São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um novo perfil da criança desnutrida



A violência doméstica pode estar estar por trás de casos residuais de desnutrição
MICHAEL E. REICHENHEIM
MARIA HELENA HASSELMANN
especial para a Folha

Por muito tempo temos convivido com a mazela da desnutrição. Os resultados da Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição (1989) indicam que 31% das crianças brasileiras menores de cinco anos apresentam desnutrição, sendo que 5% destas sofrem de desnutrição moderada ou grave. No entanto, há fortes evidências de que nas últimas décadas, de uma maneira geral, a desnutrição infantil tem declinado gradativamente.
Alguns estudos mostram que, de 1974 a 1989, no Brasil como um todo, a desnutrição em menores de cinco anos foi reduzida em um terço, e quase dois terços nas formas moderada e grave. Se, por um lado, esse cenário é aparentemente alentador, por outro, casos de desnutrição grave ainda continuam aparecendo nos serviços de saúde.
No mesmo período em que vemos esse quadro, desponta e cresce assustadoramente o problema de violência em nosso meio. Esta tem-se manifestado em várias instâncias do convívio social, desde o crime organizado até as violências veladas e, muitas vezes, nem sequer reconhecidas. Uma destas que nos tem preocupado diz respeito à violência no âmbito domiciliar, passando pelo uso da força contra mulher até hediondos maus tratos à criança. Ver o abandono de menores em nossas ruas é apenas o topo desse iceberg.
Com a relativa melhora da situação nutricional em muitas localidades, principalmente nas áreas urbanas do sul e sudeste do país, uma indagação que nós nos fizemos é se a violência doméstica não estaria por trás desses casos residuais de desnutrição aguda e grave que ainda presenciamos. Haveria um novo perfil da desnutrição (ou, se não novo, preponderante), tendo a violência doméstica como um de seus corolários?
Sabemos que a desnutrição severa e ominosa ocorre preferencialmente nas famílias que apresentam condições de vida precárias. Por que, então, somente algumas dessas se desnutrem extremamente e outras não, já que vivem em condições aparentemente semelhantes? Parece-nos que a clássica e abundante literatura sobre a determinação macrossocial do processo de desnutrição em populações carentes já não dá mais conta, por si só, das explicações.
Os estudos que tangem à pergunta acima, por sua vez, são relativamente poucos. É preciso um aprofundamento. Essa parca literatura sugere que uma possível explicação se encontre no ambiente familiar explicitamente conflituoso no qual essas crianças são criadas.
Nos estudos realizados em populações em que a desnutrição já desapareceu há algum tempo (por exemplo, EUA e Europa), há evidências de que 33% a 50% das crianças maltratadas, e de lares ofensivos e hostis, apresentavam, em seu quadro de hospitalização, o retardo do crescimento linear, além de sinais de desnutrição severa. Conflitos influenciando negativamente os cuidados com a criança e um precário estado psicológico e emocional da mãe estariam implicados no processo.
Algumas evidências também sugerem que um perfil semelhante surge no nosso meio. Em um estudo de casos de crianças desnutridas graves realizado no Rio de Janeiro no início da década, as famílias apresentavam a violência física e o uso abusivo de álcool em seu meio. Um outro estudo realizado recentemente em São Paulo detectou nas famílias de desnutridos severos, com igual privação socioeconômica, um precário vínculo mãe-criança, manifesto por negligência, descuido e desatenção.
Alguns autores encaram a desnutrição em si como uma violência contra criança. Concordamos plenamente com esse discurso como plataforma de denúncia e indignação. Numa perspectiva de atuação, no entanto, tentamos dar outro corte. Cremos que a postulação (e a possível corroboração da hipótese em algum momento da trajetória) da violência como antecedente do processo de desnutrição deva ter um caráter mais direcionado.
O entendimento de possíveis fatores que transcendam o discurso generalizante da "fome" poderá nos dar mais ferramentas para o enfrentamento desse ainda grave problema. No âmbito sanitário específico não é difícil vislumbrar serviços extramuros de atenção ao usuário, tais como visitadores de saúde integrados em equipes de saúde, envolvidos na detecção e auxílio no manejamento de famílias em que esses danosos fenômenos ocorrem.
Um detalhamento das relações entre violência e desnutrição também contribuiria para um melhor atendimento no nível intramural dos serviços de saúde, tanto na detecção de casos prováveis nos serviços de emergência, como no atendimento precípuo dos serviços especializados na abordagem de família de crianças maltratadas e/ou desnutridas.
Ainda que, nas últimas décadas, tenhamos presenciado algumas melhorias nos indicadores globais de saúde, é preciso lembrar que estes não expressam importantes aspectos da dimensão qualitativa de vida. Com o paulatino atendimento de certas necessidades e seus consequentes ganhos sanitários, afloram problemas de outra ordem, afetando o modo de viver da população.
É dentro desse emergente perfil de transformação do quadro sanitário que o programa de investigação em andamento na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Instituto de Medicina Social e Instituto de Nutrição) se insere. Além da denúncia explícita, um programa como esse poderá nos informar se uma relação entre violência doméstica e desnutrição de fato ocorre, e como são as nuanças desta interação.


Michael E. Reichenheim é professor do Instituto de Medicina Social e Maria Helena Hasselmann é professora do Instituto de Nutrição, ambos na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).





Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã