluo dramaturgo e o assassina. Por esse crime é que irá para a cadeia. Na fuga, cruza o carro para a faixa esquerda da estrada e, ironicamente, reflete: "Tendo violado todas as leis humanas, bem poderia também transgredir as regras de trânsito".
À semelhança da pudica notícia de jornal, o texto de "Lolita" pode escandalizar -e como escandalizou nos anos 50!- os leitores tementes da lei e guardiões dos bons costumes, não pelos palavrões de que o narrador se vale (ou poderia valer-se) para contar a estória, mas pela própria trama monstruosa que a narrativa engendra. Eis aí um primeiro paradoxo. Numa espécie de introdução ao romance, um pseudoprefaciador, doutor em filosofia, salvaguarda o narrador: "A verdade é que a obra não abriga um único termo obsceno; de fato, o impávido filisteu, condicionado pelas convenções modernas a aceitar sem repugnância nos romances mais banais uma ampla exibição de palavras chulas, ficará chocado com sua ausência nesta obra".
Paradoxalmente, o choque a ser causado no leitor devoto pelo romance é consequência da ausência de palavrões, e não do excesso deles. O choque -sorri Nabokov- já está instalado, a priori, na cabeça medíocre dos filisteus, cabeça feita pela má literatura do tempo. Como se escandalizar com tal trama ficcional -pergunta o romance na trilha dos autores naturalistas de cento e tantos anos atrás- se "ao menos 12% dos adultos americanos do sexo masculino" desfrutam dos prazeres vivenciados tanto pelo professor Humbert Humbert e o dramaturgo Clare Quilty, personagens de Nabokov, como pelo velho estofador fluminense?
As semelhanças entre o caso policial fluminense e o romance terminam no momento em que o "pedófilo" não é apresentado apenas como personagem, é também o narrador da própria história. Trata-se de "um memorialista muito consciencioso", ele próprio adverte ao leitor. Nesse sentido, o romance se aparentaria mais ao texto do depoimento do estofador fluminense (de que conhecemos apenas trechos pelo jornal) do que ao do repórter que redigiu a notícia. A narrativa em primeira pessoa (o eu desdobrado, ação e auto-reflexão simultâneas) é que explode os limites das convenções naturalista e sociais.
"Lolita" aparenta-se mais a narrativas literárias como o "Dom Casmurro", de Machado de Assis, se se pensa no jogo entre as estripulias inocentes de Bentinho e as perfídias do velho advogado em que se transformou. "Dom Casmurro" e "Lolita" são verdadeiras peças de autodefesa, a segunda bem mais óbvia do que a primeira. Assim como no romance de Machado, um dos Humbert, enquanto narra a estória do outro Humbert, o personagem, nomeia constante e ironicamente os seus interlocutores.
Os interlocutores do narrador de "Lolita" são, antes de mais nada, "os senhores membros do júri". Ou, então, mais ao final do romance, "o veterano repórter policial", "o velho e solene oficial de Justiça", "o guarda querido de todos na saída da escola". A eles implora tolerância e indulgência: "Senhoras e senhores membros do júri, quase todos os pervertidos sexuais que anseiam por uma latejante relação com alguma menininha são seres inofensivos, inadequados, passivos e tímidos, que apenas pedem à comunidade que lhes permita entregar-se a seu comportamento supostamente aberrante, mas praticamente inócuo, que lhes deixe executar seus pequenos, úmidos e sombrios atos privados de desvio sexual sem que a polícia e a sociedade os persigam". E conclui de maneira taxativa: "Não somos tarados!".
Surge um segundo paradoxo como diferença sintomática entre a notícia de jornal e o romance. O estofador é denunciado e preso pelos seus atos libidinosos. A notícia só trata deles. H.H. não é preso por ter transado com a ninfeta, mas por ter assassinado o atrevido desmancha-prazeres que se chama Clare Quilty. Esse segundo paradoxo justifica o fato de que, na maioria das páginas do romance, o que realmente está sendo narrado como "crime", isto é, motivo para a prisão de Humbert, é o caso amoroso dele com Lolita. O assassinato de Quilty, razão para o processo judicial instalado contra Humbert, ocupa apenas as páginas finais do livro. Reparando bem, nota-se um astucioso jogo de palavras entre o sobrenome da vítima, Quilty, e "guilty", culpado. Serviria o jogo para designar o verdadeiro réu de toda a estória? Em outros momentos da narrativa, a vítima será denominada Quil, que brinca com o verbo "to kill", assassinar. O nome da vítima seria o de um cabra marcado pra morrer?
