São Paulo, domingo, 18 de outubro de 2009

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Minas ligeiras

AUTOR FLAGRA CONTRASTE ENTRE RIQUEZA E MISÉRIA, MAS NÃO COMPREENDE ALEIJADINHO E AS IGREJAS BARROCAS

LAURA DE MELLO E SOUZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

As Minas Gerais de Stefan Zweig compreendem algumas das cidades ditas históricas que visitou no início dos anos 1940, perdidas no meio de montanhas como as da Suíça, paradas no tempo a ponto de fazê-lo questionar a serventia de, ali, contarem-se as horas. Resíduos de um passado de riqueza rápida, imprevidente e efêmera, típica das zonas auríferas.
Como qualquer estrangeiro surpreso, Zweig caçou analogias para organizar o pensamento ou mesmo, talvez, para se fazer entender pelo público europeu. Ouro Preto? Uma Toledo sombria. Sabará, Congonhas, São João del Rei? Eram a Veneza, a Salzburgo, a Aigues-Mortes do Brasil.
Zweig percebeu o contraste entre riqueza e miséria, passado e futuro, detendo-se com admiração sobre Belo Horizonte, cidade planejada como Washington, dona do mais belo pôr do sol do Brasil.

"Magia demoníaca"
Quis ficar nas margens do rio das Velhas para surpreender algum garimpeiro feliz com a descoberta de uns grãozinhos de ouro, mas o desestimularam. Assistiu à prospecção moderna do minério, impressionando-se com a trabalheira gasta para conseguir um lingote delgado e frio.
Desencantado, concluiu que tanto fazia a técnica rudimentar dos aventureiros setecentistas ou a sofisticada dos ingleses de seu tempo: o ouro, capaz de exercer "magia demoníaca" sobre os homens de todas as épocas, não passava, como vaticinaram antigos e modernos, de ledo engano.
Não gerava riqueza, acumulava-a entre uns poucos, deixando multidões à míngua. O melhor que dele ficou nas Minas foram as artes -as "igrejas resplandecentes", os profetas de Aleijadinho- que Zweig não entendeu, mas que, como bom europeu, respeitador de ideais, reverenciou.
Achou que as joias da arquitetura religiosa eram barroco jesuítico, que o risco das igrejas "certamente" viera de Portugal, sem perceber a forte carga inventiva delas, capaz ainda hoje de extasiar especialistas de toda parte.
De Aleijadinho, reproduziu o mito do artista defeituoso e, "apesar de todos os erros técnicos e imperfeições" dos profetas, reconheceu que eram imponentes. De certa forma, o passado que Zweig captou nas cidades mineiras dos anos 40 -sua atmosfera, sobretudo- perdeu-se para sempre. Buscando o país do futuro, ele não chegou a elaborar o sentido daqueles vestígios extraordinários.
Será que foram os mineiros que despistaram Zweig com os fantásticos fragmentos de história que ele desfia ao longo do capítulo dedicado a Minas Gerais, dignos de figurar no "Samba do Crioulo Doido", de Stanislaw Ponte Preta?
Vila Rica teria mais de cem mil habitantes: a cidade mais rica, mais bela e mais populosa das Américas. Na mesma época -meados do século 18- Nova York e o Rio não passariam de "povoados insignificantes" (cabe lembrar que uma dessas aldeias, o Rio, tornou-se sede administrativa do Estado do Brasil em 1763, alojando vice-reis e ostentando uma urbanização meticulosamente levada a cabo desde o fim da década de 1730).
E tem mais. Na mesa de jogo, "indivíduos sujos" perdiam numa noite "somas com as quais na Europa se poderia adquirir os quadros mais valiosos de Rafael e Rubens, equipar navios inteiros ou construir palácios magníficos".

Coração generoso
Vá lá que, como tantos até pouco tempo, Zweig acreditasse no mito de Aleijadinho; mas seria perfeitamente dispensável -sobretudo a alguém que fugia do terror nazista- deter-se, com ambiguidade, nos seus aspectos fisionômicos: "Feiura demoníaca", "beiços grossos de negro", "orelhas grandes", "olhos injetados sempre irados", "boca inteiramente desdentada e torta"...
Sem falar das filigranas: confunde faiscador -que fica catando ouro- com garimpeiro -típico da região dos diamantes-; embola os nomes das vilas antigas -Vila Rica e Vila Albuquerque são, na verdade, uma só-; escreve loucuras sobre o levante de Filipe dos Santos, e por aí vai. Zweig foi um coração generoso e um admirador sincero do Brasil, mas não escapava aos cacoetes etnocentristas comuns no Velho Continente.
A epígrafe do livro, de autoria do diplomata austríaco conde Prockesh-Osten e datado de 1868, já diz tudo: "Um país novo, um porto magnífico [...], uma terra do futuro e um passado quase desconhecido...". Ou noutras palavras: uma terra do futuro quase sem passado, sem história, portanto. Minas Gerais, irmã mais moça das zonas antigas da orla marítima, é hoje muito bem estudada por uma historiografia magnífica, das mais pujantes.
Se Zweig voltasse às velhas cidades do ouro ficaria talvez muito triste com o passado que ali se perdeu, mas poderia dispor de uma bibliografia rica e variada para entendê-las melhor: neste sentido -como em tantos outros- o Brasil chegou ao futuro.
Nenhum estrangeiro amante do país se permitiria, hoje, as liberdades e ligeirezas que Zweig se permitiu ao tratar do nosso passado.


LAURA DE MELLO E SOUZA é historiadora e professora titular na USP, autora de "Norma e Conflito" (ed. UFMG), entre outros livros.


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