São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

AMORES EM REDE

O FILÓSOFO AARON BEN-ZE'EV FALA SOBRE "LOVE ONLINE", ESTUDO PIONEIRO SOBRE OS RELACIONAMENTOS AMOROSOS NA INTERNET PUBLICADO NA INGLATERRA, E DEFENDE QUE A TENDÊNCIA DEVERÁ SE EXPANDIR EM UM FUTURO PRÓXIMO E IMPOR UMA NOVA ÉTICA À SOCIEDADE

Marcos Flamínio Peres
Editor-adjunto do Mais!

Mais do que um fenômeno circunscrito a teens ou a adultos solitários, os relacionamentos românticos via internet tendem a se expandir em um futuro próximo e devem, como conseqüência, provocar um relaxamento das normas sociais e morais tais como as entendemos hoje. No limite, elas devem impor um novo padrão de ética à sociedade "off-line", como defende o filósofo Aaron Ben-Ze'ev em seu livro "Love Online" (Cambridge University Press, 290 págs., 18,99 libras) -uma análise pioneira e exaustiva dos amores on-line publicada há pouco no Reino Unido.
Para ele, esse tipo de relação amorosa -que chama de "cybering"- irá modificar "inevitavelmente as formas sociais atuais", como o casamento, a coabitação, o sexo casual, o namoro e a traição.
O autor, que leciona no Centro de Pesquisas Interdisciplinares sobre Emoções da Universidade de Haifa (Israel), afirma que tais relacionamentos provocarão um incremento da imaginação e das capacidades intelectuais das pessoas envolvidas. Entretanto, assim como o consumo de drogas, o "cybering" também poderá provocar dependência no usuário, pois, ao "requerer mais e mais doses de imaginação", ele conduz ao aumento da distância entre a realidade "verdadeira" e o ciberespaço. O resultado disso, diz o autor na entrevista abaixo, concedida por e-mail, pode ser a alienação do indivíduo.
Mas Ben-Ze'ev pondera que "a natureza caótica e dinâmica do ciberespaço nunca irá substituir a natureza mais estável do "espaço real", pois não podemos viver em um caos completo". Nesse sentido, conclui, "aprender a integrar ciberespaço e "espaço real" no domínio romântico" será o grande desafio para a sociedade do século 21.
 
O sr. diz em seu livro que "a natureza interativa do ciberespaço exerce um profundo impacto sobre a estrutura social". Que tipo de impacto?
À medida que mais e mais pessoas mantêm relacionamentos on-line, eles se tornarão mais e mais prevalentes em um futuro próximo, quando a maior parte da população tiver se iniciado em atividades on-line mais cedo. Integrar os relacionamentos on-line e off-line, de modo que se possa aumentar tanto a satisfação com relacionamentos pessoais sérios quanto a excitação com relacionamentos mais transitórios, será um grande desafio para a sociedade e para os indivíduos.
A internet modificou dramaticamente o domínio do romântico e esse processo irá se acelerar no futuro. Tais alterações mudarão inevitavelmente as formas sociais atuais, como o casamento, a coabitação, as práticas românticas correntes relacionadas à sedução, sexo casual, namoros e a noção de exclusividade romântica. Podemos esperar um relaxamento das normas sociais e morais; esse processo não deveria ser considerado uma ameaça, pois não são as modificações on-line que põem em perigo os relacionamentos românticos, mas nossa falta de habilidade para nos adaptarmos a elas.
O relaxamento dessas normas ficará particularmente evidente em questões que dizem respeito à exclusividade romântica. Será difícil evitar inteiramente as alternativas disponíveis. A noção de "traição" será menos comum no que diz respeito aos casos românticos.
Assim como o aumento da flexibilidade romântica, valores como estabilidade e maior camaradagem serão mais importantes. A natureza caótica e dinâmica do ciberespaço nunca irá substituir a natureza mais estável do "espaço real", pois não podemos viver em um caos completo: do mesmo modo que outros tipos de significado, o significado emocional pressupõe algum tipo de base estável contra a qual ele é gerado. Apesar disso, o domínio romântico se tornará mais dinâmico, e será mais difícil perfazer as vantagens emocionais de uma estrutura romântica estável.