Toda a, por assim dizer, contra-argumentação do narrador do romance, defendendo-se das leis norte-americanas e da reação negativa dos pais de família de qualquer país civilizado, é uma tentativa de amenizar a culpa que o Código Penal e a sociedade civil imputam ao caso amoroso, e não ao assassinato. Por isso, não é de estranhar que o narrador Humbert, na penúltima página do livro, diga que "estivesse ele no lugar do juiz, condenaria Humbert a pelo menos 35 anos de prisão por estupro, ignorando todas as demais acusações". Ora, o estupro de Lolita, como se afirma e se reafirma em várias páginas do romance, foi "uma brincadeira" do garoto Charlie, ao escolher como parceira sexual a coleguinha Lolita. A sentença proposta ao juiz pelo réu se referiria a um "crime", o estupro, único que ele não tinha cometido!
"Brincadeira" infantil idêntica à de Charlie é também o que alicerça a pedofilia heterossexual em Humbert, filho do dono de um luxuoso hotel na Riviera. Ainda em terras francesas, o quase adolescente Humbert apaixonara-se desesperadamente por uma menininha, Annabel Lee, que se hospedava no hotel do pai e com quem vem a manter as primeiras relações sexuais. Ao se perguntar se o excessivo desejo pela criança européia foi manifestação da particularidade inata que voltou a se manifestar muitos anos depois nos Estados Unidos, Humbert responde: "Tenho como certo que, de alguma forma mágica e fatal, Lolita começou com Annabel". E páginas adiante escreve: "Quando eu e ela éramos crianças, não via em minha pequena Annabel uma ninfeta. Eu era um dos seus pares, um jovem fauno por méritos próprios...".
Vinte e quatro anos depois, em contexto social e econômico totalmente diferente, é que Humbert quebra o feitiço de Annabel, "encarnando-a em outra". Dessa forma, a noção de tempo, diz o livro, "desempenha um papel mágico nessa matéria". Desempenha papel duplo, acrescentamos nós, pois à diferença de idade entre o homem adulto e a menina ("nunca menos de dez, geralmente 40 ou 50 anos") soma-se uma outra pirueta do tempo, a que é constituída pela repetição em diferença, ou seja, pela memória do adulto. A pedofilia, comprova-se no caso de H.H., não é inata.
O pedófilo é aquele que não esquece a própria infância, que dela não se liberta ("... talvez jamais teria existido uma Lolita se, em certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial"). Prisioneiro dos jogos sexuais infantis, por toda a vida sairá louco em busca do objeto de amor perdido. O pedófilo heterossexual é aquele que, adulto, reconhece em outra menina a reprodução de um original da infância, o fatídico súcubo, como diz o romance, que lhe servirá de companhia para o resto da vida. A cena em que Humbert (re)conhece Lolita exemplifica bem, na repetição do adjetivo mesmo, o eterno retorno da amada: "Era a mesma criança -os mesmos ombros frágeis cor de mel, as mesmas costas flexíveis, nuas e sedosas, os mesmos cabelos castanhos". A sensualidade, como ensina Lacan, está na intermitência: "Pedacinho de pele brilhante entre a camiseta e os shorts de ginástica brancos".
Até reconhecer a cópia autêntica, o pedófilo vai construindo, com a imaginação do fetichismo, falsas reproduções do original. Adulto, ainda na França, Humbert casa-se pela primeira vez, mas, na noite de núpcias, veste a esposa com uma camisola que "conseguira surrupiar do armário de um orfanato". Vive uma monstruosa "duplicidade": "Ostensivamente, [eu" mantinha o que se chama de relações normais com diversas mulheres terrenas [..."; intimamente, consumia-me uma demoníaca fogueira de concupiscência por todas as ninfetas que passavam na rua e que eu, por um covarde respeito às leis, jamais ousava abordar". Um estudioso das questões de gênero (gender) seria sensível ao que diz Humbert. Para o pedófilo heterossexual, há mais dois sexos além do masculino, só que ambos são femininos.
As semelhanças entre a notícia de jornal e o romance terminam definitivamente no momento em que o narrador confessa ter "copiosas leituras". A cada passagem do texto, de maneira direta, por citação (verdadeira ou falsa? fica o enigma), ou então, por alusão, ele invoca e evoca a seu favor seja grandes mestres da literatura que tiveram uma preferência heterossexual semelhante à do seu personagem, seja sociedades não-ocidentais em que as relações perigosas são toleradas, ou melhor, admissíveis. Arrola casais atrás de casais, caminhando da Antiguidade clássica até a Renascença e o romantismo para chegar à modernidade. Virgílio, Dante, Petrarca... "Lolita" é romance para ser lido com dicionário e enciclopédia ao lado.
Referimo-nos já ao nome do primeiro e definitivo amor de Humbert, Annabel Lee. Em virtude da recorrência do seu nome e da citação constante de dados biográficos referentes ao poeta e contista Edgar Alan Poe, não se pode esquecer, em primeiro lugar, o poema famoso de mesmo nome, e, depois, o fato de Poe, nascido em 1809, ter-se casado, já maduro, com uma ninfeta. A biografia de Poe nos informa que, em 1835, casa-se com a prima Virgínia (havia quatro anos já morava em casa da tia, mãe de Virgínia). O verbete da "Enciclopédia Mirador" diz de maneira clara: "A noiva tinha 13 anos e toda a aparência de uma criança". O romance não deixa menos clara a história amorosa do célebre autor de "O Corvo".
Eis o que escreve a pena de Humbert narrador: "Virginia não completara ainda 14 anos quando Harry Edgar a possuiu. O mon sieur Poe-Poe (tal como era chamado por um dos alunos do monsieur Humbert Humbert em Paris) dava-lhe aulas de álgebra".
Teria o aluno ensinado ao mestre que é pela repetição do nome de batismo que se apelidam os pedófilos heterossexuais?
A atividade educacional de Poe, professor de álgebra, pelo viés da lógica matemática, abre o segundo escaninho das citações de casos semelhantes ao de Humbert Humbert na história da literatura. "Lolita" arrola as aventuras de um outro professor de matemática, agora em colégio de Oxford, conhecido autor de livros para crianças que agradam a adultos e menos conhecido como fotógrafo.
Estamos nos referindo a Carroll, Lewis, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, autor das "Aventuras de Alice no País das Maravilhas". Esse livro mereceu competente tradução para o português por parte do poeta Sebastião Uchoa Leite e uma não menos competente capa do artista Ângelo Venosa (edição original Fontana/Summus, 1977). No momento em que mais sentia a ausência de Lolita, Humbert ficava à espreita da caixa de correio que podia ter acolhido algumas garatujas infantis deixadas pelo carteiro. Confessa Humbert que, nesses momentos, se levantava "o periscópio do maldito vício" e, por meio dele, "entrevia à distância uma ninfeta seminua que penteava os cabelos, qual Alice no país das minhas maravilhas".
Morton N. Cohen, autor da última biografia de Lewis Carroll ("Lewis Carroll - Uma Biografia", Ed. Record), dedica à particularidade do biografado um capítulo de qualidade excepcional, "A Busca da Inocência", que nos servirá de guia. A recente biografia veio recheada de informações novas sobre o criador de Alice, em particular as extraídas dos diários e da vasta correspondência do autor. Esses documentos ainda pouco trabalhados pela crítica -afirma Morton N. Cohen no prefácio- têm um valor inestimável para o biógrafo: "O de lançar luz nos recantos mais escuros; o de possibilitar um exame minucioso do desenvolvimento da miríade de interesses de Carroll; o de documentar e definir, como nunca foi possível antes, a fé religiosa do homem; e o de permitir uma análise mais precisa e certeira da sua mentalidade e seus sentimentos".
A descoberta da fotografia mudou completamente a vida de Lewis Carroll. Fotografar passou a ser não só "uma porta de entrada para um tipo de estética em que poderia obter mais êxito do que tivera com seus desenhos" como também "dava-lhe acesso imediato ao grande prazer da sua vida, conhecer, conversar e, em muito casos, desenvolver uma amizade profunda e sincera com lindas meninas, puras e espontâneas". Entre elas, Frederica Lidell, prima de Alice. Desde o seu primeiro encontro com Frederica, Carroll descobrira que a criança não tinha, segundo suas palavras, "aquela beleza inanimada de boneca". Por isso, continua ele, "cada vez que a vejo confirmo mais uma vez a impressão de que ela é uma das crianças mais bonitas que já vi, suave e inocente".
Diz-nos o biógrafo de Lewis Carroll que foi ele o primeiro a fotografar, na sua "casa de vidro" (como os estúdios de fotografia eram denominados na época), meninas em cenas do cotidiano, com roupas esfarrapadas, trajes de festa ou fantasias. Por exemplo, na foto intitulada "Não Vai Ser Fácil" vemos "uma criança de camisola, com a expressão contrariada, os cabelos desgrenhados, uma escova e um espelho na mão". Outras fotos de Carroll, à semelhança dos recursos retóricos de que Nabokov se serve tão brilhantemente, retratam personagens da cultura popular ou da grande literatura.
