São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997.



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ABUSO INFANTIL


Pesquisas mostram que a negligência da mãe pode ser a primeira semente da agressividade juvenil
Traumas do descuido materno

Xando Pereira/ Folha Imagem
Criança participante do Projeto Axé, que trabalha há mais de seis anos com meninos e meninas de rua em Salvador


GILBERTO DIMENSTEIN
de Nova York

A prevenção à violência juvenil começa antes do berço -mais precisamente, quando o potencial agressor ainda é um feto, alimentado pelos traumas da mãe através da placenta.
Pesquisas mais recentes de neurologia confirmam os estudos dos psicólogos: a negligência materna é a primeira semente capaz de gerar agressividade, a ser desenvolvida ou contida pela sociedade. Novas máquinas conseguem fotografar exatamente onde o trauma ou a negligência alteraram o cérebro.
Conexões cerebrais exibidas pelas fotos são apenas o ingrediente high-tech do elenco de informação já disponível, indicando que está criado o conhecimento necessário para se combater com sucesso a violência juvenil. A viabilidade depende tão-somente da disposição da sociedade de implementar em larga escala programas de prevenção.
Está definitivamente desmontada a visão simplista que estabelece ligação automática entre pobreza e violência. A relação é, em essência, entre agressividade e marginalidade, ou seja, o indivíduo sentir-se repelido, negligenciado, desprezado. O que pode tanto ocorrer numa família rica como pobre -mais provável, entretanto, nos ambientes miseráveis, nos quais a mãe trabalha, a criança muitas vezes não recebe atenção e sofre restrições permanentes.
As descobertas são reveladas em experiências bem-sucedidas nos mais diferentes cenários -dos laboratórios de neurologia de Harvard, passando pela Faculdade de Psicologia de Yale ou Stanford, Instituto de Psiquiatria da Universidade de Columbia, até projetos de educação em Salvador, Rio de Janeiro, Cali, na Colômbia, ou escolas no Harlem e Brooklin, em Nova York.
Os Estados Unidos se transformaram num campo fértil para as investigações, devido à combinação do alto índice de violência juvenil e os generosos fundos para pesquisa, patrocinados pelo governo e por fundações empresariais.
Os americanos assistiram a violência virar epidemia, com detectores de metais instalados em escolas e crescente número de assassinatos. Segundo o FBI, a polícia federal, haveria hoje 600 mil integrantes de gangues, responsáveis por metade de todos os homicídios.
Pelo menos 25 jovens morrem por dia, vítimas de tiros ou facadas; centenas de milhares passam pelo setor de emergência dos hospitais. Esses números fizeram políticos e opinião pública apontarem a violência dos jovens como um dos três problemas mais graves da nação.
Com os novos avanços tecnológicos, os neurologistas comprovaram o que psicólogos sabiam ou suspeitavam -o meio ambiente hostil, a começar na família, vai moldando o comportamento dos indivíduos, reforçado nas ruas.
Daí o tema desestruturação familiar, num país com epidemia de adolescentes grávidas, ter chegado ao topo da agenda dos Estados Unidos; o governo chegou a calcular quanto custava em gastos penitenciários cada filho que nasce de uma adolescente pobre.
Muitas dessas adolescentes usaram drogas durante a gravidez, em especial crack, cocaína ou álcool. As fotos revelam como as drogas entram pela placenta e danificam áreas do cérebro, comprometendo o desenvolvimento emocional ou intelectual da criança. Vem ao mundo, assim, com deficiência e potencial de marginalidade; mau aluno, em geral, corre o risco de ser mau candidato a um bom emprego.
Investigações divulgadas pela Associação Americana de Psicologia, a partir dos anos 90, detalharam a relação entre ligação materna e o desenvolvimento emocional dos filhos. Quanto menor essa ligação, maior a tendência de o futuro adolescente exibir sinais de agressividade.
Uma experiência patrocinada pela Universidade de Syracuse, batizada de Projeto de Desenvolvimento Familiar, trabalhou com famílias negras pobres, cujos filhos, desde o berço, receberam apoio. Tiveram ajuda de psicólogos e médicos, recebiam alimentos e ensino de pré-escola de alta qualidade.
Quando se tornaram adolescentes, aquelas crianças protegidas exibiram menor tendência a se envolver com a delinquência, comparando com os meninos das mesmas condições sociais.
O neurologista Bruce Perry, da Universidade de Baylor, afirma que está aí o vírus que explica a epidemia de violência juvenil dos Estados Unidos. Segundo ele, a falta de envolvimento material iria afetar a parte do cérebro que modula a impulsividade e maturidade emocional; o resultado seria maior predisposição à agressão.
Por causa de visões como a de Bruce Perry, os americanos prestam mais atenção a fase do desenvolvimento da criança entre zero e três anos, numa mobilização que envolve cientistas, grandes empresas, organizações não-governamentais e, agora, a própria Casa Branca. Neste período, segundo os mais recentes estudos, se formariam as conexões cerebrais que ajudariam a moldar o comportamento dos adultos, facilitando ou dificultando o aprendizado.
Não é obviamente determinante; apenas um dos ingredientes. A sociedade vai tratar de estimular ou inibir essas tendências. E, aqui, a expressão mais usada é "capital social", a soma de possibilidades que a sociedade oferece na vivência dos indivíduos, como a igreja, clube, escola, família.
Bairros deteriorados com altos índices de desemprego, desestruturação familiar e drogas têm baixo "capital social"; o poder é exercido pelas gangues, nas quais se consegue, às avessas, ordem e hierarquia.
Pesquisadores têm notado que bairros igualmente pobres, com a mesma composição racial, têm diferentes níveis de violência. A diferença está, segundo constataram, na importância da família, da igreja ou da escola.
O sucesso dos Projetos Axé, em Salvador, ou Mangueira, no Rio, passando por experiências no Harlem, é que eles remontam o "capital social". Eles oferecem um espaço em que os jovens confiem e mereçam confiança, no qual possam montar um projeto de vida, no qual reaprendem como conviver sem brigar.
É insignificante a taxa de jovens delinquentes na Mangueira, uma região contaminada pelo tráfico; a maioria dos frequentadores do Projeto Axé estuda e, depois, trabalha, luta para recompor a família. No Axé, desenvolveu-se o que chamam de "Pedagogia do Desejo" -em suma, ajuda-se o jovem a ter desejos, apostando no futuro.
Projetos desse tipo devem ser, portanto, completos para enfrentar as tendências que vêm do berço. Eles oferecem tratamento médico, psicológico, escola, lazer, esportes e artes. Há um trabalho com a família, na qual, em geral, impera álcool, drogas e promiscuidade sexual.
Depois dos estudos, os jovens são auxiliados para ganhar um emprego. Do contrário, continuariam nas ruas.
Em Cali, na Colômbia, um dos centros mundiais do narcotráfico, jovens matadores profissionais deixaram o crime e formaram uma cooperativa para obter empregos, ajudados pelo poder local, receberam também treinamento profissional.
Nos bairros pobres de Nova York as escolas nunca fecham, viraram um centro comunitário, atraindo as famílias. Lá existem desde psicólogos para cuidar do alcoolismo dos pais até professores para ensiná-los a falar inglês ou abrir um pequeno negócio.
A somatória desses projetos -e mais o policiamento preventivo- explica por que Nova York virou laboratório mundial de criminalidade, ao baixar a delinquência a níveis jamais vistos num grande centro urbano.



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