|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LITERATURA
Há cem anos morria o autor de "Por Quem os Sinos Dobram" e "O Velho e o Mar"
A inquietude de Hemingway
MOACYR SCLIAR
especial para a Folha
Lembro que, quando Ernest
Hemingway morreu, as notícias
não mencionaram a causa da
morte. Muito tempo depois ficou-se sabendo que o escritor tinha se
suicidado, com uma arma de caça, em sua propriedade em Ketchum, Idaho. O fato reflete o escrúpulo da época quanto ao suicídio, mas reflete também uma perplexidade: ninguém podia imaginar que um homem corajoso e
aventureiro como Hemingway
pudesse terminar dessa maneira.
Mas esse destino já estava embutido em seu passado. Aos 22
anos Hemingway viajou à Europa
na qualidade de correspondente
de um jornal canadense, o "Toronto Star Weekly". Levava consigo uma maleta, contendo toda
sua produção literária, contos e
poemas. Essa maleta, ele a perdeu
num trem. E não tinha cópia de
nenhum dos textos. Agora: perder originais não é uma coisa rara
entre escritores; mas perder toda
a obra sugere que o jovem Hemingway não tinha muita certeza
do seu valor -como autor e talvez como pessoa. Entre a perda da
fatídica maleta e o tiro final há,
portanto, um certo nexo. Mas há
também grandeza. Há uma vida
intensa. E há literatura. Em Hemingway, mais do que na maioria
dos escritores, literatura e vida estão indissoluvelmente ligadas.
Nascido em Oak Park, Illinois,
em 21 de julho de 1899, Hemingway era filho de médico. Em
criança acompanhava o pai, clínico geral do interior, em atendimentos muitas vezes feitos em
circunstâncias difíceis. Essa experiência marcou-o profundamente
e apareceria de forma direta ou
indireta em sua obra. Experiências marcantes, aliás, não faltaram
a Ernest Hemingway, que teve
uma vida movimentada, cheia de
peripécias. Nesse sentido, ele seguia o ideal romântico do escritor
que percorre o mundo em busca
de emoções fortes -ideal este
personificado, por exemplo, em
Lord Byron.
Mas enquanto Byron -"mad,
bad and dangerous to know", na
expressão de sua contemporânea
Lady Caroline Lamb- entregava-se a todo tipo de excentricidades e descalabros, Hemingway era
um homem mais sintonizado
com os acontecimentos de seu
tempo. Em 1917 apresentou-se
voluntariamente para servir na
Primeira Guerra Mundial. Chofer
de ambulância, foi ferido em 1918,
sofrendo comoção cerebral. Segundo o crítico Philip Young, esse
trauma explicaria as características da obra de Hemingway - é a
"teoria traumática", que o próprio escritor nunca levou a sério.
Depois da guerra, ficou em Paris e viveu o clima dos loucos anos
20. Conviveu então com a "geração perdida" de americanos que
lá se encontravam - jovens artistas, escritores e intelectuais que
bebiam muito e tinham muito talento. Foi aceito no grupo de Gertrud Stein, Ford Madox Ford e
Ezra Pound. Em 1923 apareceu
seu primeiro livro, "Three Stories
and Ten Poems" -a mistura de
gêneros sugerindo a indefinição
própria de sua imaturidade. De
qualquer modo o seu talento narrativo já estava ali presente e mais
ainda em "The Sun Also Rises"
("O Sol Também Se Levanta",
1926), em que celebrou o seu grupo de expatriados.
Já a lembrança da guerra gerou
"A Farewell to Arms" ("Adeus às
Armas", 1929), uma bela e romântica novela, que o consagrou
nos Estados Unidos. Essa ascensão rápida demais não deixou de
prejudicá-lo. Àquela altura já estava de volta à América, dividindo
o tempo entre a Flórida -onde
pescava- e Utah - onde caçava.
Dois casamentos fracassaram, e
ele voltou-se contra velhos amigos como Scott Fitzgerald e John
dos Passos; foi nessa época que
passou a assinar "Pappy", apelido
pelo qual veio a ser conhecido.
Durante esse período, dedicou-se
a escrever contos.
Atraído pela guerra civil na Espanha, para lá se dirigiu como jornalista. Ainda que tivesse descrito
a situação política em Madri como "um carnaval de traição e podridão", manteve-se fiel à causa
republicana, da qual era forte
simpatizante. De novo, a experiência do conflito deu origem a
um romance, o famoso "For
Whom the Bells Tolls" ("Por
Quem os Sinos Dobram", 1940).
O título é tirado de um verso do
metafísico poeta inglês John Donne (1573-1631): "Não perguntes
por quem os sinos dobram; eles
dobram por ti"; e, a propósito,
mostra que Hemingway, apesar
das aparências, estava longe de
ser um escritor intuitivo.
