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"Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento", de Ernst Cassirer, aborda a nova concepção do conhecimento forjada na Itália dos séculos 15 e 16
A vida sonhada dos anjos
Leandro Konder
especial para a Folha
O Renascimento tem sempre algo que acelera o coração da
maioria dos professores e estudantes da história da arte. É difícil não sonhar com um tempo como o
do século 15 e um espaço como o da Itália, com tanto artistas geniais, pintores,
escultores, arquitetos.
Sabemos que por trás desse excepcional momento estavam as condições criadas pelo crescimento das atividades comerciais. O comerciante, para ser bem-sucedido, precisa estar numa situação
que lhe permita tomar iniciativas, deslocar-se rapidamente para se achar num
lugar e numa hora que lhe permitam
comprar barato e vender caro. Por isso
os mercadores italianos estimulavam a
expressão cultural dos artistas que contribuíam para o fortalecimento da autoconsciência de indivíduos cada vez mais
autônomos.
As transformações sociais foram
acompanhadas e incentivadas por mudanças culturais, que acarretaram certa
sensação de instabilidade, mesmo em
instituições seculares, como a Igreja Católica. A chamada Guerra dos Cem Anos
(1337-1453) e o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417) aumentaram o nível
de inquietação das pessoas.
Com a reunificação da hierarquia eclesiástica em Roma e o fim da guerra, surgiram novas esperanças. Determinados
elementos da cultura medieval envelheceram rapidamente: uma decidida valorização do mundo terreno, do habitat e
do corpo dos seres humanos se manifestou na pintura de Masaccio, de Botticelli,
de Leonardo. O domínio das leis da representação em perspectiva e os artifícios que davam a impressão da tridimensionalidade trouxeram poderosas
inovações para a linguagem dos pintores.
As modificações ocorridas na vida material e na
consciência repercutiram
não só na sensibilidade
mas também nas grandes
construções teóricas.
E é à filosofia desse período -prenunciada no
século 14, amadurecida ao longo do século 15 e encerrada na segunda metade
do século 16- que o pensador alemão
Ernst Cassirer (1874-1945) dedica seu livro (originalmente publicado em 1926)
"Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento".
Com notável erudição, prudência e
acuidade, evitando os exageros tão comuns nos contrastes que costumam ser
feitos entre o Renascimento e a Idade
Média, Cassirer examina elementos antecipadores do espírito renascentista no
pensamento do poeta Petrarca e dos filósofos Marsílio Ficino e Pico della Mirandola, dois protegidos do líder florentino
Lorenzo de Médici.
Aperfeiçoamento Mostra como
era difícil para um pensador do século 15
(o "Quattrocento" dos italianos) encaminhar uma linha de pensamento mais
antropocêntrica do que a tradição admitia. Essa dificuldade levou Pico della Mirandola a inverter com habilidade o argumento teológico da superioridade dos
anjos (perfeitos) sobre os seres humanos
(imperfeitos), sustentando que, exatamente por serem imperfeitos, os homens
tinham sobre os anjos a vantagem de poderem viver sempre a rica experiência de
se aperfeiçoarem.
O livro contém, ainda, dois belos ensaios sobre a relação liberdade-necessidade e sobre a relação sujeito-objeto na
filosofia do Renascimento. E faz observações de grande interesse sobre Lorenzo
Valla, Leonardo da Vinci, Galileu, Pomponazzi, Carolus Bovilus e Giordano
Bruno, assinalando sempre o vigor e os
limites da reflexão desses pensadores.
Mais da metade do volume, entretanto,
está dedicada ao filósofo Nicolau de Cusa
(1401-1464), cardeal da Igreja Católica,
nascido no sul da Alemanha há exatamente 600 anos.
Nicolau de Cusa foi enviado pelo papa a Constantinopla para estudar as
condições de uma possível reunificação da cristandade sob o comando
de Roma. Voltou do
Oriente convencido de
que a unidade viável seria
necessariamente uma
unidade na diversidade, baseada na legitimação das diferenças de rituais.
Escreveu diversos diálogos. Num deles,
um presumível muçulmano surpreende
um cristão fazendo suas orações, espera
que ele termine e indaga: "Como é o seu
Deus?". O cristão responde : "Não sei". O
"muçulmano" acha estranho o fato de o
outro orar para um Deus que não sabe
como é, mas o cristão explica: "Um Deus
que eu saiba como é será, inevitavelmente, criação minha".
Para Nicolau de Cusa, Deus é o "Absoluto Máximo". Temos, em escala humana, a noção do absoluto como também
temos a noção do infinito, porém o nosso conhecimento se baseia em critérios
quantitativos, comparativos: tudo pode
ser um pouco mais, um pouco menos; a
linha reta sempre pode ser mais reta, a
forma redonda pode ser mais redonda.
Em Deus, isso não faz sentido. Em Deus
o absoluto e o infinito são insuperáveis e
nós jamais poderemos nos familiarizar
com eles.
O que podemos conhecer, então, na
melhor das hipóteses, não será nunca
muita coisa. Nosso conhecimento só será lúcido se for modesto. Em Deus, as
contradições se dissolvem, o ponto é linha, o quadrado é triângulo, o cone é esfera. Nós, contudo, só podemos aprender a conviver com as contradições, que
jamais eliminaremos da nossa vida e da
nossa consciência. É a perspectiva daquilo que o filósofo chama de "A Douta Ignorância" (título de uma de suas obras).
Cassirer escreve que a nova concepção
do conhecimento, o novo modo de pensar o "eu" e uma nova postura diante do
cosmos se condicionam reciprocamente.
O mundo, o nosso mundo, é regido pelo
princípio da coincidência dos contrários
("coincidentia oppositorum").
Imenso concílio Convencido de que
o mundo é infinito, inesgotável, e existe
em permanente movimento, Nicolau de
Cusa dá um passo adiante e, antecipando-se a Kepler e Copérnico, sustenta que
a Terra se move e tem forma "imperfeitamente circular".
Em "De Pace Fidei" (1453), no mesmo
ano em que os turcos assumiram o controle de Constantinopla, Nicolau de Cusa
advertia que nenhuma organização religiosa pode presumir que conhece completamente Deus, por isso todas elas devem assegurar nas relações mútuas o respeito e a tolerância.
O cardeal sonha, mesmo, com um
imenso concílio que reuniria cristãos, judeus, muçulmanos, persas e tártaros.
Um sonho que dá o que pensar. É compreensível que o cardeal dialético da
"coincidentia oppositorum" tenha inspirado tanto apreço ao filósofo Cassirer 75
anos atrás. Como também é compreensível que nós recordemos com tanta simpatia, neste nosso tumultuado início do
século 21, o sonhador do superconcílio.
Leandro Konder é professor de filosofia na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) e autor de "Os
Sofrimentos do Homem Burguês" (ed. Senac), "O
Futuro da Filosofia da Práxis" (ed. Paz e Terra) e "A
Morte de Rimbaud" (Cia. das Letras), entre outros.
Indivíduo e Cosmos na
Filosofia do Renascimento
312 págs., R$ 32,50
de Ernst Cassirer. Trad. João
Azenha Jr. Martins Fontes (r.
Conselheiro Ramalho, 330/340,
CEP 01325-000, SP, tel. 0/xx/
11/3241-3677).
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