São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ tecnologia

Em "Pessoas Digitais", lançado há pouco nos EUA, o físico Sidney Perkowitz faz um apanhado da evolução dos seres artificiais na arte e na ciência

O futuro biônico de todos nós

Virgílio Fernandes Almeida
especial para a Folha

O cenário é simples, porém desconcertante: a convivência futura de seres humanos e seres artificiais. Num extremo do espectro da variedade de seres estão os humanos, tais e quais a natureza os criou. No outro extremo, aparecem os andróides, seres inteiramente artificiais, mas criados à imagem e semelhança dos homens. No meio, habitam algumas variações. Os seres biônicos -pessoas com partes sintéticas-, os robôs e os ciborgues -seres de estrutura e construção artificial, mas com cérebros humanos. Estranho cenário? Talvez até completamente irrealista para muitos.
Entretanto não é o que pensa o físico Sidney Perkowitz, como mostra o recente livro publicado pela Academia de Ciências dos Estados Unidos: "Digital People -From Bionic Humans to Androids" [Pessoas Digitais - de Humanos Biônicos a Andróides, Joseph Henry Press, 238 págs., US$ 24,95].
Perkowitz não precisa ir longe para mostrar os sinais dessa variedade de seres no mundo contemporâneo. Começa mostrando que 10% da população americana já seriam biônicos, pois apresentam partes sintéticas, que vão desde as próteses funcionais até os implantes artificiais e as modificações de natureza estética, que incorporam novos materiais e novos elementos ao corpo humano. A história do relato das próteses data de 2000 a.C., quando a rainha hindu Vishpla substituiu uma perna perdida numa batalha por uma perna de ferro.
Embora de extrema significância, os implantes não poderiam se caracterizar como avanços em direção à construção de ciborgues. Entretanto, recentemente, a tecnologia dos biônicos deu mais um salto, com o início de conexões diretas de sistemas orgânicos e componentes artificiais em nível do sistema neural. São os casos das técnicas de estímulo ao nervo vago para tratamento de epilepsia e mal de Parkinson e dos chamados ouvidos digitais, para a cura da surdez. Em ambas as técnicas, sinais gerados por dispositivos eletrônicos e microprocessadores, implantados no corpo humano, são transmitidos a componentes do sistema cerebral.
Mas seriam os seres artificiais características exclusivas do século 21, marcado pelo domínio da ciência e tecnologia? Perkowitz mostra que não.
No livro é abordada a evolução da idéia de seres artificiais, desde os primeiros relatos que aparecem na Antigüidade. A história dos seres artificiais é contada tanto do ponto de vista da ficção, por meio dos personagens da literatura e do cinema, quanto da realidade, por meio das tentativas de construir seres mecânicos e eletrônicos com características e funcionalidades dos humanos. Tentativas essas que sempre buscaram ampliar ou restaurar a capacidade dos homens e prolongar a vida.
Os relatos iniciais de seres artificiais remontam à mitologia grega, com a história de Talos, um gigante de bronze com sangue dos deuses nas veias criado por Hefestos. Entretanto é apenas a partir do século 19 que se revelam histórias particularmente marcantes na construção das imagens icônicas dos seres artificiais que povoam o imaginário coletivo. Começa com "Frankenstein", publicada originalmente em 1818, passa por Czech Karel Capek, que cria o termo "robot" em 1921 com a peça "RUR (Rossum's Universal Robots)", chegando a Isaac Asimov, que em 1950 publica seu livro "I, Robot", em que são propostas as leis básicas que regeriam o comportamento dos robôs.
O livro aponta então para o cinema, que a partir dos anos 60 introduz robôs, ciborgues e andróides em filmes como "2001 -Uma Odisséia no Espaço", "Blade Runner", "O Exterminador do Futuro" e "Robocop" -filmes que influenciaram no delineamento da imagem coletiva e da funcionalidade que se atribui às máquinas inteligentes e outros seres artificiais.
"Pessoas Digitais" é uma síntese organizada e clara do tema robótica e biônicos. A segunda parte do livro cobre os aspectos relacionados aos robôs que visam a atingir diferentes níveis da capacidade humana. Os capítulos estruturam-se em torno de temas como o movimento e a expressão dos membros do corpo humano, os cincos sentidos básicos do homem e a capacidade relativa ao pensamento, emoção e consciência. O equivalente ao cérebro humano nos seres artificiais é apresentado como um conjunto de microprocessadores e softwares. O livro não toca, no entanto, em algumas questões-chave para a produção de seres artificiais, como o software, peça fundamental desses sistemas. Será que os sistemas de software são confiáveis o suficiente para que os robôs e outros seres artificiais façam apenas aquilo para o que foram projetados? A experiência com os complexos sistemas de software hoje existentes não nos permite ter certeza das respostas a essa questão.
Em linhas gerais o livro trata de tecnologias, existentes e em desenvolvimento, para a construção das diversas variações de seres artificiais. O autor motiva o leitor ao apresentar a história da ficção dos seres artificiais e o distanciamento da ficção das tecnologias necessárias ao desenvolvimento desses seres. Perkowitz, contudo, poderia ter explorado mais a literatura na busca das questões que circundam os seres artificiais, em vez de se concentrar apenas nos personagens diretos da ficção científica ou do cinema. Poderia ter explorado a literatura de Borges, Calvino e outros na busca de significações para esse mundo novo, que vaga à vontade entre o real e o imaginário. O fantástico universo da literatura de Borges serve à invenção de modelos apropriados para o entendimento da complexidade do real e do virtual.
Borges, por exemplo, criou o personagem Funes, de memória praticamente ilimitada, como poderiam ter os seres artificiais. Nada, nenhum minucioso detalhe, escapava da implacável memória de Funes. E, apesar da ilimitada capacidade de memória, Funes era incapaz de "idéias gerais", era incapaz de pensar. "Suspeito entretanto que (Funes) não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair." No livro "Sete Contos de Fúria", do autor português contemporâneo António Vieira, um personagem, ao se debater com dúvidas sobre sua origem, reflete e diz: "Na verdade, nem sei o que é ser-se humano, nem não humano, nem sequer quase humano". Isso o livro não aborda. Passa ao largo dessas questões.


Virgílio Fernandes Almeida é professor e chefe do departamento de ciência da computação da Universidade Federal de Minas Gerais.


Texto Anterior: Et + cetera
Próximo Texto: Amores em rede
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.