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A guerra privatizada da juventude
ALBA ZALUAR
especial para a Folha
Neste final de milênio, assiste-se
em toda parte à perda do monopólio de violência pelo Estado, fundamento de sua soberania, em
proveito de empresas privadas de
segurança, grupos, redes ou indivíduos armados e organizações
transnacionais do crime. Nos Estados Unidos, país que detém 43%
do mercado de armas no mundo,
existem hoje 67 milhões de pessoas
armadas. O comércio internacional (e o tráfico transnacional) de
armas convencionais de guerra
movimentou 22,8 bilhões de dólares em 1995, armas destinadas seja
aos países em guerra civil, seja às
máfias ou bandos armados que assolam quase todos os países deste
planeta.
Esse processo, cuja importância
se custou a avaliar no Brasil, teve
aqui consequências ainda mais penosas que alhures, onde houve um
preparo para enfrentar este que é
um dos grandes desafios do próximo milênio: a volta à pulverização
da violência, à banalização da violência entre os civis, ao reinvestimento da violência no tecido social, próprios de Estados nacionais
enfraquecidos, acompanhada por
meios de destruição moderníssimos colocados à disposição para
satisfazer as pulsões destrutivas.
Por isso, é tão difícil entendê-la e
lidar com ela: ela está em toda parte, ela não tem nem atores sociais
permanentemente reconhecíveis
nem "causas" facilmente delimitáveis e inteligíveis.
Daí a tentação de culpar a sociedade, entidade abstrata de um
consenso social problemático,
que, na verdade, procura se dinamizar e se reforçar, por meio de
novos laços de reciprocidade, em
todos os países que melhor enfrentam a violência privatizada e pulverizada de hoje. E todos a culpam,
desde o secretário de segurança,
perplexo diante dos problemas a
enfrentar, até o cientista social, cujos modelos de explicação construídos no início dos século já não
servem para entender o que se passa neste final de milênio.
Nesse exercício de encontrar um
bode expiatório para o medo e a
insegurança generalizados,
criou-se também um perigoso álibi para os que a exercitam nas suas
atividades cotidianas de enfrentar
o outro como um inimigo a abater
ou um simples obstáculo aborrecido no caminho para o sucesso e
enriquecimento a qualquer custo.
Um verdadeiro culto à irresponsabilidade individual se estabeleceu
entre nós, como a nos mobilizar
para desculpar, em nome de uma
sociedade hipostasiada e maldita,
os que sucumbiram às tentações
de tal caminho, numa espécie de
"durkheimianismo" tardio, fora
de lugar e tempo. Como intelectuais, temos, sim, a responsabilidade de apontar os diversos processos sociais que se tornaram explosivos ao interagirem, bem como problematizar os viciados métodos e as velhas instituições brasileiras não mais capazes de controlar essas explosões.
Tal modo de colocar a questão
não tem apenas consequências intelectuais. Considerando-se somente uma das manifestações
mais comentadas na mídia brasileira neste momento -os homicídios de crianças e adolescentes-
tornam-se evidentes, além dos
problemas institucionais graves,
os efeitos sociais dramáticos e os
efeitos políticos catastróficos.
De fato, um dos mais graves problemas a enfrentar é o nível altíssimo de impunidade no país, especialmente no que se refere a esses
assassinatos, entre os quais apenas
aproximadamente 1% dos casos
tem seus autores punidos. São os
homens jovens, pobres e
não-brancos as principais vítimas
dessa cadeia de efeitos que colocam armas nas mãos de outros jovens igualmente pobres e
não-brancos que as empunham
para ganhar prestígio, poder e dinheiro segundo regras que não foram aprendidas na escola, mas na
rua, no espaço da liberdade individual em que os terceiros não são
levados em consideração, pedras a
afastar do caminho com um simples apertar de gatilho.
Se uma das funções das guerras
entre nações foi resolver o problema do excesso populacional dos
países envolvidos, essa nova guerra privatizada do final do milênio
parece contribuir para eliminar
uma parcela cada vez mais considerável dos chamados ora "excedentes", ora "marginais", ora
"excluídos". Uma desordem
bem-vinda em nome da ordem futura embranquecida, como na
afirmação de conservadores estadunidenses que dizem não haver
um problema de crime violento
nos Estados Unidos, mas apenas
um problema negro, diante do
qual lavam as suas mãos: "Isso é lá
entre eles".
Neste país, durante a década de
60, a taxa de homicídios entre os
negros atingiu cifras quase 20 vezes maior do que a taxa entre os
brancos por conta de profundas
mudanças no comportamento e
da expansão do tráfico de drogas
ilegais nos guetos negros e latinos.
Neste país, desde o início do século
20, as gangues juvenis movimentavam-se na lógica do orgulho associado ao bairro, criando mitos
de distinção social dentro de grupos socialmente e racialmente homogêneos, o que fazia com que,
em Chicago, por exemplo, a gangue dos Blackstone Rangers e a
gangue Devil's Disciples, ambas
compostas por negros, lutassem
violentamente tanto pelo orgulho
quanto pelo acerto de contas no
tráfico de drogas.
Na região metropolitana do Rio
de Janeiro, pesquisa recente mostra que 57% dos homicídios cometidos contra jovens relacionavam-se ao tráfico de drogas. Em
pesquisa também recente nas escolas da mesma região, os meninos e meninas entrevistados falaram dos constrangimentos impostos pelas novas organizações juvenis, nas quais a demonstração de
força e agressividade é o passaporte para a aceitação social, para a
aquisição de prestígio e poder.
Embora a quase totalidade dos
membros das galeras seja de estudantes e trabalhadores, esses jovens tentam escapar da marca de
"otário" -alguém a quem falta
esperteza, alguém que se submete
ao trabalho por salário baixo e alguém que não se veste nem consome como os ricos- dando enorme importância à vestimenta, ao
baile e às brigas que marcam as divisões territoriais entre os bairros.
A idéia entre os membros da galera não difere daquela registrada
por Jack Katz entre os membros da
gangue: mais humilhante do que
ser pobre é ser "bobo", identificado com quem não tem disposição
para brigar. Embora não tenham,
ao contrário das gangues, chefia
instituída, regras explicitadas e rituais iniciáticos, as diversas organizações juvenis recém-aparecidas
nas cidades brasileiras têm, como
as primeiras, estreita relação com
seus bairros, cujos nomes são seus
únicos patronímicos.
As rupturas nos processos de pacificação dos costumes, articuladas com as novas facilidades da
guerra privatizada, terminam, às
vezes, na tragédia de agressões
graves e assassinatos. Acrescente-se a isso a dinâmica própria do
mundo do crime e as atrações que
exerce, em termos de um cálculo
racional, da ambição de "ganhar
fácil", dos valores de um etos da
masculinidade que seriam alcançados por meio da atividade criminosa. Essas novas organizações
compõem o quadro das alternativas de atrações, disposições e ganhos colocadas aos jovens pobres.
O processo civilizatório que, segundo Elias, teve no desenvolvimento do jogo parlamentar e do
esporte sua configuração marcante, sofreu, portanto, sérios abalos
entre nós. Nesses jogos, as partes
em disputa passaram a confiar
umas nas outras, em que não seriam mortas ou exiladas caso perdessem o jogo, cujas regras acordadas seriam seguidas pelos parceiros que dele participassem no
intuito de resolver ou expressar
conflitos. Na sociedade assim pacificada, o monopólio legítimo da
violência pelo Estado foi consolidado por modificações nas características pessoais de cada cidadão:
o controle das emoções e da violência física, o fim da auto-indulgência excessiva, a diminuição do
prazer de infligir dor ao alheio. O
processo civilizador, entretanto,
não atingiu na mesma intensidade
todas as classes sociais, nem tampouco todos os países.
No Brasil, além da inegável importância do esporte na pacificação dos costumes, tivemos também outro processo que se espalhou pelo país: a instituição de torneios, concursos e festas, envolvendo bairros e segmentos populacionais rivais. Em vez de guerras
de gangues, torneios em festas urbanas. No Rio de Janeiro, esse padrão foi seguido desde o início do
século nos desfiles carnavalescos,
quando os conflitos ou competições entre bairros, vizinhanças pobres ou grupos de diversas afiliações eram apresentados, representados e vivenciados em locais públicos que reuniam pessoas vindas
de todas as partes da cidade, de todos os gêneros, de todas as idades,
criando ligações e encenações metafóricas dos diversos segmentos
em que a cidade se dividia, seguindo regras cada vez mais elaboradas. Assim, a cidade era representada como espetáculo ao mesmo
tempo da rivalidade e do encontro
das partes da cidade.
Hoje, os trabalhadores pobres
que conviveram nessas variadas
organizações vicinais assistem ao
esfacelamento das famílias e associações, tão importantes na conquista de autonomia moral e política. Dentro da família, as divisões
e afastamentos se dão pela crise
moral e econômica no mundo globalizado, mas, igualmente, por se
pertencer a diferentes comandos,
por posição diferente na trincheira
da guerra, que também confronta
polícia e bandido. A família está
partida, a classe social está partida,
as organizações vicinais estão paralisadas e esvaziou-se o movimento social, situação também vivida em países europeus.
Localmente, uma cadeia de efeitos que se alimentaram mutuamente solidificou as engrenagens
da guerra privatizada: a fragmentação das organizações vicinais e
familiares facilitou o domínio dos
grupos de traficantes no poder local, que, por sua vez, aprofundou a
ruptura dos laços sociais dentro da
família e entre as famílias na vizinhança, acentuando o isolamento,
a atomização, o individualismo.
Ou seja, rompe-se a intricada teia
de trocas baseadas no princípio da
reciprocidade, fora da lógica do
mercado, que Habermas chamou
de "mundo da vida". Em seu lugar, aparece o fascínio pelas armas, a defesa até a morte de um
orgulho masculino construído sobre o controle do território assim
obtido, os valores militares e a
busca do enriquecimento rápido
por meio de atividades ilegais e
empresariais. Qualquer política
pública que não leve em consideração essa nova realidade está fadada ao fracasso, por mais politicamente correta que seja.
Alba Zaluar é professora titular de antropologia da UERJ (Universidade Estadual do Rio de
Janeiro) e autora, entre outros, de "Condomínio
do Diabo" e "Da Revolta ao Crime S/A".
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