São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2001

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"Ficar ou Não Ficar", reunião de artigos de Tom Wolfe que será lançada no início de dezembro no Brasil, põe em evidência o perfil errático do jornalista

O século americano e as fumaças

Teixeira Coelho
especial para a Folha

Ler Tom Wolfe requer um estado de espírito e um motivo especiais. Não há muito em seus romances, como "A Fogueira das Vaidades" e o recente "Um Homem por Inteiro", de estrutura e forma demasiado tradicionais, que já não se saiba de antemão. E seus textos jornalísticos quase sempre irritam. Não apenas porque ele é um conservador. Ler um conservador pode ser estimulante; confirma-nos em nossas crenças vitais e por vezes faz pensar de modo diferente (nada pior que o hábito cultural, conservador ou progressista). São textos irritantes porque também repassados por um cabotinismo em certos momentos constrangedor.
E seu jornalismo vem marcado por esse tom arrogante, supostamente engraçado, que insiste na idéia de que quase nada presta à volta de quem o usa, o único a saber o que é bom e o que é ruim. Um estilo que conhecemos bem no Brasil na década de 80.
Mesmo assim, sua leitura atrai, neste pós-11 de setembro -e esse é o meu motivo-, porque mostra como um conservador americano pensa o próprio país.
Primeiro aspecto a chamar a atenção é o que afinal acabou sendo o diminuto "prazo de validade" deste livro. Lançado em 2000 com textos escritos em 2000, o livro já está ultrapassado pela realidade.
Uma de suas teses é a vitória final que os EUA pareciam ter então obtido sobre o mundo. Wolfe anota que os EUA, no início do século 21, dominavam o mundo num grau que daria inveja a César, Alexandre, o Grande e à Inglaterra da rainha Vitória. E que, no início de 2000, terminava o Primeiro Século Americano e se iniciava o Segundo, iniciando uma "pax americana" de mil anos. O primeiro artigo do livro termina com a descrição do fim do último dia de 1999 na vida de um americano típico que vai para a cama depois de assistir a "Os Simpsons" com a família e adormece pensando nas próximas férias em Bancoc, certo de que no ano 2000 o sol voltaria a brilhar abençoadamente sobre ele. É uma passagem entre irônica e apaziguadora, numa hesitação que é comum nele. Mas é nada menos que dramático ver como foi o despertar americano pós-11 de setembro.
Tom Wolfe queixa-se de que na virada do milênio aparentemente só ele percebeu que os EUA haviam triunfado. Lamenta que a maioria dos americanos, da imprensa aos intelectuais, passando pelos limpadores de piscina, não se dera conta disso. E observa que, depois da queda do Muro de Berlim, o século 21 seria um Século Sonolento, o século da ressaca do século 20. Neste maldito pós-11 de setembro, o que se vê é a tragédia do erro pelo menos parcial de Tom Wolfe ou, em todo o caso, da pressa de suas previsões.
No entanto é interessante pelo menos parte da análise que ele faz dos motivos dessa indiferença americana diante da conquista. Nota como, durante décadas, os intelectuais americanos expressaram seu ceticismo em relação à vida americana, cujos valores são contestados dentro do país sob mil e uma formas, inclusive pelos "estudos culturais". Rejeita essa prática porque sabe que o ceticismo quase sempre se transforma em, desdém. Ele não faz, é verdade, porque não lhe interessa, distinções entre ceticismo e revisão crítica.
De todo modo, é uma análise interessante por encontrar ressonância num intelectual, Richard Rorty, que, pelo respeito acadêmico de que goza e por sua opção ideológica, é o exato oposto de Tom Wolfe. É que também Rorty, em "Para Realizar a América (ed. DP&A), defende a idéia de que orgulho nacional é fundamental para o crescimento de um país, enquanto observa que nos EUA do ano em que escreve, 1997, a vergonha nacional e a falta de envolvimento emocional com o país ultrapassavam aquela imprescindível sensação de orgulho.
E é curioso ver, ainda, como Wolfe e Rorty coincidem na denúncia da submissão intelectual dos jovens americanos à filosofia européia de Foucault, Heidegger e outros, que os convencem de que vivem num país de simulacros, violento, desumano e corrupto. A diferença entre eles, nada pequena, é que Rorty apresenta soluções, enquanto Wolfe jornalisticamente apenas lamenta a realidade. É sugestivo, de todo modo, ver como Wolfe se afina com Rorty pelo menos no diagnóstico.
Se por um lado parte da validade do livro de Tom Wolfe se esgotou depressa, por outro sua atualidade é certa. Como é um moralista, dotado mais de um pensamento jornalístico "ad hoc" do que de um poder analítico de longo fôlego, ao mesmo tempo em que anuncia a vitória final dos EUA, adverte para o perigo que é a decadência dos valores americanos. Vai buscar em Nietzsche elementos para suas previsões sinistras sobre o século 21 na esteira do que o pensador alemão propôs para o século 20, um século de guerras como nunca antes, previu Nietzsche, porque os homens não teriam mais um deus a quem recorrer para se livrar de suas culpas, mas continuariam as experimentando, o que os faria sentir "desprezo pelos outros e por si mesmos". A fé cega e reconfortante outrora depositada na crença em um deus seria, no novo século, despejada na crença em irmandades nacionalistas bárbaras...
Uma profecia quase irretocável, na qual Wolfe se apóia para continuar prevendo, com Nietzsche, um século 21 ainda mais pavoroso, uma época de eclipse total dos valores e de busca desesperada de novas âncoras. Mas a busca fracassaria, continua Nietzsche, porque as pessoas não poderiam acreditar em códigos morais sem crer num deus que lhes aponte um dedo temível e diga o que devem fazer ou não (inevitável recordar que o mundo do islã, que Wolfe cita de raspão, acredita nesse dedo temível). Isso basta para Wolfe concluir que, após a guerra nos Balcãs e o que aconteceu na ex-URSS (e ele escreve antes de 11 de setembro), o espírito do tempo do século 21 pode ser resumido num só brado: "De volta ao gosto de sangue!". Difícil discordar, por enquanto.
É um livro errático e, quem sabe, nisso resida seu atrativo. O autor parece não saber bem em que ele mesmo acredita, qual hipótese considera viável. A realidade surge-lhe confusa e essa confusão transparece no livro, talvez por ser coletânea de peças escritas em momentos diferentes. Li o livro para ver como pensa um conservador americano agora e o retrato que fornece de seu país. Tendo-o lido, imagino se o melhor título para o livro, longe da deslocada opção brasileira e por ele citado numa passagem, não seria "Gótico Americano"... Não penso tanto na pintura famosa de Grant Wood, embora nela também, mas sim num ambiente obscuro cujas saídas não são visíveis e onde é fácil sentir um medo transcendental...


Teixeira Coelho é ensaísta, escritor e diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC-SP), autor, entre outros, de "Niemeyer - Um Romance" (Geração Editorial)..


Ficar ou Não Ficar
260 págs., preço não definido
de Tom Wolfe. Trad. Paulo Reis. Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/ 507-2000).



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