UOL


São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ Brasil 503 d.C.


Satã retira de seu homossexualismo qualquer traço de violência, sente-se macho gostando de garotos, mas no fundo tudo se passa segundo as inversões costumeiras durante o Carnaval


O MALANDRO SATÃ

por José Arthur Giannotti

À primeira vista julguei que haveria momentos de "Madame Satã", filme de Karim Aïnouz, que poderiam ter sido escritos e encenados por Jean Genet. Neles se encontram a mesma conivência entre a violência e a ternura, a mesma opção pela marginalidade, a mesma angústia de pessoas que só podem viver na aresta do mundo. Mas as diferenças entre os dois universos se impuseram quando o filme foi visto pela segunda vez: de um lado, a religiosidade invertida de Genet, de outro, o malandro e o Carnaval. João Francisco dos Santos, que virá a ser o personagem Madame Satã da boêmia carioca dos anos 40, confessa ser possuído de uma raiva interna que o leva a uma violência generalizada contra tudo e contra todos, mas esse extravasamento de si é terno, infantil, manifestação de uma perversidade polimorfa que não pode ser contrariada. Não possui, assim, instrumentos para se regenerar e participar da vida comum, e teria sido apenas um marginal perigoso se não fosse recuperado por sua arte, precisamente por uma atividade sem fim. Não há dúvida de que Satã dá prosseguimento às estripulias de João, que continua a ser preso e a adotar crianças.

Luta raivosa
Mas essas aventuras perdem a força dramática ao se desligarem da luta raivosa pelo reconhecimento, porquanto agora nada mais são do que contradições de uma personalidade famosa registradas no final do filme. A verdade de João, a ambiguidade da violência com a ternura, converte-se na anestesia do artista marginal integrado na sociedade contemporânea como o macaco de um zoológico, vale dizer, mentira em processo, mas consagrada.
Nada mais distante, portanto, da maldição que carrega um personagem de Jean Genet (1910-1986): para Querelle, por exemplo, o roubo, santificado pelo assassinato, só pode ser expiado pela morte do próprio corpo, ato de submissão sexual. A arte vem do escritor e não de seu personagem. Além do mais, a violência de João não se confunde com a vontade de matar tudo o que se ama, como queria o dandismo "fin-de-siècle" de Oscar Wilde. Se arte e realidade se movem no mesmo nível simbólico, a violência se exerce no imaginário. No caso de Dorian Gray, o rosto não é espelho da alma, mas o retrato do personagem.
Em contrapartida, João pratica uma violência anti-social, recusa do outro como "socius", que o impediria de desenhar a identidade reflexionante de seu próprio eu se a arte não o modelasse como Madame Satã. Sem esse disfarce, essa fantasia, ele só poderia se arranhar no percurso da vida, como giz que se gasta num quadro negro se transformando em linha tortuosa. Explode qualquer barreira a resistir a seu vir a estar dilacerado, assim como está sempre se explodindo a si mesmo. Mas, se a raiva é a via privilegiada de contato com o mundo, igualmente vem a ser o elo que o liga a outros raivosos, idênticos a ele tanto na raiva quanto na carência de ligações.
Se somente encontra sua primeira identidade se espelhando na identidade quebrada do outro, disso deriva que participa de uma relação, particularmente no caso das relações amorosas, quando puder maltratar o outro, se possível violentando-o na carne. Deve enganar e fazer sofrer para criar uma unidade subjetiva por meio da negação, mas nesse processo descobre a ternura de sua infantilidade. Os amores permissíveis se baseiam, assim, na desconfiança, na recusa deles mesmos, nunca brotando de uma paixão ou fazendo parte de um projeto maior. Daí o homossexualismo nascer dessa carência de si, só restando a João amar bandidos como ele ou criaturas inacabadas, como as crianças que adota ou a mulher diante da qual ele se infantiliza. Arma-se, pois, um jogo brutal de egos que se negam e, desse modo, se revelam a si mesmos numa ternura carente de si. Cabe assinalar aqui o admirável trabalho de Lázaro Ramos, capaz de exprimir em todo o seu corpo a crueldade agressiva do bandido e, quase ao mesmo tempo, a ternura como pausa nessa constante luta contra si.