Como os relacionamentos on-line irão modificar o sentido da "traição" nas relações off-line?
"Ciberadultério" e "ciberinfidelidade" são mais fáceis de realizar e colocam o agente em uma posição menos vulnerável, já que as chances de ser "fisgado" ou sair ferido são consideravelmente reduzidas. Eles também abarcam um grau menor de traição na medida em que envolvem mais elementos imaginativos; o grau de negligência em relação aos interesses do parceiro também pode ser menor.
A prevalência de tais "affairs" on-line tornará as relações extraconjugais mais comuns e, por causa disso, mais aceitáveis. O relaxamento das normas morais será particularmente evidente em questões que dizem respeito à exclusividade romântica. Será difícil evitar inteiramente a vasta quantidade de alternativas atraentes disponíveis. A noção forte e muito negativa de "traição" se tornará menos comum em conexão com os "affairs" românticos; já outras noções, como "pular a cerca", serão mais comuns.


A prevalência dos "affairs" on-line tornará as relações extraconjugais mais comuns e, por causa disso, mais aceitáveis


Do ponto de vista dos efeitos psicológicos, quais as diferenças entre o amor "convencional" e o "on-line"?
Em ambos os tipos de amor existem emoções reais, como desejo e ciúme. Mas existem muitas diferenças no que diz respeito à prevalência de vários aspectos em cada tipo de amor. No amor on-line, o papel da imaginação é muito maior. O ciberespaço revolucionou o papel da imaginação nos relacionamentos pessoais e elevou a imaginação de seu papel de ferramenta periférica -utilizada sobretudo por artistas e, no pior dos casos, por sonhadores e aqueles que, por assim dizer, não têm nada para fazer- a um meio central de relacionamento pessoal para muitas pessoas, que têm ocupações ou envolvimentos, mas preferem interagir on-line.
Embora algumas áreas do ciberespaço possam ser vistas como quartos de dormir eletrônicos, em outras áreas florescem tipos diferentes de relacionamento pessoal. Os seres humanos nunca tiveram acesso antes a um tipo ambivalente de relacionamento romântico, como é o caso do amor on-line.
Essa possibilidade apresenta um jogo inteiramente diferente no campo das interações pessoais. São as seguintes as áreas centrais do relacionamento romântico on-line: 1. distância e proximidade; 2. comunicação rica e direcionada; 3. anonimato e auto-revelação; 4. falsidade e sinceridade; 5. descontinuidade e descontinuidade; 6. investimento físico marginal e investimento mental considerável.
A internet encoraja outros tipos de troca em relacionamentos românticos. Assim, a proeminência da comunicação verbal em comunicações on-line provavelmente irá aumentar a importância das habilidades intelectuais nas interações românticas.
Romances on-line provavelmente dependerão mais da combinação de emoções e inteligência, incluindo aspectos verbais e intelectuais como senso de humor e boa articulação. O valor das características pessoais -em comparação com o valor da aparência externa- provavelmente aumentará. Embora essa mudança deva ter menos impacto à medida que a maior parte dos computadores for sendo equipada com "webcams", mesmo assim ela será evidente, já que os relacionamentos on-line continuarão a ser baseados em textos escritos.

Incremento da imaginação e habilidades intelectuais: "cybering", então, representa a quintessência da interação? Qual será o papel reservado à sedução?
"Cybering" é uma forma sedutora de interação. Ela é sedutora desde que, entre outras coisas, há apenas uma única imaginação e capacidades intelectuais. O anonimato e a grande disponibilidade para buscar parceiros contribui igualmente para a sedução na web.

O sr. se mostra bastante otimista no que diz respeito ao "cybering". O sr. não acredita que ele pode ser um tipo de relacionamento de mão única, em que o outro não passa de uma projeção de nós mesmos -em uma palavra, uma não-relação?
Realmente, vejo certas vantagens no fato de muitas pessoas manterem relacionamentos on-line, mas não creio que eles sejam capazes de substituir completamente aqueles off-line. Também vejo certos riscos em tais relações: um deles é que a imaginação pode exercer um papel grande demais.

