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+ Brasil 503 d.C.
Satã retira de seu homossexualismo qualquer traço
de violência, sente-se macho gostando de garotos, mas no fundo tudo se passa segundo as inversões costumeiras durante o Carnaval
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O MALANDRO SATÃ
por José Arthur Giannotti
À primeira vista julguei que haveria momentos de "Madame Satã", filme de Karim Aïnouz, que poderiam ter sido escritos e encenados por Jean Genet. Neles se encontram a mesma conivência entre a violência e a ternura, a mesma opção pela marginalidade, a mesma angústia de pessoas
que só podem viver na aresta do mundo.
Mas as diferenças entre os dois universos
se impuseram quando o filme foi visto
pela segunda vez: de um lado, a religiosidade invertida de Genet, de outro, o malandro e o Carnaval.
João Francisco dos Santos, que virá a
ser o personagem Madame Satã da boêmia carioca dos anos 40, confessa ser
possuído de uma raiva interna que o leva
a uma violência generalizada contra tudo e contra todos, mas esse extravasamento de si é terno, infantil, manifestação de uma perversidade polimorfa que
não pode ser contrariada. Não possui,
assim, instrumentos para se regenerar e
participar da vida comum, e teria sido
apenas um marginal perigoso se não fosse recuperado por sua arte, precisamente
por uma atividade sem fim. Não há dúvida de que Satã dá prosseguimento às estripulias de João, que continua a ser preso e a adotar crianças.
Luta raivosa
Mas essas aventuras
perdem a força dramática ao se desligarem da luta raivosa pelo reconhecimento, porquanto agora nada mais são do
que contradições de uma personalidade
famosa registradas no final do filme. A
verdade de João, a ambiguidade da violência com a ternura, converte-se na
anestesia do artista marginal integrado
na sociedade contemporânea como o
macaco de um zoológico, vale dizer,
mentira em processo, mas consagrada.
Nada mais distante, portanto, da maldição que carrega um personagem de
Jean Genet (1910-1986): para Querelle,
por exemplo, o roubo, santificado pelo
assassinato, só pode ser expiado pela
morte do próprio corpo, ato de submissão sexual. A arte vem do escritor e não
de seu personagem. Além do mais, a violência de João não se confunde com a
vontade de matar tudo o que se ama, como queria o dandismo "fin-de-siècle" de
Oscar Wilde. Se arte e realidade se movem no mesmo nível simbólico, a violência se exerce no imaginário. No caso de
Dorian Gray, o rosto não é espelho da alma, mas o retrato do personagem.
Em contrapartida, João pratica uma
violência anti-social, recusa do outro como "socius", que o impediria de desenhar a identidade reflexionante de seu
próprio eu se a arte não o modelasse como Madame Satã. Sem esse disfarce, essa
fantasia, ele só poderia se arranhar no
percurso da vida, como giz que se gasta
num quadro negro se transformando em
linha tortuosa. Explode qualquer barreira a resistir a seu vir a estar dilacerado,
assim como está sempre se explodindo a
si mesmo. Mas, se a raiva é a via privilegiada de contato com o mundo, igualmente vem a ser o elo que o liga a outros
raivosos, idênticos a ele tanto na raiva
quanto na carência de ligações.
Se somente encontra sua primeira
identidade se espelhando na identidade
quebrada do outro, disso deriva que participa de uma relação, particularmente
no caso das relações amorosas, quando
puder maltratar o outro, se possível violentando-o na carne. Deve enganar e fazer sofrer para criar uma unidade subjetiva por meio da negação, mas nesse processo descobre a ternura de sua infantilidade. Os amores permissíveis se baseiam, assim, na desconfiança, na recusa
deles mesmos, nunca brotando de uma
paixão ou fazendo parte de um projeto
maior.
Daí o homossexualismo nascer dessa
carência de si, só restando a João amar
bandidos como ele ou criaturas inacabadas, como as crianças que adota ou a
mulher diante da qual ele se infantiliza.
Arma-se, pois, um jogo brutal de egos
que se negam e, desse modo, se revelam a
si mesmos numa ternura carente de si.
Cabe assinalar aqui o admirável trabalho
de Lázaro Ramos, capaz de exprimir em
todo o seu corpo a crueldade agressiva
do bandido e, quase ao mesmo tempo, a
ternura como pausa nessa constante luta
contra si.
Espelhos quebrados
Este jogo de
espelhos quebrados levaria ao desastre
se ele mesmo não se espelhasse na arte de
Madame Satã. João se salva na medida
em que imita artistas e encena sua feminilidade, em que transforma sua violência naquela interpretação do canto que
revela o inesperado. O filme de Karim
Aïnouz descreve esse percurso que desemboca na sublimação pela arte e no
sucesso mundano, ainda quando este
poderia ou não acontecer, quando continua a espelhar uma forma de violência
amorosa que não se esgota num limite,
seja a integração pelo sucesso, seja a queda na mera criminalidade.