Espelhos quebrados
Este jogo de espelhos quebrados levaria ao desastre se ele mesmo não se espelhasse na arte de Madame Satã. João se salva na medida em que imita artistas e encena sua feminilidade, em que transforma sua violência naquela interpretação do canto que revela o inesperado. O filme de Karim Aïnouz descreve esse percurso que desemboca na sublimação pela arte e no sucesso mundano, ainda quando este poderia ou não acontecer, quando continua a espelhar uma forma de violência amorosa que não se esgota num limite, seja a integração pelo sucesso, seja a queda na mera criminalidade.
Enquanto o sucesso se mantém como sonho possível, a vida não se mascara, não se converte numa identidade idealizada a ocultar sua determinação de percurso rico de aventuras. Do mesmo modo, a violência vale antes de tudo como ambiguidade, colocando fora de seu horizonte quer o limite trágico -a aceitação de uma culpa ancestral-, quer o absoluto pela santificação do mal.
Mas no seio da contração entre violência e ternura reside a possibilidade de exprimir essa violência como ato de criação de si mesma, de aceitação, de querê-la como forma de retirar do outro seu modo de se apresentar disfarçado. Satã imita a artista a quem serve e os cantores da época até encontrar seu próprio estilo como imitação de seu lado feminino e grosseiro.
O dilaceramento da contradição, momento insuportável em que o ser humano se percebe como vivente sendo para a morte, é superado pelo exercício da arte como passo da vida do espírito. Desse novo ponto de vista as infrações se convertem em bizarrias de uma personalidade célebre. O negativo se integra e se transforma em momento passageiro de uma história, de uma biografia.
É notável que essa sublimação pela arte desaparece inteiramente na entrevista que o próprio Satã concede ao "Pasquim", publicada em 29/4/1971. Paulo Francis o apresenta como uma espécie de "gunfighter" da Lagoa, fechando bares e enfrentando a polícia, enchendo de pavor particularmente as crianças com medo de que fossem pegas; mostra um malandro violento e homossexual assumido, mas estavelmente casado e cheio de filhos adotivos. Nenhuma alusão à carreira artística, a não ser os prêmios que recebe nos desfiles carnavalescos, o primeiro, em 1938, no bloco Caçador de Veados, que lhe valeu o apelido, até o último, em 41. O que importa, escreve o jornalista, é que Satã se aceita como é, que representa "a verdadeira contracultura brasileira", que recusa padrões externos, para fazer emergir "deste asfalto, deste clima, deste sagu cultural" sua autenticidade.
Expurgada dos cacoetes da época, a entrevista é lição de malandragem, particularmente da parte do entrevistado. Não creio que Satã queira se pôr em estória, como diziam os cronistas medievais; ele apenas narra, para uma imprensa que se pensa marginal, uma versão de seu próprio mito, adequada ao caso, expurgando-a, por conseguinte, de qualquer contradição. Esta deixa de ser vivida para se resumir ao confronto de sentidos, nascendo da diferença de ângulo assumido por cada narrador de um evento. E tudo se resume a diferentes pontos de vista na medida em que toda nota característica de uma ação resvala para sua sombra. Satã não mata, apenas deixa disparar a arma, que abre um buraco no corpo por onde se infiltra o desígnio de Deus. No final das contas, quem é o responsável pela morte? Não diz palavras obscenas, não briga, o que não o impede de confessar seu gosto de brigar, nunca, porém, contra um civil. Briga com a polícia não é briga e, no fundo, se apresenta como herói lutando contra a opressão policial.
Por fim, retira de seu homossexualismo qualquer traço de violência e de marginalidade, sente-se macho gostando de garotos a ponto de se viciar na pederastia, mas no fundo tudo se passa segundo as inversões costumeiras durante o Carnaval, por certo com algum exagero. É homem casado, com seis filhos adotados, que se diz pederasta e normal: se recusa a manifestar qualquer sentimento íntimo, o que resta são práticas a serem consideradas como se estivessem desfilando num bloco carnavalesco. Vive seu apelido e sua fantasia até o fim, de sorte que nunca é responsável a não ser por sua própria inteireza de camaleão, por aquela identidade que se forma pela recusa de qualquer determinação, suceder de imagens que são dele porque ele e os outros as assumem. Nessas condições, não há sublimação pela arte, apenas isenção pelo artifício, não há história, mas dialética da malandragem...
Quem foi João que respondia pelo nome de Satã? Para a arte isso não importa, seja ela o filme, seja a versão do mito. Nesse plano, trata-se da mesma pessoa ou de máscaras diferentes tratando de captar diferenças e semelhanças? Mas o filme e a entrevista representam personagens que dizem suas verdades, o primeiro instalando um mundo mais rico do que a segunda.


José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 503 d.C.".


Texto Anterior: + brasil 503 d.C.: Homenagem a Drummond
Próximo Texto: + autores: A China não é o país das maravilhas
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.