Leitor voraz, ele listava entre os
autores que o influenciaram, além
de Donne, Mark Twain, Flaubert,
Stendhal, Tolstói, Tchecov, Shakespeare, Quevedo, Dante; e também Bach, Mozart, Goya, Giotto,
Van Gogh. Muitas das obras de
Hemingway foram levadas ao cinema, mas "Por Quem os Sinos
Dobram" teve um sucesso especial: estrelada por Gary Cooper,
no papel do americano ingênuo e
idealista, e Ingrid Bergman, como
a mocinha, fez multidões chorarem.
Se até então a vida de Hemingway tinha sido um misto de aventura e literatura, a partir daí tornou-se mais aventura do que literatura. Viajou por vários lugares
em busca das emoções que pudessem lhe proporcionar a caça
de grande animais, as touradas, as
lutas de boxe, assuntos sobre os
quais escrevia textos jornalísticos
e que passaram a condicionar a
sua vida. De um texto pronto e
publicado dizia, por exemplo, que
era "um leão morto" e portanto
sem interesse. Depois da Segunda
Guerra radicou-se em Cuba e ali
permaneceu, mesmo depois da
ascensão de Fidel Castro ao poder. Com o novo regime manteve
uma relação distante, mas cordial.
O bar que frequentava em Havana é ainda ponto de atração turística.
Mas seu talento literário parecia
ter se esgotado. Então, em 1952,
apareceu "The Old Man and the
Sea" ("O Velho e o Mar"). Promovido furiosamente pela editora, o
livro anunciaria a ressurreição literária de Hemingway. Funcionou: a obra recebeu o prêmio Pulitzer daquele ano e dois anos
mais tarde o próprio Hemingway
era agraciado com o Nobel. Quarenta anos depois, a repercussão
de "O Velho e o Mar" parece um
tanto exagerada. Trata-se de uma
curta novela (127 páginas, na edição da Scribner) descrevendo a
luta de um pescador com o peixe
gigantesco que fisgou.
O que sensibilizou os leitores
foi, sobretudo, o aspecto simbólico do texto: o velho era claramente o próprio Hemingway, o peixe
com que ele lutou, a literatura ou a
própria vida. O cinema mais uma
vez ajudou: o filme, com Spencer
Tracy no papel do pescador, popularizou a obra. O texto é puro
Hemingway: o estilo seco, econômico, austero. O laconismo do
macho americano, do herói do
Oeste que, segundo o crítico Leslie Fiedler, lhe serve de modelo:
"Para Hemingway há muitos Oestes", diz em "Love and Death in
the American Novel".
No meu modo de ver, Hemingway sai-se melhor na ficção curta,
na qual a busca pelo essencial
("Todo escritor deve ter um detector da merda", dizia) se torna
imperativa. Alguns de seus contos
estão entre os clássicos do gênero.
"The Snows of Kilimandjaro"
("As Neves do Kilimanjaro") figura em numerosas antologias, como aquele fantástico parágrafo
inicial em que o escritor fala da
carcaça do leopardo encontrada
no alto da montanha, e diz: "Ninguém explicou o que o leopardo
estava procurando em tal altitude", frase que, de novo, pode ser
um resumo da vida do próprio
Hemingway.
Meu favorito, porém, é "The Killers" ("Os Assassinos"), que, como "As Neves do Kilimanjaro",
foi filmado, e duas vezes, com direção de Robert Siodmak (1946) e
Donald Siegel (1964). A história é
simples, brutal mesmo. Dois matadores de aluguel entram num
bar, procurando por um tal Sueco. Um garoto é despachado para
avisar o homem de que ele corre
perigo. Para sua surpresa, o Sueco
diz que não mais fugirá, que é inútil. Os cineastas buscaram desvendar o mistério que envolve o Sueco -por que ele está sendo caçado? por que não reage?-, mas este é, no meu entender, um empreendimento dispensável: a
grandeza do texto reside justamente nessa incógnita e na perplexidade do menino diante dela,
a perplexidade de qualquer garoto que tenta, em vão, entender o
seu pai. E o segredo da vida e da
morte.
É inútil, disse a si próprio Ernest
Hemingway em 2 de julho de
1961. Com a arma usada para abater a caça ele deu o repouso final à
inquietude que o perseguia. Da
qual a sua obra dá um significativo testemunho.
Moacyr Scliar é escritor, autor de "O Centauro no Jardim" (L&PM) e "Contos Reunidos" (Companhia das Letras).
Texto Anterior: Notas Próximo Texto: Em português Índice
|