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Minas ligeiras
AUTOR FLAGRA CONTRASTE ENTRE RIQUEZA E MISÉRIA, MAS NÃO COMPREENDE ALEIJADINHO E AS IGREJAS BARROCAS
LAURA DE MELLO E SOUZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
As Minas Gerais de
Stefan Zweig compreendem algumas
das cidades ditas
históricas que visitou no início dos anos 1940,
perdidas no meio de montanhas como as da Suíça, paradas
no tempo a ponto de fazê-lo
questionar a serventia de, ali,
contarem-se as horas. Resíduos de um passado de riqueza
rápida, imprevidente e efêmera, típica das zonas auríferas.
Como qualquer estrangeiro
surpreso, Zweig caçou analogias para organizar o pensamento ou mesmo, talvez, para
se fazer entender pelo público
europeu. Ouro Preto? Uma Toledo sombria. Sabará, Congonhas, São João del Rei? Eram a
Veneza, a Salzburgo, a Aigues-Mortes do Brasil.
Zweig percebeu o contraste
entre riqueza e miséria, passado e futuro, detendo-se com
admiração sobre Belo Horizonte, cidade planejada como
Washington, dona do mais belo
pôr do sol do Brasil.
"Magia demoníaca"
Quis ficar nas margens do rio
das Velhas para surpreender algum garimpeiro feliz com a
descoberta de uns grãozinhos
de ouro, mas o desestimularam. Assistiu à prospecção moderna do minério, impressionando-se com a trabalheira
gasta para conseguir um lingote delgado e frio.
Desencantado, concluiu que
tanto fazia a técnica rudimentar dos aventureiros setecentistas ou a sofisticada dos ingleses de seu tempo: o ouro, capaz
de exercer "magia demoníaca"
sobre os homens de todas as
épocas, não passava, como vaticinaram antigos e modernos,
de ledo engano.
Não gerava riqueza, acumulava-a entre uns poucos, deixando multidões à míngua.
O melhor que dele ficou nas
Minas foram as artes -as "igrejas resplandecentes", os profetas de Aleijadinho- que Zweig
não entendeu, mas que, como
bom europeu, respeitador de
ideais, reverenciou.
Achou que as joias da arquitetura religiosa eram barroco
jesuítico, que o risco das igrejas
"certamente" viera de Portugal, sem perceber a forte carga
inventiva delas, capaz ainda hoje de extasiar especialistas de
toda parte.
De Aleijadinho, reproduziu o
mito do artista defeituoso e,
"apesar de todos os erros técnicos e imperfeições" dos profetas, reconheceu que eram imponentes.
De certa forma, o passado
que Zweig captou nas cidades
mineiras dos anos 40 -sua atmosfera, sobretudo- perdeu-se para sempre. Buscando o
país do futuro, ele não chegou a
elaborar o sentido daqueles
vestígios extraordinários.
Será que foram os mineiros
que despistaram Zweig com os
fantásticos fragmentos de história que ele desfia ao longo do
capítulo dedicado a Minas Gerais, dignos de figurar no "Samba do Crioulo Doido", de Stanislaw Ponte Preta?
Vila Rica teria mais de cem
mil habitantes: a cidade mais
rica, mais bela e mais populosa
das Américas. Na mesma época
-meados do século 18- Nova
York e o Rio não passariam de
"povoados insignificantes" (cabe lembrar que uma dessas aldeias, o Rio, tornou-se sede administrativa do Estado do Brasil em 1763, alojando vice-reis e
ostentando uma urbanização
meticulosamente levada a cabo
desde o fim da década de 1730).
E tem mais. Na mesa de jogo,
"indivíduos sujos" perdiam numa noite "somas com as quais
na Europa se poderia adquirir
os quadros mais valiosos de Rafael e Rubens, equipar navios
inteiros ou construir palácios
magníficos".
Coração generoso
Vá lá que, como tantos até
pouco tempo, Zweig acreditasse no mito de Aleijadinho; mas
seria perfeitamente dispensável -sobretudo a alguém que
fugia do terror nazista- deter-se, com ambiguidade, nos seus
aspectos fisionômicos:
"Feiura demoníaca", "beiços
grossos de negro", "orelhas
grandes", "olhos injetados
sempre irados", "boca inteiramente desdentada e torta"...
Sem falar das filigranas: confunde faiscador -que fica catando ouro- com garimpeiro
-típico da região dos diamantes-; embola os nomes das vilas antigas -Vila Rica e Vila Albuquerque são, na verdade,
uma só-; escreve loucuras sobre o levante de Filipe dos Santos, e por aí vai.
Zweig foi um coração generoso e um admirador sincero
do Brasil, mas não escapava aos
cacoetes etnocentristas comuns no Velho Continente.
A epígrafe do livro, de autoria
do diplomata austríaco conde
Prockesh-Osten e datado de
1868, já diz tudo: "Um país novo, um porto magnífico [...],
uma terra do futuro e um passado quase desconhecido...".
Ou noutras palavras: uma
terra do futuro quase sem passado, sem história, portanto.
Minas Gerais, irmã mais moça das zonas antigas da orla marítima, é hoje muito bem estudada por uma historiografia
magnífica, das mais pujantes.
Se Zweig voltasse às velhas
cidades do ouro ficaria talvez
muito triste com o passado que
ali se perdeu, mas poderia dispor de uma bibliografia rica e
variada para entendê-las melhor: neste sentido -como em
tantos outros- o Brasil chegou
ao futuro.
Nenhum estrangeiro amante
do país se permitiria, hoje, as liberdades e ligeirezas que Zweig
se permitiu ao tratar do nosso
passado.
LAURA DE MELLO E SOUZA é historiadora e
professora titular na USP, autora de "Norma e
Conflito" (ed. UFMG), entre outros livros.
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