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Descida ao inferno do desejo
Escrito durante o apogeu do nazismo, "A Morte de Virgílio", do austríaco Hermann Broch, reatualiza de modo trágico a ruptura entre vida e civilização
Descida ao inferno do desejo
Kathrin H. Rosenfield
especial para a Folha
Como toda grande obra, "A Morte
de Virgílio", de Hermann Broch
(1886-1951), é inimitável, embora
tenha sido comparada ao "Ulisses" de Joyce, ao que Broch respondeu:
"Há semelhanças. Elas são, seja dito de
passagem, tão grandes quanto as existentes entre um cão basset e um crocodilo". Isso não significa, porém, que o novo
gênero de Broch, o romance-poema, não
tenha tido sucessores e seguidores, como
muitas vezes se afirma.
Pensemos apenas em "Avalovara", de
Osman Lins (que modula o monólogo lírico interior, desdobrando as metamorfoses e os impasses trágicos do estado de
amor), ou em Guimarães Rosa, cujo
"Grande Sertão - Veredas" também tangencia o novo princípio romanesco de
Broch. Não é por acaso que "Grande Sertão" foi caracterizado pelo próprio autor
como "poema".
O lirismo reconduz o romance a um
núcleo dramático e, no cerne desse drama interior, o herói de Broch, o poeta
Virgílio, defronta-se com o paradoxo
trágico da existência humana. Virgílio
reconhece, na iminência da morte, que
sua procura do bem e da verdade o condenou à solidão. Perseguindo a perfeição
de seu poema, ele isolou-se daquele povo
que a "Eneida" glorifica. No primeiro capítulo do livro, quando a liteira com o
corpo moribundo de Virgílio atravessa
Brundísio, este não é reconhecido, mas o
populacho vilipendia o poeta que imortalizou Roma e seu povo. Essa experiência trágica e lírica (isto é, exterior e interior, vivência objetiva e subjetiva) desdobra-se, ao longo do romance, em outros
níveis da alma e do mundo.
Numa lenta e penosa progressão, o
poeta alcança o reconhecimento da verdade profunda da condição paradoxal e trágica do
ser humano: o reconhecimento da inevitável "traição" da vida pela cultura.
Com a intensidade desesperadora do "É tarde",
Virgílio vivencia, pela última vez, o amargo dilema
de que a arte e a civilização em geral implicam uma insondável
perda daquilo que é admirável, enigmático e divino na vida.
Trajetória cósmica Deliberadamente anacrônico (projetando diversas
épocas umas nas outras), o Virgílio de
Broch parece seguir os passos de Dante
na "Divina Comédia": ele desce nos sucessivos recintos do inferno dos desejos e
esforços humanos. Seu monólogo interior combina representações contemporâneas e cristãs (medievais) com elementos do imaginário da Antiguidade. Assim
ele torna híbrida e atemporal a trajetória
cósmica que leva Virgílio a penetrar nos
quatro elementos que fornecem os subtítulos do romance: "Água - A Chegada";
"Fogo - A Descida"; "Terra - A Expectativa"; "Éter - O Retorno".
Nas ruminações de Virgílio entrelaçam-se temas como a procura de um conhecimento que vincula a beleza à verdade, a superação da vacuidade da existência à criação de formas de expressão, restabelecendo nexos com um saber originário que viabiliza as idéias do infinito e
da perfeição. A trajetória do moribundo
concentra, como uma miniatura, os
grandes terrores e as dúvidas da existência pregressa: as tensões entre a grande
arte e as demandas da plebe miserável e
inculta (cultura na era da cultura de massa); o conflito entre as exigências da poesia, do senso comum e do amor; a relação paradoxal (unidade e hiato) entre o
Estado e a cultura, evidenciada na separação espacial dos amigos íntimos (Virgílio e o imperador Augusto), que se encontram em barcos distintos e, após a
chegada, continuam separados, Augusto
seguindo para Roma, Virgílio permanecendo em Brundísio.
