São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997.



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A guerra privatizada da juventude

ALBA ZALUAR
especial para a Folha

Neste final de milênio, assiste-se em toda parte à perda do monopólio de violência pelo Estado, fundamento de sua soberania, em proveito de empresas privadas de segurança, grupos, redes ou indivíduos armados e organizações transnacionais do crime. Nos Estados Unidos, país que detém 43% do mercado de armas no mundo, existem hoje 67 milhões de pessoas armadas. O comércio internacional (e o tráfico transnacional) de armas convencionais de guerra movimentou 22,8 bilhões de dólares em 1995, armas destinadas seja aos países em guerra civil, seja às máfias ou bandos armados que assolam quase todos os países deste planeta.
Esse processo, cuja importância se custou a avaliar no Brasil, teve aqui consequências ainda mais penosas que alhures, onde houve um preparo para enfrentar este que é um dos grandes desafios do próximo milênio: a volta à pulverização da violência, à banalização da violência entre os civis, ao reinvestimento da violência no tecido social, próprios de Estados nacionais enfraquecidos, acompanhada por meios de destruição moderníssimos colocados à disposição para satisfazer as pulsões destrutivas. Por isso, é tão difícil entendê-la e lidar com ela: ela está em toda parte, ela não tem nem atores sociais permanentemente reconhecíveis nem "causas" facilmente delimitáveis e inteligíveis.
Daí a tentação de culpar a sociedade, entidade abstrata de um consenso social problemático, que, na verdade, procura se dinamizar e se reforçar, por meio de novos laços de reciprocidade, em todos os países que melhor enfrentam a violência privatizada e pulverizada de hoje. E todos a culpam, desde o secretário de segurança, perplexo diante dos problemas a enfrentar, até o cientista social, cujos modelos de explicação construídos no início dos século já não servem para entender o que se passa neste final de milênio.
Nesse exercício de encontrar um bode expiatório para o medo e a insegurança generalizados, criou-se também um perigoso álibi para os que a exercitam nas suas atividades cotidianas de enfrentar o outro como um inimigo a abater ou um simples obstáculo aborrecido no caminho para o sucesso e enriquecimento a qualquer custo. Um verdadeiro culto à irresponsabilidade individual se estabeleceu entre nós, como a nos mobilizar para desculpar, em nome de uma sociedade hipostasiada e maldita, os que sucumbiram às tentações de tal caminho, numa espécie de "durkheimianismo" tardio, fora de lugar e tempo. Como intelectuais, temos, sim, a responsabilidade de apontar os diversos processos sociais que se tornaram explosivos ao interagirem, bem como problematizar os viciados métodos e as velhas instituições brasileiras não mais capazes de controlar essas explosões.
Tal modo de colocar a questão não tem apenas consequências intelectuais. Considerando-se somente uma das manifestações mais comentadas na mídia brasileira neste momento -os homicídios de crianças e adolescentes- tornam-se evidentes, além dos problemas institucionais graves, os efeitos sociais dramáticos e os efeitos políticos catastróficos.
De fato, um dos mais graves problemas a enfrentar é o nível altíssimo de impunidade no país, especialmente no que se refere a esses assassinatos, entre os quais apenas aproximadamente 1% dos casos tem seus autores punidos. São os homens jovens, pobres e não-brancos as principais vítimas dessa cadeia de efeitos que colocam armas nas mãos de outros jovens igualmente pobres e não-brancos que as empunham para ganhar prestígio, poder e dinheiro segundo regras que não foram aprendidas na escola, mas na rua, no espaço da liberdade individual em que os terceiros não são levados em consideração, pedras a afastar do caminho com um simples apertar de gatilho.
Se uma das funções das guerras entre nações foi resolver o problema do excesso populacional dos países envolvidos, essa nova guerra privatizada do final do milênio parece contribuir para eliminar uma parcela cada vez mais considerável dos chamados ora "excedentes", ora "marginais", ora "excluídos". Uma desordem bem-vinda em nome da ordem futura embranquecida, como na afirmação de conservadores estadunidenses que dizem não haver um problema de crime violento nos Estados Unidos, mas apenas um problema negro, diante do qual lavam as suas mãos: "Isso é lá entre eles".
Neste país, durante a década de 60, a taxa de homicídios entre os negros atingiu cifras quase 20 vezes maior do que a taxa entre os brancos por conta de profundas mudanças no comportamento e da expansão do tráfico de drogas ilegais nos guetos negros e latinos. Neste país, desde o início do século 20, as gangues juvenis movimentavam-se na lógica do orgulho associado ao bairro, criando mitos de distinção social dentro de grupos socialmente e racialmente homogêneos, o que fazia com que, em Chicago, por exemplo, a gangue dos Blackstone Rangers e a gangue Devil's Disciples, ambas compostas por negros, lutassem violentamente tanto pelo orgulho quanto pelo acerto de contas no tráfico de drogas.