Daquela temos, como exemplo, a foto em que uma menina se traveste de Pequena Mendiga, ou outra em que se fantasia de Chapeuzinho Vermelho. Desta temos fotos como aquela em que está representada a órfã Viola, personagem de Shakespeare em "Noite de Reis", ou outra que representa a heroína de "A Dama do Lago", de Walter Scott. Carroll foi além: fotografou as meninas nuas. Tamanha audácia se passou pela primeira vez em 1867, 11 anos depois de ter adquirido a sua primeira máquina fotográfica.
A fotografia foi a arte vitoriana por excelência, assim como o cinema teve o seu auge no puritanismo de Hollywood. Há todo um lado voyeur que ambas as formas de arte enfatizam e sobre o qual fala com conhecimento o narrador de "Lolita". Ele contrasta as carícias pseudo-inocentes que o padrasto (Humbert) faz à criança (Lolita) no escurinho da sala de cinema e as imagens sedutoras e absorventes que aparecem à distância na tela. Escreve ele: "A criança de nada soube. Não lhe fizera nada. E nada me impedia de repetir algo que a havia afetado tão pouco quanto se ela fosse uma imagem fotográfica ondulando na tela e eu um humilde corcunda a abusar de seu corpo no escuro da sala de projeção".
Mas Lewis adorava sobretudo a companhia das meninas. Oferecia-lhes jantares. Quando a pequena Phoebe Carlo veio visitá-lo em Oxford -anota o próprio Lewis-, "preparei-lhe um jantarzinho para nós dois às 19h30, depois do que minha pequena amiga, cansada, tirou uma soneca no meu colo". Carregava-as ao teatro. Quando levou Irene Burch para ver a encenação de "Cinderela", não teve de pagar uma segunda entrada. Isso -anota no diário- "porque ela ficaria sentada no meu colo". E acrescenta: "De meia em meia hora ela se virava para me dar um beijo". Brincava com elas na praia. Observa o biógrafo: "Ficar de mãos dadas com suas jovens amigas e sentar as menores no colo fazia parte do ritual da amizade".
Virginia Woolf nos deu uma análise exemplar da personalidade "perversa" do fotógrafo vitoriano, espécie de Peter Pan no país das maravilhas. Com palavras ferinas, parece querer rebater a crítica rancorosa e mal-humorada que Carroll tinha feito às fotos da sua tia-avó, a hoje célebre e festejada Julia Margaret Cameron. Escreveu Virginia Woolf: "Por algum motivo que desconhecemos, sua infância foi seriamente mutilada. Permaneceu alojada dentro dele inteira e intacta. Ele não conseguiu superá-la. Dessa forma, à medida que ele foi crescendo, esse impedimento no núcleo do seu ser, esse bloco inamovível de infância em estado puro, foi sufocando seu amadurecimento como homem".
Ao contrário do nosso Humbert Humbert, que, de maneira cínica, esperou a área doméstica ficar totalmente livre de entraves para poder atacar fisicamente Lolita, Lewis Carroll sempre pediu a aprovação dos atos à própria consciência e aos pais das meninas. Só assim podia conviver em paz consigo e com os seus modelos infantis, fotografando-os, desenhando-os ou convivendo com eles na intimidade. Tantos e tão maldosos eram os boatos sobre a conduta do professor solteirão na vetusta Oxford que o criador de Alice teve necessidade de se justificar, em carta, à sua irmã: "Os únicos dois testes que aplico para saber se devo ou não convidar alguma amiga são, em primeiro lugar, a minha consciência, de modo a assegurar-me de que seja algo inteiramente inocente e correto aos olhos de Deus; e, em segundo, os pais da menina, para assegurar-me de que tenho total aprovação dos meus atos por eles". E acrescenta: "Você não precisa ficar chocada com o que dizem a meu respeito".
Entre o ostensivo e o íntimo, a conduta masculina ambígua -que beira os limites da ética e da moral para uns, que é amoral, mas permissiva para muitos e que é criminosa e condenável pelas leis do país (vide o recente "Estatuto da Criança e do Adolescente")- está também, como assinalamos, no alicerce da estética de Nabokov. Este insiste: "Para mim, um romance só existe na medida em que me proporciona o que chamarei, grosso modo, de volúpia estética...". Não há termos chulos em narrativa com trama tão escandalosa. Apenas aparentemente, pois os termos chulos se encontram aos borbotões, só que camuflados, escamoteados por centenas de citações de, ou alusões a, textos literários clássicos. Na maioria das vezes, a vulva infantil (para guardar a palavra que a imprensa aceita de bom grado) é desenhada com citações de escritores franceses, na língua original.