O próprio Broch considerou seu romance como "uma obra quase intraduzível" ao comentar elogiosamente a tradução inglesa, publicada
antes do original alemão
no fatídico ano de 1945,
nos EUA.
Voluntário ou não, há
um sentido emblemático
nessa antecipação da edição americana. Broch escreveu seu romance sob o
signo da barbárie nazista,
depois de ter escapado do encarceramento pela Gestapo. O diálogo do poeta
Virgílio com o imperador assinala, sem
dúvida, os impasses porém também a
aposta num diálogo possível entre os
criadores e o Estado. Não há dúvida de
que Broch apostava nesse diálogo como
barreira contra a irrupção da barbárie. E
é inegável igualmente que o mérito dessa
luta pela civilização coube, na época de
Broch, aos Estados Unidos. Não é seguro
que essa aposta hoje convença, mas o
apreço mutante por um Estado não anula a atualidade da questão.
Aos que temem as inegáveis desvantagens das traduções é necessário lembrar
que traduzir, às vezes, pode trazer vantagens. Eis a descoberta que faz o leitor alemão quando passa do original à tradução brasileira de Herbert Caro, reeditada
agora pela Editora Mandarim. É bem
verdade que essa tradução, graças à sintaxe racional das línguas neolatinas, tornou o texto mais claro e compreensível.
Ela perdeu, portanto, a aura, deliberadamente obscura e "verfremdet", do original alemão. A versão de Caro é mais
clara, porque o português não permite
manter uma das características do texto
original, a utilização do substantivo. Esse
preenche, na escritura de Broch, o papel
de uma frase nuclear, concentrada em si
mesma e em torno da qual podem vir a
aglomerar-se outros substantivos-frases.
Hoje as traduções de textos filosóficos
(Heidegger, Hegel etc.) acostumaram os
leitores a esse tipo de substantivação, porém reforçaram as conotações filosóficas
e acadêmicas desse tipo de linguagem.
Assim, é vantajoso que a versão de Caro
não compartilhe o hábito recente de distorcer a língua de chegada no sentido da
sintaxe do original, o que ressaltaria, no
caso de Broch, a redundância de formulações com fortes ressonâncias eruditas e
acadêmicas -aquela "modorra filosófica e literária" cuja monotonia aflige o
próprio Virgílio nas suas conversas com
Lúcius (capítulo 2).
A tradução de Caro é belíssima no seu
relevo sonoro, no desenho quase escultural das imensas frases. Elas evoluem
como a própria marcha do séquito imperial (a chegada dos barcos de Augusto
que trazem o poeta Virgílio ao porto de
Brundísio) ao mesmo tempo em que se
metamorfoseiam em dança e flutuação
oníricas. O manejo rítmico da sintaxe,
verdadeira inovação da arte de Broch,
reaparece assim sob uma outra forma,
forma essa, no entanto, que reproduz o
essencial: a naturalidade estruturada, ordenada, do fluxo da consciência. Broch
não concebe este como radicalmente
disruptivo e fragmentar (já seu ensaio
sobre Joyce insistiu em mostrar a harmonia arquitetônica dos elementos e das
estruturas fragmentares).
Seu monólogo lírico parece-se, antes,
com a ordem rigorosa, porém fluida, das
correntezas mutantes das águas, nuvens
ou ondas do mar... Broch pertence assim, tal como Musil, àqueles modernos
que não abrem mão da idéia de unidade
e totalidade, embora essas idéias não se
mostrem concretamente na experiência
imediata.
Kathrin H. Rosenfield é professora de teoria literária na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e autora de "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (ed. L&PM).
A Morte de Virgílio
439 págs., R$ 49,00
de Hermann Broch. Trad. de
Herbert Caro. Ed. Mandarim (av.
Raimundo Pereira de Magalhães, 3.305, CEP 05145-200,
SP, tel. 0/xx/11/3649-4600).
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