São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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+ cultura

"Braço direito" de André Breton e um dos teóricos do grupo, o escritor e historiador da arte Sarane Alexandrian fala do futuro do movimento

Surrealismo, modo de usar

Leticia Maura Constant
free-lance para a Folha

Nos meios intelectuais franceses e europeus, o esboço de um "revival" surrealista se delineia com traços firmes. Um dos sinais mais evidentes dessa tendência foi a iniciativa de um grupo de professores e universitários franceses que "ressuscitou", em março deste ano, o "Caf Surrealista", no restaurante "La Coupole", em Paris, organizando reuniões de leitura e discussão no mesmo local onde os famosos e excêntricos integrantes do grupo se reuniram até 1939, quando explodiu a Segunda Guerra Mundial.
Nascido em Bagdá, o ensaísta, romancista e historiador de arte Sarane Alexandrian, 77, é um dos últimos integrantes vivos do surrealismo do pós-guerra. Depois de terminar seus estudos no Instituto de Psicologia da Sorbonne, dedicou-se exclusivamente à literatura, ligando-se intimamente a André Breton e outras personalidades do movimento. Ele chegou a ser designado pela imprensa da época como "o braço direito de Breton" e "o teórico número dois do surrealismo".
Alexandrian publicou cinco romances, duas coletâneas de novelas, sete livros sobre artistas surrealistas, além de numerosos ensaios sobre arte antiga e moderna, entre eles o "Surrealismo e o Sonho", pela editora Gallimard. Seus trabalhos sobre a sexualidade são particularmente reputados. Contador gracioso e carismático, ele recebeu o Mais! em seu escritório-ateliê para falar sobre sua cumplicidade amistosa e intelectual com André Breton, autor do manifesto surrealista de 1924 e um dos fundadores do movimento que revolucionou as artes e o pensamento do século 20.
 
Como aconteceu o seu primeiro contato com André Breton?
Durante a Segunda Guerra, Breton se exilou nos Estados Unidos. Assim que o conflito acabou, ele voltou para a França, em 1946. Eu lhe escrevi uma carta de 15 páginas, expondo algumas teorias pessoais, entre elas a da mística erótica, em que defendo que o amor deve se basear na intimidade contida no pronome pessoal "você", em vez da reverência sugerida por "senhor ou senhora". Breton adorou e me convidou imediatamente para participar do catálogo da Exposição Surrealista de 1947, extraordinária e extravagante, com a presença de surrealistas de 24 países. Marcel Duchamp desenhou o catálogo, um seio de mulher com a inscrição "Favor Tocar".

Em 1948 foi lançada a revista surrealista "Néon", que se tornou uma referência do movimento, apesar de não ter passado do quinto número. Como foi essa aventura?
"Néon" nasceu em condições dificílimas. Naqueles tempos de pós-guerra não havia papel, era quase impossível imprimir. Foi a criatividade do poeta exilado tcheco Jindrich Heisler que salvou o projeto. Ele sugeriu fazermos a revista sob forma de jornal, com uma composição tipográfica original, textos em fac-símiles, imagens e a própria escrita de Breton. Toda a revista foi criada no ateliê do pintor romeno Victor Brauner, no número 2 da rue Perrel, em Paris. Esse ateliê era famoso porque havia pertencido ao pintor Henri "Douanier" Rousseau. Nós trabalhávamos horas a fio, de vez em quando a mulher de Victor Brauner, Jacqueline, nos servia chocolate quente com torradas, era o nosso jantar. Eles tinham também uma cachorra enorme, que sofria de gravidez psicológica, era totalmente... surrealista! (risos). Apesar da precariedade e da falta de dinheiro, tínhamos a impressão de estarmos vivendo uma aventura cotidiana.

No surrealismo, o amor é enfocado sob todos os prismas, da sublime exaltação ao erotismo mais violento.
Exatamente, o amor estava presente em tudo. O amor louco, o desejo desejado, a mulher como musa, objeto de veneração absoluta. O amor foi o núcleo de uma pesquisa realizada em 1929 . Quatro anos depois foi feita uma variante, Sobre o tema do encontro.


A sala estava lotada, os espíritos inflamados, parecia um processo "staliniano", uma loucura! Sem mudar minha posição, resolvi ir embora; no dia seguinte, fiquei sabendo que Victor Brauner e eu tínhamos sido excluídos do grupo


André Breton defendia com unhas e dentes uma ordem moral rígida e intransigente, que acabou desencadeando uma série de expulsões, decididas em violentos julgamentos. Por que o senhor também foi excluído do grupo, em 1948?
É uma história complicada. Os surrealistas eram grandes fofoqueiros. Marcel Duchamp estava em Nova York na época em que o pintor armênio Arshile Gorki se suicidou. Duchamp contou ao grupo que Gorki tinha se matado por ter descoberto que sua mulher havia tido uma ligação com Matta. Assim que soube do fato, Breton acusou Matta de ser o responsável pela morte de Arshile Gorki e organizou um julgamento em que todos os membros do grupo compareceram. Breton propôs a votação para a exclusão de Matta, que, aliás, nunca pôde se defender, por "ignomínia moral". Todos votaram a favor, menos Victor Brauner, o doutor Pierre Mabi e eu. Como era muito jovem, e Mabi era o médico particular de Breton, fomos deixados de lado.
Mas Brauner não tinha o direito de não votar. Breton o convocou para um novo julgamento, no Café de la Place Blanche, frequentado por todos os surrealistas de Paris. Victor Brauner estava doente e eu fui no lugar dele, para defender o seu ponto de vista. A sala estava lotada, os espíritos inflamados, parecia um processo "staliniano", uma loucura! Sem mudar minha posição, resolvi ir embora.
No dia seguinte, fiquei sabendo que Victor Brauner e eu tínhamos sido excluídos do grupo. Fiquei muito infeliz, vivi muito mal essa decisão e me afastei definitivamente de Breton, sem jamais deixar de admirá-lo. As exclusões eram comuns. Salvador Dali foi expulso em 1939 por razões políticas, ele se definia como anarco-monarquista, e a doutrina do grupo era marxista.
O pintor Max Ernst também não escapou e foi afastado em 1954, por ter aceitado o Grande Prêmio da Bienal de Veneza. Os surrealistas tinham por princípio recusar os prêmios das grandes instituições. Eu poderia citar dezenas de outros exemplos envolvendo artistas e escritores famosos.

O surrealismo foi, acima de tudo, uma grande aventura espiritual, vivida por várias pessoas. O senhor acha que seria possível reviver essa aventura, hoje?
Sim. Mas imagino um movimento mais amplo, internacional, com a participação de artistas de horizontes culturais diferentes, cuja sede seria em Paris, claro! Eu estive recentemente no Líbano, para uma série de conferências, e fiquei surpreso. Na capital, Beirute, encontrei muitos escritores apaixonados pelo movimento. Posso citar o poeta Abdul Kader El Janabi, que publicou aqui na França um retrato magnífico do surrealismo e da poesia, analisado sob a ótica árabe. Capitais européias, como Bucareste e Moscou, também têm promovido exposições, conferências e reflexões sobre essa corrente.
Uma outra característica de um "surrealismo moderno" seria a síntese das artes, pois anteriormente nem todos os gêneros eram aceitos. Por exemplo, dentro da literatura, o romance não era admitido.
Por último, acho que deveríamos buscar uma universalidade maior.

O senhor recebe diariamente, em seu escritório, grupos de estudantes sedentos de vanguarda, com a idéia de fundar um novo movimento surrealista. Essa juventude estaria pronta para assumir novas ações e revoluções poéticas?
Eles não têm o espírito livre que havia na época, essa intenção interna de ir além da história do próprio surrealismo. A preocupação com o futuro é um dos grandes empecilhos para que eles soltem o seu "eu". Mas é aí que entra o meu papel. Posso dizer que hoje imito um pouco Breton com os jovens que me procuram -faço hoje como ele fez comigo quando me conheceu, aos 18 anos. Tento iniciar as pessoas, trabalhar sua sensibilidade, como Breton, que ensinava tudo como um jogo, decodificava cada etapa do processo criativo.
Eu luto para conservar o que chamo de "espírito do fogo", que é o espírito do próprio surrealismo, alimentado pela chama criativa, pela chama do amor.

O surrealismo continua a surpreendê-lo?
Uma vez, Breton pediu que eu desse uma entrevista, em seu lugar. Respondendo a uma pergunta do jornalista, eu disse que o movimento surrealista dominaria o século 20. Mas nunca imaginei que seria, também, um movimento do século 21. Foi viver para crer.


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