São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

"Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento", de Ernst Cassirer, aborda a nova concepção do conhecimento forjada na Itália dos séculos 15 e 16

A vida sonhada dos anjos

Leandro Konder
especial para a Folha

O Renascimento tem sempre algo que acelera o coração da maioria dos professores e estudantes da história da arte. É difícil não sonhar com um tempo como o do século 15 e um espaço como o da Itália, com tanto artistas geniais, pintores, escultores, arquitetos. Sabemos que por trás desse excepcional momento estavam as condições criadas pelo crescimento das atividades comerciais. O comerciante, para ser bem-sucedido, precisa estar numa situação que lhe permita tomar iniciativas, deslocar-se rapidamente para se achar num lugar e numa hora que lhe permitam comprar barato e vender caro. Por isso os mercadores italianos estimulavam a expressão cultural dos artistas que contribuíam para o fortalecimento da autoconsciência de indivíduos cada vez mais autônomos.
As transformações sociais foram acompanhadas e incentivadas por mudanças culturais, que acarretaram certa sensação de instabilidade, mesmo em instituições seculares, como a Igreja Católica. A chamada Guerra dos Cem Anos (1337-1453) e o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417) aumentaram o nível de inquietação das pessoas.
Com a reunificação da hierarquia eclesiástica em Roma e o fim da guerra, surgiram novas esperanças. Determinados elementos da cultura medieval envelheceram rapidamente: uma decidida valorização do mundo terreno, do habitat e do corpo dos seres humanos se manifestou na pintura de Masaccio, de Botticelli, de Leonardo. O domínio das leis da representação em perspectiva e os artifícios que davam a impressão da tridimensionalidade trouxeram poderosas inovações para a linguagem dos pintores.
As modificações ocorridas na vida material e na consciência repercutiram não só na sensibilidade mas também nas grandes construções teóricas.
E é à filosofia desse período -prenunciada no século 14, amadurecida ao longo do século 15 e encerrada na segunda metade do século 16- que o pensador alemão Ernst Cassirer (1874-1945) dedica seu livro (originalmente publicado em 1926) "Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento".
Com notável erudição, prudência e acuidade, evitando os exageros tão comuns nos contrastes que costumam ser feitos entre o Renascimento e a Idade Média, Cassirer examina elementos antecipadores do espírito renascentista no pensamento do poeta Petrarca e dos filósofos Marsílio Ficino e Pico della Mirandola, dois protegidos do líder florentino Lorenzo de Médici.

Aperfeiçoamento Mostra como era difícil para um pensador do século 15 (o "Quattrocento" dos italianos) encaminhar uma linha de pensamento mais antropocêntrica do que a tradição admitia. Essa dificuldade levou Pico della Mirandola a inverter com habilidade o argumento teológico da superioridade dos anjos (perfeitos) sobre os seres humanos (imperfeitos), sustentando que, exatamente por serem imperfeitos, os homens tinham sobre os anjos a vantagem de poderem viver sempre a rica experiência de se aperfeiçoarem.
O livro contém, ainda, dois belos ensaios sobre a relação liberdade-necessidade e sobre a relação sujeito-objeto na filosofia do Renascimento. E faz observações de grande interesse sobre Lorenzo Valla, Leonardo da Vinci, Galileu, Pomponazzi, Carolus Bovilus e Giordano Bruno, assinalando sempre o vigor e os limites da reflexão desses pensadores. Mais da metade do volume, entretanto, está dedicada ao filósofo Nicolau de Cusa (1401-1464), cardeal da Igreja Católica, nascido no sul da Alemanha há exatamente 600 anos.
Nicolau de Cusa foi enviado pelo papa a Constantinopla para estudar as condições de uma possível reunificação da cristandade sob o comando de Roma. Voltou do Oriente convencido de que a unidade viável seria necessariamente uma unidade na diversidade, baseada na legitimação das diferenças de rituais.
Escreveu diversos diálogos. Num deles, um presumível muçulmano surpreende um cristão fazendo suas orações, espera que ele termine e indaga: "Como é o seu Deus?". O cristão responde : "Não sei". O "muçulmano" acha estranho o fato de o outro orar para um Deus que não sabe como é, mas o cristão explica: "Um Deus que eu saiba como é será, inevitavelmente, criação minha".
Para Nicolau de Cusa, Deus é o "Absoluto Máximo". Temos, em escala humana, a noção do absoluto como também temos a noção do infinito, porém o nosso conhecimento se baseia em critérios quantitativos, comparativos: tudo pode ser um pouco mais, um pouco menos; a linha reta sempre pode ser mais reta, a forma redonda pode ser mais redonda. Em Deus, isso não faz sentido. Em Deus o absoluto e o infinito são insuperáveis e nós jamais poderemos nos familiarizar com eles.
O que podemos conhecer, então, na melhor das hipóteses, não será nunca muita coisa. Nosso conhecimento só será lúcido se for modesto. Em Deus, as contradições se dissolvem, o ponto é linha, o quadrado é triângulo, o cone é esfera. Nós, contudo, só podemos aprender a conviver com as contradições, que jamais eliminaremos da nossa vida e da nossa consciência. É a perspectiva daquilo que o filósofo chama de "A Douta Ignorância" (título de uma de suas obras). Cassirer escreve que a nova concepção do conhecimento, o novo modo de pensar o "eu" e uma nova postura diante do cosmos se condicionam reciprocamente. O mundo, o nosso mundo, é regido pelo princípio da coincidência dos contrários ("coincidentia oppositorum").

Imenso concílio Convencido de que o mundo é infinito, inesgotável, e existe em permanente movimento, Nicolau de Cusa dá um passo adiante e, antecipando-se a Kepler e Copérnico, sustenta que a Terra se move e tem forma "imperfeitamente circular".
Em "De Pace Fidei" (1453), no mesmo ano em que os turcos assumiram o controle de Constantinopla, Nicolau de Cusa advertia que nenhuma organização religiosa pode presumir que conhece completamente Deus, por isso todas elas devem assegurar nas relações mútuas o respeito e a tolerância.
O cardeal sonha, mesmo, com um imenso concílio que reuniria cristãos, judeus, muçulmanos, persas e tártaros.
Um sonho que dá o que pensar. É compreensível que o cardeal dialético da "coincidentia oppositorum" tenha inspirado tanto apreço ao filósofo Cassirer 75 anos atrás. Como também é compreensível que nós recordemos com tanta simpatia, neste nosso tumultuado início do século 21, o sonhador do superconcílio.


Leandro Konder é professor de filosofia na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) e autor de "Os Sofrimentos do Homem Burguês" (ed. Senac), "O Futuro da Filosofia da Práxis" (ed. Paz e Terra) e "A Morte de Rimbaud" (Cia. das Letras), entre outros.



Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento
312 págs., R$ 32,50
de Ernst Cassirer. Trad. João Azenha Jr. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330/340, CEP 01325-000, SP, tel. 0/xx/ 11/3241-3677).




Texto Anterior: + livros - Arthur Nestrovski: A cultura do crime
Próximo Texto: Kathrin H. Rosenfield: Descida ao inferno do desejo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.