São Paulo, domingo, 18 de outubro de 2009

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Norte nas nuvens

VISTA SOMENTE DO ALTO, DURANTE UMA VIAGEM AÉREA, REGIÃO SURGE DISTORCIDA NA INTERPRETAÇÃO DO AUSTRÍACO

EVALDO CABRAL DE MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Percorrer as páginas que Stefan Zweig dedicou ao norte do Brasil provoca enorme saudade dos livros de viagens daqueles estrangeiros (e foram muitos) que, no decurso do século 19, escreveram sobre o país.
Sobretudo os livros de viajantes ingleses que, desde o século 18, eram mestres consumados na arte de dar o mundo a ver a seus conterrâneos. Estes, sendo uma maioria esmagadora de leitores da classe média, não haviam tido a fortuna de atravessar o canal da Mancha à procura de "algo nuevo que mirar", como Ponce de León ao partir para a Flórida.
Aos olhos de uma Inglaterra que se industrializava a todo vapor (no duplo sentido da expressão), o mundo tornava-se crescentemente outro, crescentemente exótico, na medida mesmo em que, comparativamente à Inglaterra, ele não mudava ou mudava muito pouco. Daí nasce grande parte do interesse das impressões de viagem que um Beckford [1760-1844] ou um Southey [1774-1843] dedicaram a Portugal ou um Borrow [1803-81] à Espanha -precisamente duas das nações que se achavam na retaguarda do que se passava na Inglaterra e no norte da Europa.
Com grande argúcia, eles surpreenderam e descreveram formas de vida nacional e regional que, elas também, estavam condenadas a desaparecer, mas a longo ou mesmo longuíssimo prazo, quase que só em nossos dias. Onde estão os editores brasileiros que não vêm editá-los?
No começo do século 19, eis que os ingleses também aportam a um Brasil mais exótico ainda do que a Europa meridional. É conhecido o que os historiadores brasileiros do período devem às obras, entre outras, de um Koster [Henry Koster, que aportou em 1809], de um Gardner [em 1836], de um Luccock [1808], de um Kidder [1837], de uma Maria Graham [1823], de um Mansfield (que deixou d. Pedro 2º tão ofendido que este contratou um foliculário estrangeiro para defender os brios nacionais).

Literatura e história
Nenhum desses autores possuía os dons literários de Zweig, que ao chegar aqui já era internacionalmente consagrado. E, contudo, seus livros estão vários furos acima do de Zweig, que, ao menos quando fala do norte à velha maneira (isto é, à maneira da República Velha, que, como o Império, só tinha norte e sul), não consegue ir além de banalidades condensadas de teor ensaístico, salvo ao descrever a festa do Senhor do Bonfim em Salvador.
Independentemente do caráter oficioso de "Brasil - Um País do Futuro", é evidente que a explicação da disparidade deve ser buscada alhures. Da Bahia ao Pará, Zweig deslocou-se de avião, e não de navio, cavalo ou carro de boi como os viajantes oitocentistas -os quais são meios de transporte que eminentemente permitem ver. Ele, aliás, justifica a superficialidade das observações com a desculpa esfarrapada de que "do alto, adquiro uma nova ideia acerca da imensidade desse país".
Do alto, porém, nem sequer da distância imposta atualmente pelas linhas do TGV [na França] ou pelas autoestradas pode-se ver um povo. Essa particularidade mesma nos oferece a pista para compreender por que razão os livros de viagens do século há pouco encerrado são tão decepcionantes. Num mundo de comunicações excessivamente instantâneas e fáceis (ao menos para meu gosto) e de cultura extremadamente visual, já não há lugar para o bom e velho livro de viagens.
Já não se precisa dele, pois já não se vive com a mesma intensidade a sensação de "dépaysement", que para o leitor é o segredo de tudo. Hoje em dia, quem quiser "se dépayser" pela leitura prefere as grandes obras de Malinowski e de outros antropólogos do século 20 que versaram as sociedades primitivas; ou de historiadores como Le Roy Ladurie, que constituiu o cotidiano de uma aldeia do Languedoc [região francesa] medieval.


EVALDO CABRAL DE MELLO é historiador, autor de "Olinda Restaurada" (ed. 34).


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