Na região metropolitana do Rio de Janeiro, pesquisa recente mostra que 57% dos homicídios cometidos contra jovens relacionavam-se ao tráfico de drogas. Em pesquisa também recente nas escolas da mesma região, os meninos e meninas entrevistados falaram dos constrangimentos impostos pelas novas organizações juvenis, nas quais a demonstração de força e agressividade é o passaporte para a aceitação social, para a aquisição de prestígio e poder. Embora a quase totalidade dos membros das galeras seja de estudantes e trabalhadores, esses jovens tentam escapar da marca de "otário" -alguém a quem falta esperteza, alguém que se submete ao trabalho por salário baixo e alguém que não se veste nem consome como os ricos- dando enorme importância à vestimenta, ao baile e às brigas que marcam as divisões territoriais entre os bairros.
A idéia entre os membros da galera não difere daquela registrada por Jack Katz entre os membros da gangue: mais humilhante do que ser pobre é ser "bobo", identificado com quem não tem disposição para brigar. Embora não tenham, ao contrário das gangues, chefia instituída, regras explicitadas e rituais iniciáticos, as diversas organizações juvenis recém-aparecidas nas cidades brasileiras têm, como as primeiras, estreita relação com seus bairros, cujos nomes são seus únicos patronímicos.
As rupturas nos processos de pacificação dos costumes, articuladas com as novas facilidades da guerra privatizada, terminam, às vezes, na tragédia de agressões graves e assassinatos. Acrescente-se a isso a dinâmica própria do mundo do crime e as atrações que exerce, em termos de um cálculo racional, da ambição de "ganhar fácil", dos valores de um etos da masculinidade que seriam alcançados por meio da atividade criminosa. Essas novas organizações compõem o quadro das alternativas de atrações, disposições e ganhos colocadas aos jovens pobres.
O processo civilizatório que, segundo Elias, teve no desenvolvimento do jogo parlamentar e do esporte sua configuração marcante, sofreu, portanto, sérios abalos entre nós. Nesses jogos, as partes em disputa passaram a confiar umas nas outras, em que não seriam mortas ou exiladas caso perdessem o jogo, cujas regras acordadas seriam seguidas pelos parceiros que dele participassem no intuito de resolver ou expressar conflitos. Na sociedade assim pacificada, o monopólio legítimo da violência pelo Estado foi consolidado por modificações nas características pessoais de cada cidadão: o controle das emoções e da violência física, o fim da auto-indulgência excessiva, a diminuição do prazer de infligir dor ao alheio. O processo civilizador, entretanto, não atingiu na mesma intensidade todas as classes sociais, nem tampouco todos os países.
No Brasil, além da inegável importância do esporte na pacificação dos costumes, tivemos também outro processo que se espalhou pelo país: a instituição de torneios, concursos e festas, envolvendo bairros e segmentos populacionais rivais. Em vez de guerras de gangues, torneios em festas urbanas. No Rio de Janeiro, esse padrão foi seguido desde o início do século nos desfiles carnavalescos, quando os conflitos ou competições entre bairros, vizinhanças pobres ou grupos de diversas afiliações eram apresentados, representados e vivenciados em locais públicos que reuniam pessoas vindas de todas as partes da cidade, de todos os gêneros, de todas as idades, criando ligações e encenações metafóricas dos diversos segmentos em que a cidade se dividia, seguindo regras cada vez mais elaboradas. Assim, a cidade era representada como espetáculo ao mesmo tempo da rivalidade e do encontro das partes da cidade.
Hoje, os trabalhadores pobres que conviveram nessas variadas organizações vicinais assistem ao esfacelamento das famílias e associações, tão importantes na conquista de autonomia moral e política. Dentro da família, as divisões e afastamentos se dão pela crise moral e econômica no mundo globalizado, mas, igualmente, por se pertencer a diferentes comandos, por posição diferente na trincheira da guerra, que também confronta polícia e bandido. A família está partida, a classe social está partida, as organizações vicinais estão paralisadas e esvaziou-se o movimento social, situação também vivida em países europeus.
Localmente, uma cadeia de efeitos que se alimentaram mutuamente solidificou as engrenagens da guerra privatizada: a fragmentação das organizações vicinais e familiares facilitou o domínio dos grupos de traficantes no poder local, que, por sua vez, aprofundou a ruptura dos laços sociais dentro da família e entre as famílias na vizinhança, acentuando o isolamento, a atomização, o individualismo. Ou seja, rompe-se a intricada teia de trocas baseadas no princípio da reciprocidade, fora da lógica do mercado, que Habermas chamou de "mundo da vida". Em seu lugar, aparece o fascínio pelas armas, a defesa até a morte de um orgulho masculino construído sobre o controle do território assim obtido, os valores militares e a busca do enriquecimento rápido por meio de atividades ilegais e empresariais. Qualquer política pública que não leve em consideração essa nova realidade está fadada ao fracasso, por mais politicamente correta que seja.


Alba Zaluar é professora titular de antropologia da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e autora, entre outros, de "Condomínio do Diabo" e "Da Revolta ao Crime S/A".



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