São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2001

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Abel Barros Baptista

Era uma vez um corcunda que atravessava um cemitério, ao cair da noite, a caminho da taberna que frequentava. De súbito, uma Voz interpela-o:
"Ó, desgraçado, que levas tu aí nas costas?".
O corcunda, transido, balbucia:
"... É uma corcunda...".
"Então, dá cá essa corcunda" -disse a Voz. O corcunda, mal se apercebe do resultado do sucesso extraordinário, corre para a taberna e lá exibe demoradamente as costas, contando que uma Voz o curara da deformidade. Ao ouvir isso, um coxo, homem amargo e invejoso, esgueirou-se para o cemitério. Percorreu o campo santo para trás e para diante sem que nada ou ninguém o interpelasse. Desesperou, amaldiçoou o corcunda, safado cheio de sorte, e estava quase a sair quando uma voz, num claro tom de impaciência, enfim o interpelou:
"Ó, desgraçado, que levas tu aí nas costas?".
Confundido, o coxo respondeu:
"Nas costas!? Nas costas não levo nada...!".
E a Voz:
"Então, toma lá uma corcunda".


Abel Barros Baptista é crítico português, professor de teoria literária e literatura brasileira da Universidade Nova de Lisboa e autor de, entre outros, "Em Nome do Apelo do Nome" (Litoral Edições, Lisboa), sobre a obra de Machado de Assis.


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