Do poeta renascentista Pierre de Ronsard, o narrador extrai a metáfora "la vermeillette fente" (a fenda avermelhadazinha) e do seu contemporâneo, Rémi Belleau, uma outra metáfora, "un petit mont feutré de mousse délicate, tracé au milieu d'un filet escarlatte" (um pequeno monte acolchoado de musse delicada, cortado ao meio por um fio escarlate). De Robert Browning, devidamente traduzido para o português, Nabokov vale-se da "fenda do pêssego". Em determinado momento, a dobra da saia de Lolita ficava presa na fenda do pêssego.
A curiosidade sobre a menstruação, ou a chegada do chico na ninfeta, é forte. A palavra tabu é camuflada por alusão mitológica: "Será que a Mãe Natureza já a havia iniciado no Mistério da Menarca?". Já a experiência global da menina é relacionada a Sade e a seu personagem Justine, "que tinha 12 anos quando começou". E assim "ad infinitum".
A maior audácia e originalidade do romance de Nabokov está na configuração semântica do termo "ninfeta". A prosa de Nabokov oscila entre a informação fria, científica, de dados chocantes sobre a anatomia das meninas e a alta pressão de uma linguagem poética que em vão tenta apreender o objeto tabu nas suas múltiplas e sedutoras facetas, sendo castrada pelos sentimentos mais refinados. Oscila entre o cru e o barroco.
A poesia clássica ocidental criou uma espécie de tempo e templo sagrados da beleza feminina. Ao comparar esta à vida efêmera da rosa, reduziu-a aos limites de idade determinados pela expressão manhã da vida. Talvez esteja aí a origem do significado do termo "ninfeta", desde que assinalemos uma inversão. Se a musa clássica e pré-baudelaireana revelava ao poeta o caminho de Deus, a ninfeta aponta para o caminho da danação do pedófilo. Diz Nabokov que, entre os limites de idade de 9 e 14 anos, "virgens há que revelam a certos viajores enfeitiçados, bastante mais velhos do que elas, sua verdadeira natureza -que não é humana, mas nínfica (isto é, diabólica)".
Por que delimitar a idade? O desabrochar inicial dos seios ocorre cedo, mais comumente aos dez, menos aos sete. E os primeiros pêlos púbicos pigmentados, entre os 11 e 12 anos. Eis as principais alterações somáticas que acompanham a puberdade feminina. Por que salientar a natureza diabólica em criaturas dadas como inocentes? Para Humbert as ninfetas, ao contrário das crianças "normais", são verdadeiras feiticeiras, satânicas, culpadas. São avatares de Lilith, mulher forte e decidida, modelo das feministas. Não é o senhor de idade que seduz a ninfeta, tornando-se pedófilo. Ele é seduzido por ela, "cai sob o seu feitiço". No momento em que passa do estágio das carícias para a relação carnal, Humbert assinala: "Vou contar-lhes algo muito estranho: foi ela quem me seduziu".
Como nem todas as mulheres são belas, nem todas as meninas se enquadram na categoria de ninfetas. O número de ninfetas é "muitíssimo inferior" ao das meninas bonitinhas e adoráveis, meros seres humanos. Essas são meninas comuns, rechonchudas, informes, de pele fria e barriguinha proeminente, que usam tranças. Humbert jamais atentaria contra a inocência de uma menina comum. O coração batia-lhe mais forte quando "divisava algum pequeno demônio" no meio de um bando inocente.
Como contraponto acrescente-se que, diante de um grupo de escolares, o homem "normal" não conseguiria distinguir a ninfeta. Só aquele que é artista ou louco, infinitamente melancólico, com uma bolha de veneno a arder-lhe nas entranhas e uma chama queimando a espinha, só esse poderá ser um ninfolepto. Só ele será capaz de detectar certos sinais inefáveis e diabólicos que o narrador ameaça enumerar, para logo interromper a enumeração, justificando o impedimento pelo desespero, a vergonha e lágrimas de ternura.
É claro, mas não é óbvio. "Não se encontram ninfetas nas regiões polares." Matinais e seminuas, elas são um produto do verão.


Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico literário, autor de "Em Liberdade", "Stella Manhattan" e "Keith Jarret no Blue Note" (Rocco), entre outros.



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