São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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Com heresias e torturas, "As Tentações de Santo Antão" mostram Flaubert ainda às voltas com clichês românticos

O demônio da extravagância

Raquel de Almeida Prado
especial para a Folha

Para quem só conhece o Gustave Flaubert de "Madame Bovary" -obra-prima que, retrospectivamente, é vista como inaugural do romance naturalista-, a leitura de "As Tentações de Santo Antão" deve provocar grande surpresa. Como é possível que um campeão da narrativa impessoal, da rigorosa objetividade na observação da matéria ficcional, possa se entregar assim, despudoradamente, às fantasias mais extravagantes de um romantismo desenfreado? Afinal, todos sabem que aos espíritos mais científicos não agrada a arte visionária... O fato é que "Bovary" se destacou na produção romanesca de Flaubert justamente como reação, disciplina imposta contra essa sensibilidade exacerbada e neurastênica, o "mal du siècle", que se derramava desde o início, em suas produções juvenis. "Catarse meditativa", diz Benedetto Croce, por meio de "esforço doloroso e heróico de liberação das escórias do baixo romantismo que a sua adolescência havia exaltado"...


Como é possível que um campeão da narrativa impessoal possa se entregar às fantasias mais exóticas?


Segundo relatos da crônica literária, a primeira versão das "Tentações" teria sido escrita, fervorosamente, entre 1848 e 1849, e submetida à avaliação dos amigos Maxime du Camp e Louis Bouilhet, numa leitura ininterrupta que durou quatro dias, redundando em inapelável condenação. Teriam sido os dois amigos, então -diz o próprio Du Camp, atribuindo-se assim papel importante na criação de "Madame Bovary"- que lhe sugeriram escrever sobre um caso banal de adultério e suicídio, como forma de "disciplinar" aquela verbosidade transbordante.

Exotismo
Submetendo-se ao veredicto dos amigos, Flaubert teria engavetado suas "Tentações" para dedicar-se à dissecação impiedosa da burguesia provinciana, que acabou por estabelecer sua fama. Mas o demônio do exotismo continuava a tentá-lo... O processo de "Madame Bovary", acusado de imoralidade, ainda não lhe permite retomar as visões assombrosas do santo eremita, que viriam confirmar as acusações lançadas contra ele. Dedica-se então a "Salambô", romance cartaginês (cuja "autenticidade histórica" e cor local lembram uma produção de Cecil B. de Mille), esquisitice parnasiana que tem o seu charme feroz. Romance, sim, mas romance escrito sobre idéias de poeta, como diz Albert Thibaudet, que vê em "Salambô" uma costela retirada do "Santo Antão", recluso na gaveta de Flaubert. Nada da psicologia de Emma Bovary ou de Mme. Arnoux (heroína de "A Educação Sentimental"), mas mito lunar de deusas do Oriente, fascínio de erotismo sanguinário -na linha do imaginário sadiano, mas corrigido pelo cuidado estilístico de um artista verdadeiro. Ainda citando Thibaudet, existe em "Salambô" uma "alucinação da coisa morta que contribuiu a dar-lhe um prestígio simbólico sobre a imaginação", fazendo dela uma antecessora da "Herodíade" de Mallarmé. Era aquela ambição, já afirmada por Flaubert em sua correspondência, de escrever uma obra "gratuita", que se sustentasse apenas pela força do estilo; ambição, pois, de um mártir do esteticismo, eremita em sua torre de marfim, tentando realizar-se. Seguindo o movimento pendular que o leva da exaltação romântica à prática laboriosa da autocrítica, Flaubert retoma, sucessivamente, "A Educação Sentimental" e "As Tentações de Santo Antão" para lhes dar forma definitiva. O fracasso da primeira, a morte dos amigos, a guerra trazem-no de volta para a torre, em 1870. É aí que ele se lança, furiosamente, naquela que ele chama de "obra de toda a sua vida", já que a primeira idéia lhe surgira em 1845, em Gênova, diante do "Santo Antão" de Brueghel, a qual, desde então, nunca deixara de acalentar... E de nela se projetar, identificando-se com o eremita, na solidão monástica de quem busca na arte refugiar-se da vida. Abreviando, cortando, sintetizando, Flaubert chega à versão definitiva, reduzida à metade da primeira. Mesmo assim, fica a sensação de que o supérfluo sufoca o essencial, ou, na formulação mais elegante de Paul Valéry, Flaubert parece ter ficado "como que inebriado com o acessório em detrimento do principal", perdendo a unidade da composição na diversidade dos "momentos e retalhos".

Maldição e volúpia
O cortejo de heresias, vampiros, torturas, virgens despedaçadas, profanações, aquela "mescla de maldição e volúpia", começam por seduzir o leitor, assim como toda essa geração, a de Baudelaire, Delacroix, Gautier e companhia, se deixou seduzir pelas orgias frenéticas e sangrentas do marquês de Sade. Mas ao cabo de alguns capítulos, a enciclopédica e interminável enumeração de diabruras acaba por se tornar um pouco enfadonha... Não tanto quanto as obras do próprio Sade, é claro, já que Flaubert é capaz de alcançar momentos de poesia pura que justificam a leitura das suas "Tentações".
A edição caprichada da editora Iluminuras ainda contém reproduções das litografias de Odilon Redon, inspiradas pela leitura da obra. A questão do estatuto da ilustração na obra literária, polêmica, tanto para Flaubert quanto para Redon, é discutida com pertinência por Denis B. Molino. Uma introdução (já citada) de Paul Valéry e um ensaio de Contador Borges enriquecem a leitura da excelente tradução de Luís de Lima.

Raquel de Almeida Prado é autora de "Perversão da Retórica, Retórica da Perversão" (editora 34) e "A Jornada e a Clausura" (ed. Ateliê). É professora de artes cênicas na Fundação Educacional São Carlos.

As Tentações de Santo Antão
255 págs., 44,00 de Gustave Flaubert. Tradução de Luís de Lima. Ed. Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, CEP 01426-001, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/ 11/ 3068-9433).



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