Enquanto o sucesso se mantém como
sonho possível, a vida não se mascara,
não se converte numa identidade idealizada a ocultar sua determinação de percurso rico de aventuras. Do mesmo modo, a violência vale antes de tudo como
ambiguidade, colocando fora de seu horizonte quer o limite trágico -a aceitação de uma culpa ancestral-, quer o absoluto pela santificação do mal.
Mas no seio da contração entre violência e ternura reside a possibilidade de exprimir essa violência como ato de criação de si mesma, de aceitação, de querê-la como forma de retirar do outro seu
modo de se apresentar disfarçado. Satã
imita a artista a quem serve e os cantores
da época até encontrar seu próprio estilo
como imitação de seu lado feminino e
grosseiro.
O dilaceramento da contradição, momento insuportável em que o ser humano se percebe como vivente sendo para a
morte, é superado pelo exercício da arte
como passo da vida do espírito. Desse
novo ponto de vista as infrações se convertem em bizarrias de uma personalidade célebre. O negativo se integra e se
transforma em momento passageiro de
uma história, de uma biografia.
É notável que essa sublimação pela arte
desaparece inteiramente na entrevista
que o próprio Satã concede ao "Pasquim", publicada em 29/4/1971. Paulo
Francis o apresenta como uma espécie
de "gunfighter" da Lagoa, fechando bares e enfrentando a polícia, enchendo de
pavor particularmente as crianças com
medo de que fossem pegas; mostra um
malandro violento e homossexual assumido, mas estavelmente casado e cheio
de filhos adotivos. Nenhuma alusão à
carreira artística, a não ser os prêmios
que recebe nos desfiles carnavalescos, o
primeiro, em 1938, no bloco Caçador de
Veados, que lhe valeu o apelido, até o último, em 41. O que importa, escreve o
jornalista, é que Satã se aceita como é,
que representa "a verdadeira contracultura brasileira", que recusa padrões externos, para fazer emergir "deste asfalto,
deste clima, deste sagu cultural" sua autenticidade.
Expurgada dos cacoetes da época, a entrevista é lição de malandragem, particularmente da parte do entrevistado. Não
creio que Satã queira se pôr em estória,
como diziam os cronistas medievais; ele
apenas narra, para uma imprensa que se
pensa marginal, uma versão de seu próprio mito, adequada ao caso, expurgando-a, por conseguinte, de qualquer contradição. Esta deixa de ser vivida para se
resumir ao confronto de sentidos, nascendo da diferença de ângulo assumido
por cada narrador de um evento. E tudo
se resume a diferentes pontos de vista na
medida em que toda nota característica
de uma ação resvala para sua sombra.
Satã não mata, apenas deixa disparar a
arma, que abre um buraco no corpo por
onde se infiltra o desígnio de Deus. No final das contas, quem é o responsável pela
morte? Não diz palavras obscenas, não
briga, o que não o impede de confessar
seu gosto de brigar, nunca, porém, contra um civil. Briga com a polícia não é
briga e, no fundo, se apresenta como herói lutando contra a opressão policial.
Por fim, retira de seu homossexualismo qualquer traço de violência e de marginalidade, sente-se macho gostando de
garotos a ponto de se viciar na pederastia, mas no fundo tudo se passa segundo
as inversões costumeiras durante o Carnaval, por certo com algum exagero. É
homem casado, com seis filhos adotados, que se diz pederasta e normal: se recusa a manifestar qualquer sentimento
íntimo, o que resta são práticas a serem
consideradas como se estivessem desfilando num bloco carnavalesco. Vive seu
apelido e sua fantasia até o fim, de sorte
que nunca é responsável a não ser por
sua própria inteireza de camaleão, por
aquela identidade que se forma pela recusa de qualquer determinação, suceder
de imagens que são dele porque ele e os
outros as assumem. Nessas condições,
não há sublimação pela arte, apenas
isenção pelo artifício, não há história,
mas dialética da malandragem...
Quem foi João que respondia pelo nome de Satã? Para a arte isso não importa,
seja ela o filme, seja a versão do mito.
Nesse plano, trata-se da mesma pessoa
ou de máscaras diferentes tratando de
captar diferenças e semelhanças? Mas o
filme e a entrevista representam personagens que dizem suas verdades, o primeiro instalando um mundo mais rico
do que a segunda.
José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP, autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 503 d.C.".
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