Que tipo de pessoa ama "on-line"?
Em geral o ciberespaço atrai muitos tipos de pessoas, que, em seu conjunto, têm experiências emocionais positivas enquanto navegam. É provável que, no futuro, um número maior de pessoas passe por essa experiência. Hoje, diferentes tipos de pessoas obtêm diferentes graus de satisfação ao visitar o ciberespaço.

Como explicar as similaridades, como o sr. diz, entre "cybering" e ingestão de drogas?
"Cybering" é similar, em alguns poucos aspectos representativos, a tomar drogas. Ambos permitem acesso fácil ao prazer, que, com freqüência, é baseado em realidades virtuais. Em ambos os casos, os resultados estimulantes podem tornar as pessoas viciadas no método; as pessoas querem mais e mais, mas a satisfação é limitada e se torna cada vez mais custoso obtê-la. Um desejo de consumo por drogas e "cybering" não-realizado pode provocar grande sofrimento. Uma vez dados os primeiros passos nas relação on-line ou na ingestão de drogas, a situação pode com freqüência seguir seu próprio curso quase involuntariamente. As conversas on-line, assim como as drogas, estimulam artificialmente os centros do prazer no cérebro.
A estimulação artificial pode parecer fácil e barata; entretanto o preço pode ser alto em termos de nossa performance geral e, em particular, em termos do preço que aqueles próximos de nós, em nossas vidas off-line, poderiam ter que pagar. A excitação que muitas pessoas encontram em interações on-line rapidamente enfraquece e é substituída pelos aspectos mais tolos e rotineiros da vida cotidiana. Além do mais, assim como com as drogas, ficar excitado com relações on-line pode requerer mais e mais doses de imaginação -o que, em troca, pode aumentar a distância entre a realidade "verdadeira" e o ciberespaço.

Nesse sentido, os relacionamentos amorosos on-line podem conduzir à alienação do indivíduo?
Sim, eles podem levar à alienação, embora não necessariamente. Há vários riscos envolvidos nas relações on-line, mas também há certas vantagens. Um uso consciente e moderado da internet pode aumentar o peso das vantagens e diminuir o das desvantagens.

"Cybering" representa a consagração da individualidade nos tempos "hipermodernos" -na acepção do filósofo francês Gilles Lipovetsky- ou, ao contrário, representa uma nova e poderosa possibilidade de relacionamento?
Não acho que relações on-line vão se tornar a nova essência das experiências românticas modernas, mas elas constituem uma nova dimensão de tais experiências, que se tornarão cada vez mais populares. É bastante improvável que, no futuro, tanto os relacionamentos românticos on-line quanto off-line deixem de exercer um importante papel nas vidas das pessoas. Devido à natureza intrinsecamente incompleta dos relacionamentos on-line, relacionamentos satisfatórios off-line continuarão a ser considerados muito mais completos e desejáveis. Aprender a integrar ciberespaço e o "espaço real" no domínio romântico será o grande desafio para nossa sociedade.

Para o alemão George Simmel, um dos fundadores da sociologia e autor de uma influente "Filosofia do Amor", o amor é um dos exemplos mais representativos de "interação" -um conceito que, segundo ele, constituiria as sociedades enquanto tais. Nesse sentido, o amor "on-line" poderia ser considerado a quintessência da interação social?
Sob certo aspecto, os relacionamentos on-line reduzem a interação face a face, mas promovem outros tipos de interação. De modo diferente do que ocorre com a TV, os contatos on-line incrementam as relações sociais dentro da sociedade e, nesse sentido, apresentam, sem dúvida, valores sociais e psicológicos positivos.

Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em São Paulo, na Fnac (tel. 0/xx/11/4501-3000) e, no Rio de Janeiro, na livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/21/2533-2237).



Texto Anterior: + tecnologia: O futuro biônico de todos nós
Próximo Texto: Jogo propõe namoro interativo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.