São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2001

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Descida ao inferno do desejo

Escrito durante o apogeu do nazismo, "A Morte de Virgílio", do austríaco Hermann Broch, reatualiza de modo trágico a ruptura entre vida e civilização

Descida ao inferno do desejo

Kathrin H. Rosenfield
especial para a Folha

Como toda grande obra, "A Morte de Virgílio", de Hermann Broch (1886-1951), é inimitável, embora tenha sido comparada ao "Ulisses" de Joyce, ao que Broch respondeu: "Há semelhanças. Elas são, seja dito de passagem, tão grandes quanto as existentes entre um cão basset e um crocodilo". Isso não significa, porém, que o novo gênero de Broch, o romance-poema, não tenha tido sucessores e seguidores, como muitas vezes se afirma.
Pensemos apenas em "Avalovara", de Osman Lins (que modula o monólogo lírico interior, desdobrando as metamorfoses e os impasses trágicos do estado de amor), ou em Guimarães Rosa, cujo "Grande Sertão - Veredas" também tangencia o novo princípio romanesco de Broch. Não é por acaso que "Grande Sertão" foi caracterizado pelo próprio autor como "poema".
O lirismo reconduz o romance a um núcleo dramático e, no cerne desse drama interior, o herói de Broch, o poeta Virgílio, defronta-se com o paradoxo trágico da existência humana. Virgílio reconhece, na iminência da morte, que sua procura do bem e da verdade o condenou à solidão. Perseguindo a perfeição de seu poema, ele isolou-se daquele povo que a "Eneida" glorifica. No primeiro capítulo do livro, quando a liteira com o corpo moribundo de Virgílio atravessa Brundísio, este não é reconhecido, mas o populacho vilipendia o poeta que imortalizou Roma e seu povo. Essa experiência trágica e lírica (isto é, exterior e interior, vivência objetiva e subjetiva) desdobra-se, ao longo do romance, em outros níveis da alma e do mundo.
Numa lenta e penosa progressão, o poeta alcança o reconhecimento da verdade profunda da condição paradoxal e trágica do ser humano: o reconhecimento da inevitável "traição" da vida pela cultura. Com a intensidade desesperadora do "É tarde", Virgílio vivencia, pela última vez, o amargo dilema de que a arte e a civilização em geral implicam uma insondável perda daquilo que é admirável, enigmático e divino na vida.

Trajetória cósmica Deliberadamente anacrônico (projetando diversas épocas umas nas outras), o Virgílio de Broch parece seguir os passos de Dante na "Divina Comédia": ele desce nos sucessivos recintos do inferno dos desejos e esforços humanos. Seu monólogo interior combina representações contemporâneas e cristãs (medievais) com elementos do imaginário da Antiguidade. Assim ele torna híbrida e atemporal a trajetória cósmica que leva Virgílio a penetrar nos quatro elementos que fornecem os subtítulos do romance: "Água - A Chegada"; "Fogo - A Descida"; "Terra - A Expectativa"; "Éter - O Retorno".
Nas ruminações de Virgílio entrelaçam-se temas como a procura de um conhecimento que vincula a beleza à verdade, a superação da vacuidade da existência à criação de formas de expressão, restabelecendo nexos com um saber originário que viabiliza as idéias do infinito e da perfeição. A trajetória do moribundo concentra, como uma miniatura, os grandes terrores e as dúvidas da existência pregressa: as tensões entre a grande arte e as demandas da plebe miserável e inculta (cultura na era da cultura de massa); o conflito entre as exigências da poesia, do senso comum e do amor; a relação paradoxal (unidade e hiato) entre o Estado e a cultura, evidenciada na separação espacial dos amigos íntimos (Virgílio e o imperador Augusto), que se encontram em barcos distintos e, após a chegada, continuam separados, Augusto seguindo para Roma, Virgílio permanecendo em Brundísio.
O próprio Broch considerou seu romance como "uma obra quase intraduzível" ao comentar elogiosamente a tradução inglesa, publicada antes do original alemão no fatídico ano de 1945, nos EUA.
Voluntário ou não, há um sentido emblemático nessa antecipação da edição americana. Broch escreveu seu romance sob o signo da barbárie nazista, depois de ter escapado do encarceramento pela Gestapo. O diálogo do poeta Virgílio com o imperador assinala, sem dúvida, os impasses porém também a aposta num diálogo possível entre os criadores e o Estado. Não há dúvida de que Broch apostava nesse diálogo como barreira contra a irrupção da barbárie. E é inegável igualmente que o mérito dessa luta pela civilização coube, na época de Broch, aos Estados Unidos. Não é seguro que essa aposta hoje convença, mas o apreço mutante por um Estado não anula a atualidade da questão.
Aos que temem as inegáveis desvantagens das traduções é necessário lembrar que traduzir, às vezes, pode trazer vantagens. Eis a descoberta que faz o leitor alemão quando passa do original à tradução brasileira de Herbert Caro, reeditada agora pela Editora Mandarim. É bem verdade que essa tradução, graças à sintaxe racional das línguas neolatinas, tornou o texto mais claro e compreensível.
Ela perdeu, portanto, a aura, deliberadamente obscura e "verfremdet", do original alemão. A versão de Caro é mais clara, porque o português não permite manter uma das características do texto original, a utilização do substantivo. Esse preenche, na escritura de Broch, o papel de uma frase nuclear, concentrada em si mesma e em torno da qual podem vir a aglomerar-se outros substantivos-frases.
Hoje as traduções de textos filosóficos (Heidegger, Hegel etc.) acostumaram os leitores a esse tipo de substantivação, porém reforçaram as conotações filosóficas e acadêmicas desse tipo de linguagem. Assim, é vantajoso que a versão de Caro não compartilhe o hábito recente de distorcer a língua de chegada no sentido da sintaxe do original, o que ressaltaria, no caso de Broch, a redundância de formulações com fortes ressonâncias eruditas e acadêmicas -aquela "modorra filosófica e literária" cuja monotonia aflige o próprio Virgílio nas suas conversas com Lúcius (capítulo 2).
A tradução de Caro é belíssima no seu relevo sonoro, no desenho quase escultural das imensas frases. Elas evoluem como a própria marcha do séquito imperial (a chegada dos barcos de Augusto que trazem o poeta Virgílio ao porto de Brundísio) ao mesmo tempo em que se metamorfoseiam em dança e flutuação oníricas. O manejo rítmico da sintaxe, verdadeira inovação da arte de Broch, reaparece assim sob uma outra forma, forma essa, no entanto, que reproduz o essencial: a naturalidade estruturada, ordenada, do fluxo da consciência. Broch não concebe este como radicalmente disruptivo e fragmentar (já seu ensaio sobre Joyce insistiu em mostrar a harmonia arquitetônica dos elementos e das estruturas fragmentares).
Seu monólogo lírico parece-se, antes, com a ordem rigorosa, porém fluida, das correntezas mutantes das águas, nuvens ou ondas do mar... Broch pertence assim, tal como Musil, àqueles modernos que não abrem mão da idéia de unidade e totalidade, embora essas idéias não se mostrem concretamente na experiência imediata.


Kathrin H. Rosenfield é professora de teoria literária na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (ed. L&PM).


A Morte de Virgílio
439 págs., R$ 49,00
de Hermann Broch. Trad. de Herbert Caro. Ed. Mandarim (av. Raimundo Pereira de Magalhães, 3.305, CEP 05145-200, SP, tel. 0/xx/11/3649-4600).



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