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Norte nas nuvens
VISTA SOMENTE DO ALTO,
DURANTE UMA VIAGEM AÉREA,
REGIÃO SURGE DISTORCIDA
NA INTERPRETAÇÃO DO AUSTRÍACO
EVALDO CABRAL DE MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Percorrer as páginas
que Stefan Zweig dedicou ao norte do
Brasil provoca enorme saudade dos livros de viagens daqueles estrangeiros (e foram muitos)
que, no decurso do século 19,
escreveram sobre o país.
Sobretudo os livros de viajantes ingleses que, desde o século 18, eram mestres consumados na arte de dar o mundo
a ver a seus conterrâneos. Estes, sendo uma maioria esmagadora de leitores da classe média, não haviam tido a fortuna
de atravessar o canal da Mancha à procura de "algo nuevo
que mirar", como Ponce de
León ao partir para a Flórida.
Aos olhos de uma Inglaterra
que se industrializava a todo
vapor (no duplo sentido da expressão), o mundo tornava-se
crescentemente outro, crescentemente exótico, na medida
mesmo em que, comparativamente à Inglaterra, ele não mudava ou mudava muito pouco.
Daí nasce grande parte do interesse das impressões de viagem que um Beckford [1760-1844] ou um Southey [1774-1843] dedicaram a Portugal ou
um Borrow [1803-81] à Espanha -precisamente duas das
nações que se achavam na retaguarda do que se passava na Inglaterra e no norte da Europa.
Com grande argúcia, eles
surpreenderam e descreveram
formas de vida nacional e regional que, elas também, estavam condenadas a desaparecer, mas a longo ou mesmo longuíssimo prazo, quase que só
em nossos dias.
Onde estão os editores brasileiros que não vêm editá-los?
No começo do século 19, eis
que os ingleses também aportam a um Brasil mais exótico
ainda do que a Europa meridional.
É conhecido o que os historiadores brasileiros do período
devem às obras, entre outras,
de um Koster [Henry Koster,
que aportou em 1809], de um
Gardner [em 1836], de um Luccock [1808], de um Kidder
[1837], de uma Maria Graham
[1823], de um Mansfield (que
deixou d. Pedro 2º tão ofendido
que este contratou um foliculário estrangeiro para defender
os brios nacionais).
Literatura e história
Nenhum desses autores possuía os dons literários de Zweig,
que ao chegar aqui já era internacionalmente consagrado.
E, contudo, seus livros estão
vários furos acima do de Zweig,
que, ao menos quando fala do
norte à velha maneira (isto é, à
maneira da República Velha,
que, como o Império, só tinha
norte e sul), não consegue ir
além de banalidades condensadas de teor ensaístico, salvo ao
descrever a festa do Senhor do
Bonfim em Salvador.
Independentemente do caráter oficioso de "Brasil - Um
País do Futuro", é evidente que
a explicação da disparidade deve ser buscada alhures. Da Bahia ao Pará, Zweig deslocou-se
de avião, e não de navio, cavalo
ou carro de boi como os viajantes oitocentistas -os quais são
meios de transporte que eminentemente permitem ver.
Ele, aliás, justifica a superficialidade das observações com
a desculpa esfarrapada de que
"do alto, adquiro uma nova
ideia acerca da imensidade desse país".
Do alto, porém, nem sequer
da distância imposta atualmente pelas linhas do TGV [na
França] ou pelas autoestradas
pode-se ver um povo.
Essa particularidade mesma
nos oferece a pista para compreender por que razão os livros de viagens do século há
pouco encerrado são tão decepcionantes.
Num mundo de comunicações excessivamente instantâneas e fáceis (ao menos para
meu gosto) e de cultura extremadamente visual, já não há lugar para o bom e velho livro de
viagens.
Já não se precisa dele, pois já
não se vive com a mesma intensidade a sensação de "dépaysement", que para o leitor é o segredo de tudo.
Hoje em dia, quem quiser "se
dépayser" pela leitura prefere
as grandes obras de Malinowski e de outros antropólogos do
século 20 que versaram as sociedades primitivas; ou de historiadores como Le Roy Ladurie, que constituiu o cotidiano
de uma aldeia do Languedoc
[região francesa] medieval.
EVALDO CABRAL DE MELLO é historiador, autor de "Olinda Restaurada" (ed. 34).
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