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"Ficar ou Não Ficar", reunião de artigos de Tom Wolfe que será lançada no início de dezembro no Brasil, põe em evidência o perfil errático do jornalista
O século americano e as fumaças
Teixeira Coelho
especial para a Folha
Ler Tom Wolfe requer um estado de
espírito e um motivo especiais. Não
há muito em seus romances, como
"A Fogueira das Vaidades" e o recente "Um Homem por Inteiro", de estrutura e forma demasiado tradicionais,
que já não se saiba de antemão. E seus
textos jornalísticos quase sempre irritam. Não apenas porque ele é um conservador. Ler um conservador pode ser
estimulante; confirma-nos em nossas
crenças vitais e por vezes faz pensar de
modo diferente (nada pior que o hábito
cultural, conservador ou progressista).
São textos irritantes porque também repassados por um cabotinismo em certos
momentos constrangedor.
E seu jornalismo vem marcado por esse tom arrogante, supostamente engraçado, que insiste na idéia de que quase
nada presta à volta de quem o usa, o único a saber o que é bom e o que é ruim.
Um estilo que conhecemos bem no Brasil na década de 80.
Mesmo assim, sua leitura atrai, neste
pós-11 de setembro -e esse é o meu motivo-, porque mostra como um conservador americano pensa o próprio país.
Primeiro aspecto a chamar a atenção é
o que afinal acabou sendo o diminuto
"prazo de validade" deste livro. Lançado
em 2000 com textos escritos em 2000, o
livro já está ultrapassado pela realidade.
Uma de suas teses é a vitória final que
os EUA pareciam ter então obtido sobre
o mundo. Wolfe anota que os EUA, no
início do século 21, dominavam o mundo num grau que daria inveja a César,
Alexandre, o Grande e à Inglaterra da
rainha Vitória. E que, no início de 2000,
terminava o Primeiro Século Americano
e se iniciava o Segundo, iniciando uma
"pax americana" de mil anos. O primeiro
artigo do livro termina com a descrição
do fim do último dia de
1999 na vida de um americano típico que vai para a
cama depois de assistir a
"Os Simpsons" com a família e adormece pensando nas próximas férias em
Bancoc, certo de que no
ano 2000 o sol voltaria a
brilhar abençoadamente sobre ele. É
uma passagem entre irônica e apaziguadora, numa hesitação que é comum nele.
Mas é nada menos que dramático ver como foi o despertar americano pós-11 de
setembro.
Tom Wolfe queixa-se de que na virada
do milênio aparentemente só ele percebeu que os EUA haviam triunfado. Lamenta que a maioria dos americanos, da
imprensa aos intelectuais, passando pelos limpadores de piscina, não se dera
conta disso. E observa que, depois da
queda do Muro de Berlim, o século 21 seria um Século Sonolento, o século da ressaca do século 20. Neste maldito pós-11
de setembro, o que se vê é a tragédia do
erro pelo menos parcial de Tom Wolfe
ou, em todo o caso, da pressa de suas
previsões.
No entanto é interessante pelo menos
parte da análise que ele faz dos motivos
dessa indiferença americana diante da
conquista. Nota como, durante décadas,
os intelectuais americanos expressaram
seu ceticismo em relação à vida americana, cujos valores são contestados dentro
do país sob mil e uma formas, inclusive
pelos "estudos culturais". Rejeita essa
prática porque sabe que o ceticismo quase sempre se transforma em, desdém. Ele
não faz, é verdade, porque não lhe interessa, distinções entre ceticismo e revisão crítica.
De todo modo, é uma análise interessante por encontrar ressonância num intelectual, Richard Rorty, que, pelo respeito acadêmico de que goza e por sua
opção ideológica, é o exato oposto de
Tom Wolfe. É que também Rorty, em
"Para Realizar a América (ed. DP&A),
defende a idéia de que orgulho nacional é
fundamental para o crescimento de um
país, enquanto observa que nos EUA do
ano em que escreve, 1997, a vergonha nacional e a falta de envolvimento emocional com o país ultrapassavam aquela imprescindível sensação de orgulho.
E é curioso ver, ainda,
como Wolfe e Rorty coincidem na denúncia da
submissão intelectual dos
jovens americanos à filosofia européia de Foucault, Heidegger e outros,
que os convencem de que
vivem num país de simulacros, violento, desumano e corrupto. A
diferença entre eles, nada pequena, é que
Rorty apresenta soluções, enquanto
Wolfe jornalisticamente apenas lamenta
a realidade. É sugestivo, de todo modo,
ver como Wolfe se afina com Rorty pelo
menos no diagnóstico.
Se por um lado parte da validade do livro de Tom Wolfe se esgotou depressa,
por outro sua atualidade é certa. Como é
um moralista, dotado mais de um pensamento jornalístico "ad hoc" do que de
um poder analítico de longo fôlego, ao
mesmo tempo em que anuncia a vitória
final dos EUA, adverte para o perigo que
é a decadência dos valores americanos.
Vai buscar em Nietzsche elementos para
suas previsões sinistras sobre o século 21
na esteira do que o pensador alemão
propôs para o século 20, um século de
guerras como nunca antes, previu
Nietzsche, porque os homens não teriam
mais um deus a quem recorrer para se livrar de suas culpas, mas continuariam as
experimentando, o que os faria sentir
"desprezo pelos outros e por si mesmos". A fé cega e reconfortante outrora
depositada na crença em um deus seria,
no novo século, despejada na crença em
irmandades nacionalistas bárbaras...
Uma profecia quase irretocável, na
qual Wolfe se apóia para continuar prevendo, com Nietzsche, um século 21 ainda mais pavoroso, uma época de eclipse
total dos valores e de busca desesperada
de novas âncoras. Mas a busca fracassaria, continua Nietzsche, porque as pessoas não poderiam acreditar em códigos
morais sem crer num deus que lhes
aponte um dedo temível e diga o que devem fazer ou não (inevitável recordar
que o mundo do islã, que Wolfe cita de
raspão, acredita nesse dedo temível). Isso basta para Wolfe concluir que, após a
guerra nos Balcãs e o que aconteceu na
ex-URSS (e ele escreve antes de 11 de setembro), o espírito do tempo do século 21
pode ser resumido num só brado: "De
volta ao gosto de sangue!". Difícil discordar, por enquanto.
É um livro errático e, quem sabe, nisso
resida seu atrativo. O autor parece não
saber bem em que ele mesmo acredita,
qual hipótese considera viável. A realidade surge-lhe confusa e essa confusão
transparece no livro, talvez por ser coletânea de peças escritas em momentos diferentes. Li o livro para ver como pensa
um conservador americano agora e o retrato que fornece de seu país. Tendo-o lido, imagino se o melhor título para o livro, longe da deslocada opção brasileira
e por ele citado numa passagem, não seria "Gótico Americano"... Não penso
tanto na pintura famosa de Grant Wood,
embora nela também, mas sim num ambiente obscuro cujas saídas não são visíveis e onde é fácil sentir um medo transcendental...
Teixeira Coelho é ensaísta, escritor e diretor do
Museu de Arte Contemporânea (MAC-SP), autor,
entre outros, de "Niemeyer - Um Romance" (Geração Editorial)..
Ficar ou Não Ficar
260 págs., preço não definido
de Tom Wolfe. Trad. Paulo Reis.
Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26,
5º andar, CEP 20011-040, RJ, tel.
0/xx/21/ 507-2000).
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